Ilustração: Norman Rockwell, Gossip.
Às vezes me pergunto se fazer fofoca não seria uma espécie de exercício de literatura popular. Em vez de ler os clássicos que falam do povo, o povo escreve seus próprios clássicos, na prática. E vai acrescentando um tempero aqui, uma pimenta acolá, um toque de terror, tragédia, suspense, outro de comédia. E a história cotidiana que, sem os adornos das más linguas, seria prosaica e sem-graça, adquire tons de supremo fascínio, seduzindo novos leitores e recém-abduzidos adeptos da continuação daquele invento, cada dia mais enfeitado de fantasias e obscuras reinterpretações.
Interiorana que sou, nascida e criada em Ijuí, ainda hoje me choca constatar o tanto que se sabe um da vida do outro, nas tortuosas janelas ijuienses de olhos que tudo vêem. Onde quer que você vá, o que quer que você faça, saiba que não adianta se esconder: alguém, em algum lugar, viu você burlando a lei e os bons costumes, botando o dedo na balança, roubando a maçã do vizinho e - quem sabe, até - o vizinho da vizinha. George Orwell pensa que inventou o Big Brother na ficção chamada 1984, mas, não. Qualquer cidadezinha do interior já tinha seus mil e uns big brothers, muito antes de 1984. Para dizer a verdade, qualquer cidadezinha sempre esteve muito mais para Os Mil Olhos do Dr.Mabuse ( o clássico filme alemão) do que para o Big Brother. Big Brother, inclusive, já virou hit ultrapassado da Globo, mediocrizado em vidas tediosas e desinteressantes.
Não, mil vezes o olhar popular!.. Ali, sim, o verdadeiro sabor da maledicência bem-escrita, com requintes que muito escritor consagrado não conseguiria imaginar sozinho, porque covardia, afinal, milhares de mãos a enfiar sua cucharra torta. Nunca vou esquecer quando fiz 15 anos, do roteiro que inventaram para minha festa, com hora certa e performance programada: à meia-noite em ponto - diziam - eu trocaria de roupa e desceria a escada, vestida de gala, para ganhar das mãos do meu pai a chave de um Fusca novinho em folha, festa interrompida só para o gáudio de ahs e ohs locais. Um Fusca, com 15 anos?!...Certamente o povo projetava em mim sua fantasia Cinderela de consumo. O único Fusca que ganhei na vida veio usado, meio batido num paralama, meiado com meu irmão caçula...E, ainda assim, muitos anos mais tarde!
Mas, as melhores fofocas são, com certeza, aquelas que desabonam gente séria, que mostram as cuecas sujas de moralistas severos, putanesqueiam damas da sociedade, virginizam putas, destroem nomes imaculados e apontam nudezas de reis. Há um prazer maquiavélico do povo em vingar-se dos falsos, dos ricos, dos poderosos, dos aparentemente bem-sucedidos. Como se fofoqueando equilibrassem os pratos da balança de Minerva, compensando a injustiça de uns terem tanto, outros nada. Pois, com a maledicência, batem uma mão na outra, triunfantes, agindo como deuses, salomões modernos, robin hoods de valores morais, tirando dos ricos, dando na boca dos pobres.
De modo que, como diria o old shakespeare, não há nada de novo debaixo do sol que um olho popular inadvertidamente inda não tenha visto ou que não ache um jeito de ver, ou, se não enxergar nem ouvir, que não invente, aumente um ponto e escreva, assim, seu próprio conto. E viva o voyeurismo da literatura popular, com sua merecida função social, dizem que despressurizadora da opressão.
Li uma vez que a fofoca é o ópio dos oprimidos: você me destrói com seu poder, eu destruo você com minha língua. Veja bem, não sou eu que estou dizendo, corre por aí à boca pequena, fulana jura de pé junto que viu com esses olhos que a terra há de comer, me contaram, mas não conta pra ninguém, tá?
( Graça Craidy)
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Um blog à beira de um prozac. Reflexões sobre pós-modernidade, criadores publicitários, artigos acadêmicos, vida real, memórias, xingamentos, declarações de amor e desaforos em geral.
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Tô doidinha prá te contar uma fofô.
ResponderExcluirMonica levi escreveu:
ResponderExcluirGraça querida:
Gostei muito.
Ao ler vi você falando!!!
Bjs
Mônica
Marcio Reiff escreveu:
ResponderExcluirgostei muito. compartilhei no facebook. bjão
Nara Fogaça escreveu:
ResponderExcluirGraciiiiiiiiita!!!
Que ótimo!!!
Que barbaro¡¡¡
(...)
Como ta bom o teu blog!
Tu fez tudo soziiiiiiiiiinha???
Gracinha, tu é pra lá de boa.
Ilidio Soares escreveu:
ResponderExcluirGraça, bom dia
Muuuuuuuuuuuuuuuuito show teu blog....dei muitas risadas aqui..kkkkkkkk Ganhaste um leitor assíduo
beijocas
Gosto que me enrosco de vc ter resolvido escrever seu blog, habiba!
ResponderExcluirE gostei de ler! ;)
Beijos,
Silvia
Paulo Boa Nova escreveu:
ResponderExcluirMaria da Graça:
Achei teu blog simplesmente sensacional.
Parabéns.
Bjs do
Paulo Boa Nova
Muito bom!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSempre nos dando bons motivos para ler o que escreves. Gostei demais. Ainda bem que as fofocas são da Matildes e não da Clotilde .kkkkkkkkkk
ResponderExcluirGraça querida, totalmente identificada e adorando teu texto!!
ResponderExcluirEu também nasci numa cidade pequena onde as pessoas são ou deixam de ser dependendo do sobrenome que carregam e do olhar dos “Mil Olhos do Dr.Mabuse”. Minha mãe andaluza falava “pueblo chico, infierno grande”.
(...Veja bem, não sou eu que estou dizendo…) ótimo!!
Beijos!!