Artigo: Subversivos no liquidificador.

Os criadores publicitários, o capitalismo e o imaginário da ditadura militar

Ressaca. Naquele janeiro de 1969, ainda vigorava fresca no país a vertigem do AI-5 (13/12/1968) recém empurrado goela abaixo dos brasileiros como o mais cruel dos atos institucionais, afirmação explícita da ditadura militar agora com poderes plenos para cassar políticos, caçar dissidentes e fechar o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras de Vereadores, cala-boca assumido sobre os últimos simulacros de liberdade política ainda presentes pós 1964.

Enquanto a democracia brasileira lambia as feridas e a sociedade adivinhava novos tempos disciplinares - ocupada entre o anticomunismo e a sedução do consumo que se avizinhava em atraentes e miraculosos trajes modernos - no restrito mundo da publicidade um anúncio de página dupla na revista Propaganda (Ed. Referência), assinado pela agência paulista Norton, aparentemente desaforava a ditadura, com o breve e incisivo título: Os subversivos.

Rasgando os 42 cm horizontais do anúncio, sob o temerário epíteto, cinco rapazes bem-vestidos, ao redor de 30 anos, fotografados de propósito em câmera baixa para parecerem poderosos, portavam teatralmente suas ditas " armas subversivas" - duas réguas-tês e três máquinas de escrever - em manifesto pastiche das fotos publicadas na imprensa sobre o desmantelamento dos chamados "aparelhos subversivos" contrários ao regime.

Eram os cinco criadores publicitários Neil Ferreira, José Fontoura da Costa, Carlos Wagner de Morais, Aníbal Guastavino e Jarbas José de Souza - três redatores e dois diretores de arte, nessa ordem - recém contratados pela Norton para, segundo o texto do anúncio, " subverter" o mercado da propaganda.

Essa peça publicitária Os subversivos - foto e texto - constitui o corpus desse ensaio, onde busco compreender de que maneira os citados criadores, legítimos representantes de uma parcela inovadora dos criadores publicitários nos ditos Anos de Chumbo, se relacionavam com a ditadura militar e com a expansão do capitalismo.

Também pretendo desvendar de que modo eles se valeram da dialética e do discurso via a vampirização do imaginário - para Barthes (1999), o mesmo que ideologia, - especificamente neste anúncio, com o fim de argumentar em favor de suas próprias causas.

E, ainda, revelar como eles transformaram não apenas os produtos e serviços que anunciavam em mercadoria, mas também a si próprios, criadores, convertidos em manufatura espetacular, evidenciando a banalização do ideário vigente por meio de um pseudo discurso contra-ideológico que parecia desafiar as perigosas regras militares. Mas, não.

Discurso informal, pós-Bill Bernbach

Divisor na escritura publicitária do Brasil, junto com os movimentos bernbachianos das agências DPZ e Almap, esse anúncio reafirmou a passagem de um encaminhamento retórico formal pré-Bill Bernbach - o americano fundador da nova linguagem criativa na publicidade mundial - a um discurso claramente informal, ressonâncias da recente ascensão dos criadores publicitários brasileiros da DPZ (a primeira agência com criadores no comando) ao poder, respaldados pelo valor da ousadia e da criatividade.

No caso dos ditos subversivos, embora o anúncio aparentasse uma tentativa de discurso contra-revolucionário, soava muito menos como uma tentativa de eficácia contra-hegemônica - por pífia que seria - e muito mais como feito aparentemente para agradar, de lambuja, aos patrulheiros de plantão pró-esquerda, presentes nos bastidores dos departamentos de Criação das agências, na época, onde atuavam vários ex-jornalistas.


1968, o ano do proibido proibir

Poucos ficaram imunes àquele ano de 1968. O clima era de repressão. Por outro lado, de ousadia. Na França, no famoso Maio de 68, estudantes clamavam por todas as liberdades, da sexual à social, aos apupos de "Seja realista, peça o impossível", contaminando outras categorias e outros países, de operários a intelectuais, atemorizando as classes dominantes e até seu presidente, na época, Charles De Gaulle, que, consta, refugiou-se em Baden-Baden, na Alemanha, protegendo-se das manifestações.

No Brasil, em setembro do mesmo ano, o deputado Márcio Moreira Alves (que logo seria cassado ) propunha o repúdio popular ao militares e o boicote às comemorações da Semana da Pátria. No mês seguinte, 1240 estudantes no 30º Congresso da UNE desafiavam a ditadura e se reuniam em um sítio em Ibiúna/ SP, até serem denunciado por locais, traídos pelo imenso volume de pão comprado nas quitandas da cidade, e presos, um a um, pelo DOPs.

Na Inglaterra, The Beatles lançavam o antológico álbum branco em meio a incenso, I-ching, maharishi ioge e à canção Back to URSS, que elogiava as garotas soviéticas e dizia ser "uma sorte estar de volta ao lar, camarada". Nos Estados Unidos, os jovens protestavam contra a Guerra do Vietnã, proclamando love and peace.

Caetano Veloso e Os Mutantes, no Brasil, eram vaiados com É proibido proibir, no mesmo palco onde Chico Buarque e Tom Jobim venciam o Festival Internacional da Canção com a poética Sabiá, hino sutil pela anistia - " Vou voltar, sei que ainda vou voltar" . Mas a platéia vaiava de novo e pedia por Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, que propunha, sem meias-palavras: " Vem, vamos embora que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera acontecer".

Antes que o Natal de 1968 chegasse, Gilberto Gil e Caetano Veloso seriam presos, por alegada incitação à subversão, e mais tarde exilados na Inglaterra, obrigados a repensar o " Eu digo não ao não" da É proibido proibir (1968).

Ou seja, apesar da repressão, apesar das prisões, apesar da constante ameaça, havia - exatamente pelo indefectível magnetismo do proibido - um contagiante estímulo ao revés no ar para que os jovens se rebelassem, desobedecessem, burlassem, desafiassem, desproibissem. Ainda que sem muito risco, como no caso dos criadores publicitários aqui citados que, como certos hippies apenas nos adereços - e por isso chamados de hippies de boutique - também poderiam ser nomeados subversivos de boutique, protegidos que estavam por seu poderoso patrão, o paulista Geraldo Alonso, conhecido no meio publicitário como sujeito de maus bofes, autoritário mas empreendedor de sucesso, forjado no modelo do antigo agente de espaços em jornal, fundador da agência Norton em meados da década de 40.

Geraldo Alonso

Geraldão, como era chamado, tinha "notórias relações no cenário político" - garante Gandra (1995:53), assumido participante do IPES, e apesar de sua agência haver brilhado nos anos 50, perdera de certa forma o trem da história e tentava agora recuperar espaço apostando nos - apelidados por ele - " barbudinhos da criação", Neil Ferreira e equipe, e no novo valor que começava a se estabelecer na propaganda, em oposição ao valor do mero negócio: o da criatividade. Um valor de tal maneira tornado importante no final dos anos 60, que mereceu de Gandra (1995:54) a ponderação: " Pois não é que, de repente, qualidade de criação e dinheiro queriam dizer quase a mesma coisa?" Entre muitos que consideram Os subversivos uma mudança significativa no perfil da propaganda brasileira, o colunista Marcio Ehrlich, do site A Janela Publicitária, (22/01/2000) endossa que, de fato, a equipe criativa fez uma verdadeira revolução: " 'Os Subversivos' representam um marco na década, com campanhas memoráveis", confirma Ehrlich.

Tão memoráveis que no ano seguinte, em 1970, Geraldo Alonso foi escolhido O Publicitário do Ano, pelo já tradicional Prêmio Colunistas _ concedido anualmente por jornalistas especializados em publicidade - e Neil Ferreira eleito vencedor da privilegiada categoria Exemplo do Ano, na mesma premiação. Exemplo de virada criativa, segundo o próprio Neil (2007), que assegura ter ressuscitado a Norton, com os trabalhos criativos da sua equipe.

O dia da criação

Quem conta como nasceu o antológico anúncio em questão é ele, Neil Ferreira, principal autor, redator, diretor de criação e ex-jornalista, naquele 1969, com 26 anos (dos quais os últimos seis dedicados à publicidade ), que gosta de se pensar e aos outros quatro subversivos como Os 5 Beatles. E de pensar o seu antológico anúncio como o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band da propaganda:
Estávamos todos na casa do Jarbas José de Souza, diretor de arte, o 1º. à direita [ da foto do anúncio]. Íamos jantar e tentar discutir um anúncio para comunicar ao mercado a intenção da Norton ao contratar-nos. Cada um dos 5 Beatles (...) tinha uma idéia. Democraticamente, eu (diretor de criação e comandante da equipe, além de me considerar um dos Beatles era também o George Martin), determinei que entrariamos na Norton para "subverter tudo". Focamos na "subversão", quem faz a subversão são os "subversivos", datilografrei na minha minúscula "Olivetti Lettera 22", que carregava para todos os cantos, o título em caixa alta e baixa "Os subversivos". Escrevi a 1ª. linha do texto: "já era tempo de denunciá-los à nação" (FERREIRA, 2007, por email)

Lá fora, no mundo real, o noticiário vivia recheado de fotos de subversivos denunciados à nação tanto pelos soldados da ditadura quanto pelos próprios civis da classe média - historicamente medrosa e fiel amante de segurança e estabilidade - que entendiam a subversão como uma espécie de prévia sinistra do apocalipse, onde comunistas devoravam criancinhas e de sobremesa lambuzavam os beiços desapropriando herdades. No signo " comunista", o monstro- morador que Barthes (1987:15) categoriza como " estereótipo" se arrastando na língua, onde cada um de nós ao mesmo tempo " mestre e escravo" - diz ele - se aloja confortavelmente na servidão dos signos, tartamudeando: " Digo, afirmo, assento o que repito".

Nas fotos das notícias, a pose dos denunciados à nação era bem parecida com a dos subversivos de propaganda, só que em vez da câmera baixa que Barthes (1989) qualificaria como studium, porque reveladora da intenção do fotógrafo de enaltecer os objetos sem o olho do olhante da foto dar-se conta, os subversivos de verdade eram mostrados nos jornais em câmera alta, vistos de cima, o que os tornava menores e oprimidos. Ficava claro ali o recado semiológico de que a situação estava sob controle, debaixo dos tacões das botas dos governantes que haviam assumido para si não apenas a missão de acabar com veleidades socialistas em focos espalhados pelas muitas esquerdas que se debatiam no Brasil de então, mas também a de implantar o progresso e a educação na sociedade brasileira, " motivando a vontade coletiva para o esforço nacional de desenvolvimento", como salienta o historiador Carlos Fico, em seu livro Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (1997:94), ao comentar o trabalho da famosa AERP, Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República, que liderava o processo de comunicação do governo militar.

Neil Ferreira (2006), revela que sua intenção foi, de fato, explicitamente mimética dos noticiários, ao colocar os cinco subversivos da propaganda com seus aparatos de subverter feito fossem armas de verdade, ao mesmo tempo em que o texto lançava mão de uma analogia ritmada, um prego ora na subversão de verdade, ora na subversão da propaganda:

Há um permanente subtexto referindo-se à situacão política do momento. A milicaiada viva "denunciando subversivos à nação". Quando um"aparelho" caia, eram apresentadas fotografias do "vasto material subversivo apreendido", geralmente máquinas e escrever, estêncils, mimeógrafos.( FERREIRA, 2006)

Toda língua - diz Barthes em sua Aula proferida em 1977, no Colégio da França (1987:13) - é " uma reição generalizada", uma espécie de campo de luta onde aquele que fala sujeita aquele que escuta. E vice-versa, " servidão e poder se confundindo inelutavelmente" (1987:15).


" Olha as armas terríveis que eles têm nas mãos", diz a primeira linha do texto, o poder emboscado no discurso, como alerta de novo Barthes (1987:14). O olho olha as tais armas terríveis e o que vê? Máquinas de escrever e réguas-tês. Bem de acordo com o pensamento barthesiano, aliás: armas de exercício de poder. "São armas que podem abalar governos (...)" O olho pára, apreensivo. Na época, era tremendamente perigoso alguém querer " abalar governos". Por outro lado, é bem aqui que os torcedores das arquibancadas da esquerda, nas agências de propaganda, faziam as suas holas, na parte em que o texto parece ameaçar os milicos. Mas ninguém vai preso.

E o texto continua, naquilo que Barthes (1987) entende como o não-dito da estrutura, passado ideologicamente, abrigado no dito, "para além do que é dito" (1987:14): " (...) ou vender produtos". Ah, produtos! O gosto pela corda bamba é irresistível: "Com elas, esses homens são capazes de mudar a história de um país ou a história de um produto". Perceba-se aqui como nessa frase fica claro que é insinuado ter o mesmo peso mudar a história de um país e mudar a história de um produto. O mesmo peso moral, ético, conceitual, bem de acordo, aliás - como vai-se ver mais adiante - com a percepção de Carlos Fico (1997) que entende o incentivo ao consumo como a única forma de liberdade permitida aos brasileiros pela repressão militar.

E o texto subversivo continua: "Basta apertar um botão". Aqui, o coração se sobressalta. Em plena Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, o imaginário popular vivia atormentado pela possibilidade de alguém ensandecido apertar o temível botão que acionaria a bomba atômica mundial, ameaça mútua que mantinha os dois grandes cães rosnando com suas coleiras e correntes sob controle. " [ O botão] De uma máquina fotográfica. Uma câmera de cinema. Um aparelho de TV. A tecla de uma máquina de escrever."


A essas alturas, o leitor virou cúmplice do autor, o anzol do texto publicitário já o fisgou. Como indica Barthes (1987:14), assim que é proferida, " a língua entra a serviço de um poder" e é no interior dela que ela mesma deve ser combatida, não pela mensagem de que ela é instrumento - Barthes ( 1987:17) ressalta - mas " pelo jogo das palavras de que ela é o teatro". No caso, um jogo de palavras a serviço da laudação do sistema reinante e dos subversivos de propaganda, que continuam sua farsa compartilhada.

" Eles usam essas armas para gerar insatisfações, criar descontentamentos, acender desejos ", segue o texto do anúncio, a parte de acender desejos erótica bem na medida para só tanger sem ofender o imaginário. E o anúncio continua, explorando todos aqueles sentimentos ditos menores de que a propaganda em nome do capitalismo é acusada de provocar: " Você passa a olhar o seu vizinho porque ele comprou um carro novo. (...) Sua filha passa a odiar você porque você admite as mini-saias bem minis, mas só para as filhas dos outros." Espertamente, para criar ao mesmo tempos empatia e verossimilhança, bem como recomendam os princípios da Retórica, o texto se apropria de uma cena típica de então, passagem da sociedade de um modelo machista autoritário para um modelo atenuado pelo movimento feminista e pela liberação sexual, onde a virgindade começa a perder o seu valor de dote casadoiro, substituída aos poucos pelo valor da autonomia das mulheres que acorrem às universidades e ao mercado de trabalho, sedentas por decidirem seus próprios rumos.

Como num filme de gangster, o pastiche do anúncio sapeca agora um cravo bem pregado na ditadura: " São homens tão perigosos que só poderiam estar em dois lugares. Na cadeia." Valhei-me!- haveria de pensar o leitor, lembrando da Rua Tutóia em São Paulo, do DOI-CODI, de má lembrança, ou da recente fuga do perigoso Capitão do Exército Carlos Lamarca que há pouco tinha escapado do 4º Regimento de Infantaria, com 63 fuzis FAL, 10 metralhadoras e farta munição, conforme o Almanaque da Folha. "Ou numa agência de propaganda", assopra o texto de Neil.

Ideologia, democracia e perigo

A persuasão segue o seu trilho e lá pelas tantas, atrevidamente, aparece a palavra das mais perigosas de se pronunciar, então, junto com a perigosíssima democracia: ideologia. " A sua ideologia está infiltrada em uma das principais cidades brasileiras, onde a Norton mantém focos de subversivos plenamente insatisfeitos." Até o verbo - infiltrar - foi escolhido a dedo para assumir o jargão da ditadura, que Barthes (1989) chama de socioleto, espécie de dialeto falado por um grupo. Quase no fim do texto, o anúncio revela, afinal, a que veio: "subverter a vida das pessoas", declara Neil.

Intervalo

A propalada subversão da propaganda, que aparentemente não tinha nada a ver com a ditadura, na verdade, tinha tudo a ver com a filosofia desenvolvimentista do governo militar, que implanta o capitalismo conservador de inspiração americana, acreditando - via aumento da produção, do crédito e do consumo - libertar a sociedade de dois perigos, ao mesmo tempo: do espartano comunismo chinês, cubano ou russo, que vigorava na moda de esquerda de então, e também do atraso no relógio da modernidade, onde o Brasil como país do futuro precisava se engajar. Por bem ou por mal.

Otimistas reinventores


Carlos Fico (1997), em sua pesquisa sobre a ditadura, a propaganda e o Imaginário social do Brasil, descobriu que a vontade do Brasil de cumprir a sua vocação para o primeiro-mundismo se estabelece clara no período militar, mas que na verdade seria uma espécie de otimismo " reinventado" pela AERP/ARP do cel. Otávio Costa, e divulgado nas mensagens de governo feito um resgate atualizado e naturalizado de uma construção histórica do imaginário brasileiro.


No entender de Fico (1997) desde Pero Vaz de Caminha, passando por "gigante pela própria natureza", " criança, não verás nenhum país como este", ou pelos " 50 anos em 5" de Juscelino - o Imaginário nacional cultiva o elogio do Brasil como fadado a ser grande, e do brasileiro como o privilegiado habitante deste país fadado a ser grande, legitimado pela natureza generosa, pela industrialização, pela moderna Brasília, no mito reiterado, segundo Fico, em " centenas de poemas, milhares de textos, milhões de falas e milhões de imagens ao longo dos séculos" (1997:74).

Fico (id:112) observa ainda que a participação à qual o brasileiro era convidado em tempos de repressão, - do tipo Faça a sua parte. Ajude o Brasil a crescer -, na verdade nunca acontecia, a não ser, em dado momento, como " simulacro de participação" via a modernidade do consumo.

Nada mais coerente, então, que o discurso subversor do anúncio da Norton, que nos últimos parágrafos claramente anunciava o seu convite ao consumo: " Eles [ os subversivos] vão tentar convencer você a morar numa casa própria. Ou a mudar para uma casa melhor. Vão tentar convencer você de que ar condicionado num país tropical é necessidade, e não luxo. Vão tentar convencer você a concordar com a sua mulher, quando ela quer um fogão avançado. Calçar um bom sapato. Comprar coisas boas numa grande loja. Movimentar a sua conta num banco sólido. Vão tentar convencer você a ter a coragem de ambicionar tudo aquilo que torna a vida um pouco melhor. (...) comendo um chocolate, por exemplo. Ou tomando uma bebida."

E, para encerrar, caso o leitor ainda não tenha se sentido estimulado ao consumo, o texto do anúncio não deixa por menos e o xinga de " conformista". Perceba-se: o oposto de ser consumidor é ser conformista: " Mas eles sabem também que você pode ser um conformista. Esse é o risco que eles correm". Isto é: um jeca tatu afásico e, pior, antiquado. Como quem diz: OK que você não tenha coragem de enfrentar a ditadura, mas, fugir da raia do consumo também já é muita estultície.

Sorria, você está sendo analisado

Como os objetos de predileção da Semiologia são o que Barthes (1987:40) chama de textos do Imaginário - narrativas, imagens, retratos, expressões, idioletos, paixões - é interessante tentar compreender em que aspectos a foto do anúncio - também ela texto, discurso - revela a ideologia do não-dito.

Começando pela esquerda, o primeiro redator, Carlos Wagner de Morais, acavalado em cima da sua máquina de escrever, o braço dobrado e tenso sobre o carrinho da máquina, como se fosse uma canga, óculos fundo de garrafa que lhe aumentam o ar meio aparvalhado, o pescoço enterrado no peito, guarda uma expressão desconfiada de quem vai sair correndo ao primeiro sinal de perigo. Ironicamente, é o que mais tem cara de subversivo de verdade, isto é, suspeito, porém, a julgar pela aparência, desaquinhoado da valentia e desfaçatez apregoadas no texto.

Ao lado de Wagner está o segundo subversivo: o redator José Fontoura da Costa, o velho, como chama Neil. O olhar um pouco arrogante, mirando de cima, o terno e gravata passando uma certa hierarquia em relação aos desengravatados da foto, a segurança com que segura a máquina com o braço estendido, a mão esquerda delicadamente encostada na lateral da máquina, sem pressionar, apenas garantindo que o carrinho não saia do lugar, indica um sujeito firme porém, se necessário, flexível. Um verdadeiro subversivo falso, eu diria, se não soubesse que Fontoura de fato havia financiado os verdadeiros subversivos com parte do seu polpudo salário da Norton, tendo sido inclusive preso e interrogado por três dias.

No meio do grupo, à esquerda de Fontoura, atrás de uma régua-tê e dentro de um par de calças listradas que o fazem parecer apoucado de inteligência e com jeito um tanto clown, o diretor de arte Aníbal Guastavino, olhar mansamente ovino e cara de bem-mandado, se mostra incapaz de matar uma mosca com sua régua-tê cruzada no peito feito um escudeiro distraidamente de guarda, mais se escondendo aperigo atrás da arma que se mostrando perigoso marginal.

Imediatamente ao lado de Aníbal, ele, o chamado geniozinho da criação, subversivo-mor, Neil Ferreira. Não parece haver dúvida nenhuma de quem lidera o grupo. Ainda que de menor estatura que seus pares, a postura, o olhar cortante, a cabeça erguida desafiadora, o terno e, principalmente, o que sugere o punctum da foto - segundo Barthes, punctum quer dizer picada, pormenor, o detalhe que bole e denuncia " a foto dentro da foto" - é a forma com que Neil segura a sua máquina de escrever: pela base e bem na pontinha dos dedos. Como se não fosse pesada e ao mesmo tempo dando a impressão de que, sim, ele estava no time, faria todas as promessas acontecerem, mas que não se enganassem: ele não sujaria as mãos com tudo aquilo. Seu corpo, talvez. Sua alma, jamais. Como fica evidente em Do porão ao poder ( 2007), o eterno outsider da propaganda brasileira.

E, por fim, último à direita, o diretor de arte Jarbas José de Souza, em uma elegante camisa listrada com gravata, segura suavemente a sua régua-tê pendurada displicentemente, em uma mão com os dedos entreabertos, indicando intimidade com a ferramenta, um ar interrogativo e de cima para baixo, como quem indaga: quem é você, leitor? Conforme Neil, foi ele, Jarbas, quem fez a foto, daí talvez, se for bem observado, percebe-se que o dito fotógrafo está um passo à frente do seu par, Carlos Wagner de Morais, na outra ponta, não só não completando harmoniosamente a meia-lua como praticamente extrapolando o corte superior da foto, de tão em primeiro plano que se coloca no olho do leitor. Jarbas parece o menos comprometido em ser politicamente um subversivo, ainda que se saiba ter sido ele dos primeiros adesistas ao novo discurso revolucionário de Bill Bernbach, ex-presidente do Clube de Criação de São Paulo e também conhecido como o expert em tipografia, fundador da All Type - empresa de fotoletras e fotolitos. Talvez Jarbas estivesse mais para subversivo técnico, pragmático, sua postura na foto levando a crer que dedica mais paixão ao tête-a-tête com a prancheta do que com consumidor.


E tudo acabou em pizza

Como a história acabou, na Censura? Em nada, reporta Neil ( 2006)


O anúncio foi um atrevimento, sim. não me lembro da revista ter sido recolhida, mas eu fui "recolhido" (gentilmente, anote-se) a um escritório de censura, na rua Xavier de Toledo, ao lado do prédio do Mappin, centrão de São Paulo. Falei com o diretor, um militar em roupas civis, que me perguntou muito sobre "o que eu queria dizer com aquele anúncio e por que tinha escolhido a palavra "subversivos" tão grande no título". Repeti tim-tim-por- tim igual explicação que havia dado ao Geraldão antes do anúncio sair. Queria falar sobre a agência, como estava no texto, seus profissionais, como estava no texto, o que os clientes poderiam esperar, como estava no texto. Sobre a palavra "subversivo", falei horas, não fui sequer ouvido. Então apelei e falei, "olha coronel, essa palavra equivale a mulher pelada no anúncio, é só para chamar atenção". Ele me ofereceu água, cafézinho e no maior
cavalheirismo me disse "porra por que não falou isso antes ". E todo mundo foi pra casa dando risada. ( FERREIRA, 2006, por email)


In-conclusão

Nesse breve " gozo do signo imaginário" - como chama Barthes (1987:41) -ao desvendar o " véu pintado" do discurso propiciado pela semiologia, a teoria barthesiana do poder embutido na língua mostrou-se útil para a compreensão do recorte dialético histórico estrutural.

Através do estudo desse anúncio considerado rito de passagem, não só da propaganda como de um dado corpus filosófico, político, textual, é possível compreender melhor não a língua - missão impossível, segundo Barthes (1987), pois não se pode sair dela para dela falar - mas a vida brasileira, em um determinado momento histórico e em uma dada estrutura, principalmente na comprovação de que na ditadura militar, apesar dos convites da propaganda oficial, o brasileiro foi instado a participar da vida política apenas e tão somente por uma via: a do consumo. Discurso, aliás, assumido com generosidade pela propaganda, aqui representada pelos Os subversivos. <>

NOTA: ( Texto completo do anúncio)
Já era tempo de denunciá-los à nação. Olha as armas terríveis que eles têm nas mãos. São armas que podem abalar governos ou vender produtos. Com elas, esses homens são capazes de mudar a história de um país ou a história de um produto. Basta apertar um botão. De uma máquina fotográfica. Uma câmera de cinema. Um aparelho de TV. A tecla de uma máquina de escrever.

Eles usam essas armas para gerar insatisfações, criar descontentamentos, acender desejos (...).Você passa a olhar o seu vizinho porque ele comprou um carro novo. Sua mulher passa a olhar a geladeira velha (...). Seu filho barbudinho passa a (...) a velha geração porque você não quer ver o último filme do Jean-Luc Godard. Sua filha passa a odiar você porque você admite as mini-saias bem minis, mas só para as filhas dos outros.

São homens tão perigosos que só poderiam estar em dois lugares. Na cadeia. Ou numa agência de propaganda. A Norton Publicidade conseguiu pegá-los antes. Agora eles estão na Norton, de armas em punho.

A sua ideologia está infiltrada em uma das principais cidades brasileiras, onde a Norton mantém focos de subversivos plenamente insatisfeitos. Subversão não é um negócio novo na Norton. Há 25 anos que ela vem unindo todos os recursos de comunicação para subverter a vida das pessoas.

Eles vão tentar convencer você a morar numa casa própria. Ou a mudar para uma casa melhor. Vão tentar convencer você de que ar condicionado num país tropical é necessidade, e não luxo. Vão tentar convencer você a concordar com a sua mulher, quando ela quer um fogão avançado. Calçar um bom sapato. Comprar coisas boas numa grande loja. Movimentar a sua conta num banco sólido. Vão tentar convencer você a ter a coragem de ambicionar tudo aquilo que torna a vida um pouco melhor. (...) comendo um chocolate, por exemplo. Ou tomando uma bebida.

Mas eles sabem também que você pode ser um conformista. Esse é o risco que eles correm. E ninguém é subversivo sem correr um grande risco. Norton Publicidade S.A. 25 anos de eficiência e sinceridade. São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza. Por enquanto.


(Cliente: Norton Publicidade S.A.; Veículo: Revista Propaganda;
Data de veiculação: Janeiro de 1969.)
..........................................................

Referências:
BARTHES, Roland - Aula. São Paulo: Cultrix, 1987.
- O prazer do texto. São Paulo:Perspectiva, 1999
- A câmara clara. Lisboa:Edições 70, 1989
- Elementos da semiologia. São Paulo:Cultrix, 1999
CRAIDY, Maria da Graça - Do porão ao poder. A ascensão dos criadores publicitários brasileiros ( 1970-1990) Dissertação de Mestrado. PPGCOM/PUCRS, 2007.
FERREIRA, Neil - Depoimento por email à autora. São Paulo: 2006 e 2007.
FICO, Carlos - Reiventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997
GANDRA, José Ruy - História da propaganda criativa no Brasil. São Paulo: CCSP, 1995. <> ( Graça Craidy)

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6 comentários:

  1. Que maravilha de texto!
    A análise do específico anúncio contextualizado na história do país, tudo feito com uma escrita dinâmica!
    Engraçado é que ler o que vc escreve é como se eu te estivesse escutando. Com tua voz mesmo!
    Adorei!
    Bj
    Bruno Stelet.

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  2. Roberto Duailibi escreveu:
    Prezada Graça,
    Que ótimo estudo esse do anúncio "Os subversivos".
    O Barthes ficaria orgulhoso de você, aluna que aprendeu tudo. É um olhar inquisidor e repleto de descobertas sobre uma página de revista.
    Parabéns! O Neil vai ficar com o ego mais inchado ainda.
    Abraços.

    Roberto

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  3. Jose Fontoura da Costa escreveu< em 04 de fevereiro, às 09:27:
    Querida Graça,excelente o seu trabalho sobre os sub....Talvez vc não saiba (alias, poucos sabem) mas fui "convidado" por dois senhores a visitar a OBAN, na c ompanhia de mais dois colegas, o Marcio e o Luiz Eça (foram tão gentis que nos levaram numa veraneio... provavelmente presente do Bolingger). Visita que durou 3 dias numa cela pequena com mais 25 "convidados"e interrogatórios em horas inadequadas, lá pelas 3 da matina!Tudo isso porque descobriram que eu financiava ( o que é verdade) os amigos do Marighela.Como vc deve imaginar eu ganhava uma nota preta na Norton e queria que os milicos se fod......Na época saiu uma noticia no Estadao,com o seguinte título: Publicitário preso:financiava o terror.O capitão que me interrogava ficou estarrecido com o meu salário. Depois, como eu abri o jogo contando que dava mesmo a grana para os meus amigos foderem os milicos, me deram um ponta-pé na bunda (de verdade) e me transferiram para a Policia Federal,onde fiquei mais uma noite e fui liberado com ameaças tipo: se continuar financiando esses fdp vc vai para o pau de arara,etc..Parabens pela matéria Para finalizar, o texto do anúncio OS SUBVERSIVOS é de autoria do Carlos Wagner de Moraes (já falecido), irmão do escritor Fernando Moraes, e certamente o melhor redator que a publicidade já conheceu. Tudo sob a batuta do grande Neil FerreiraBeijos do Fontoura.

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  4. Neil Ferreira escreveu:

    OLÁ GRAÇA,

    "E, ainda, revelar como eles transformaram não apenas os produtos e serviços que anunciavam em mercadoria, mas também a si próprios, criadores, convertidos em manufatura espetacular, evidenciando a banalização do ideário vigente por meio de um pseudo discurso contra-ideológico que parecia desafiar as perigosas regras militares. Mas, não."

    Poxa, e eu que achava que estava apenas escrevendo um anúncio...

    Neil Ferreira

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  5. Jose Fontoura da Costa escreveu:

    Minha querida, quando vc analisou a foto dos subversivos cometestes uma grande injustiça comigo, taxando-me de "falso subversivo".Dos 5 era eu o ÚNICO que financiava os que lutavam contra os milicos.E fiz isso porque tamanha era a minha revolta e indignação com o que ocorria no Brasil.Bjs do Fontoura

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