Poesia: Coração Delivery


Minha entrega é sempre tênue/ e teme/ como quem mede o fogo/ e treme/ relembrando antigas cicatrizes/ Quem já queimou as asas muitas vezes/ não voa livre/ e nem é leve o retomar do ato/ Todo o doído de outros vôos prende o pé/e embota o meu querer alado/ O corpo todo ainda arrepia o arrependido/ e o aprendido ainda congela o meu avesso/ Medo do corte, da dor, do repetido/ do tantas vezes reprisado sad end/

Mas o lobo é caricato: chega rindo/ vestindo a fantasia do quem sabe/ E a estalactite da minha alma se comove/ e pouco a pouco se derrete/ expondo a carne/ E os meus veludos, minhas floreiras se entreabem/ com a esperança receosa de um verão/ E quando o sangue corre mais rápido em minhas veias/e quando as águas do meu ventre se libertam / estanca o sol, a lua, a luta/ E antes que o galo se levante e cante três vezes/ tudo é negado/

E vem o luto, a tarja, o pejo, a mão vazia/ E a velha ratoeira enferrujada/ aperta e me tortura novamente/ num melancólico deja vu de tantas vezes/ O mesmo telefone que não toca/ a camisola branca inútil na gaveta/ uma taça vazia pedindo vinho/ E eu de novo catando meus pedaços/pra remendar mais um remendo em minha paz/ pra disfarçar o meu cansaço/ e pôr em cena mais uma vez todo o meu aço.

( Graça Craidy, 1995)

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Maffesoli avisa às tribos: a privacidade c'est fini.

Foto: Denis Rouvre

Enquanto boa parte do mundo intelectual meneia a cabeça profetizando o fim dos tempos causado pela mudança drástica dos valores - o visual adquirindo importância inimaginada em detrimento do conteúdo, a estética se apossando da ética, as identidades se transformando em espécie de roupas banais no armário do cotidiano, os sonhos de um futuro estável e feliz se viniciusdemoraesizando em cenas rápidas, atrevidas e conformadas de infinito-enquanto-dura - o sociólogo francês Michel Maffesoli, do alto de sua impecável gravata borboleta, nem se abala.

Para ele, tudo faz parte de uma mutação natural, troca de comando de uma sociedade moderna exacerbadamente racionalizada para o revezamento com o exercício do seu oposto: uma sociedade pós-moderna reemocionalizada que retoma um modo arcaico e pré-individualista de viver.

Sai Apolo, volta Dionísio.

No seminário de metodologia, epistemologia e pós-modernidade que ministrou na PUCRS, em maio de 2006, sob o título Sociologia compreensiva, razão sensível e conhecimento comum, pontuado por estratégicos pitstops etimológicos que foram resgatando, uma a uma, as raízes das palavras-chaves do seu discurso, Maffesoli não deixou dúvidas: para ele é, mesmo, o fim dos tempos. Fim dos tempos modernos. Da razão cartesiana. Da identidade fixa. Do individualismo. Da privacidade. Do conceito. Do monoteísmo. Da eternidade no futuro. Da explicação. Da relação causa-efeito. Da metafísica. Da grande ideologia. Do drama. Do falo. Da sexualidade burguesa produtiva. Da verticalidade do poder. Da Lei do Pai.


Mas, não há motivos para se desesperar, ele alerta, aforismático: " o fim de um mundo não é o fim do mundo".

Em seu lugar, são bem-vindas a emoção e a intuição, a identificação plural e mutável das personas e suas máscaras, o tribalismo e a comunidade, o grupo e a exposição pública, a histeria e a orgia coletiva, a noção, a metáfora e a compreensão, o cotidiano e as multicausas, a invaginação e o ventre, a phisis, o politeísmo e as pequenas ideologias, a horizontalidade da potência, a tragédia, o paradoxo, o cybersexo, o instante eterno e a Lei do Irmão.

Maffesoli gosta tanto dessa revirada no planeta que chama o momento atual de reencantamento do mundo, onde o mito de Dionísio embriagadamente aciona os sentidos e convida ao desfrute da vida sem metafísica. Bem à Nietzche ( 1983), por quem o francês se declara tão influenciado que, a fazer justiça, deveria citá-lo três, quatro vezes em cada página dos seus livros: " Nietzsche é como um par de óculos para mim", diz, " ele está em mim como o bebê que suga a mãe".

O método: binóculo metafórico.


Para entender o que se passa hoje, Maffesoli aconselha o pesquisador a colocar-se no caminho (etimologia da palavra método) da sociologia compreensiva como sugere Georg Simmel - outro admirador de Nietzsche - olhando para tudo de relance, feito um relâmpago, com uma olhada sociológica que se posiciona " bem longe no passado para poder enxergar bem longe no futuro", e, também - citando Simmel, Weber e Nietszche - " buscando a profundidade que se encontra na superfície das coisas". Isto é, investigando aquilo que está no nariz das pessoas, mas ninguém vê: " precisamos compreender o que está escondido e ao mesmo tempo o que está evidente", ensina Maffesoli.

Só assim se apreende o espírito do tempo, o paradoxo da não contemporaneidade que se entrelaça e se esconde no cotidiano, como indica a frase do pintor abstrato holandês Karel Appel, para Maffesoli um claro exemplo de verdadeira atitude compreensiva: " o olho deve estar pronto para ouvir ; a rua é o meu atelier."

Tal qual Morin (1999), que abomina o positivismo nas ciências humanas e enaltece o método da complexidade - aquele que incorpora as tripas - Maffesoli desgosta do paradigma da sociologia explicativa que separa, desviscera, " retira as dobras" ( etimologia de explicare) e que usa a via reta da razão, conforme Thomas Kuhn, para ir direto ao objetivo, mas deixa na beira da estrada as bagagens que pesam, como o imaginário, por exemplo. Bagagens essas - tal qual as tripas - fundamentais para compreender ( cum prehedere: juntar o que foi separado). Aliás, para Maffesoli, compreender envolve inverter o processo: em vez de analisar, dissecar, apartar, que venham generosos verbos como abarcar, cingir, abranger, num retorno ao noturno do imaginário como queria seu outro mestre francês Gilbert Durand.


Nisso que Maffesoli chama de " deslizamento do conteúdo para o continente", a razão cognitiva da Modernidade dá lugar à razão sensível da Pós-modernidade, a um saber que o sociólogo afirma ser da ordem do saber animal e não passa pela cognição, mas pela conscientização da pele - que, afinal, dá forma ao corpo, ele lembra - convidando o pesquisador a interagir com a phisis em vez de ir além da phisis, a entrar na matéria, praticando o que ele chama de sociologia da pele, desistindo de decidir autoritariamente o que é ou não realidade, mas fazendo o modesto papel de moldura que apenas realça o objeto, não se apodera dele, para " posée bellement le pròbleme", ele diz, usando expressão de Aristóteles.

Pós-modernidade: arcaica e renascentista

Mais de uma vez, no decorrer do seminário, Maffesoli desmasculiniza os tempos atuais e, quando não fala em invaginar, insinua a bissexualização, reconhece o hedônico não funcionalista do sexo sem o fito de procriar, e inclusive, se movimenta no discurso feito a categoria gênero de certa forma houvesse se tornado obsoleta. Segundo ele, tudo o que antes, na Idade Moderna, foi espada, falo, corte, vertical, agora, na Pós-moderna, se horizontalizou. A começar pelo poder, que - de novo à la Nietzsche - vira potência, no sentido de vontade de auto-superação, de criar, de fugir do rebanho.


O sociólogo francês decreta também o ocaso do monoteísmo, de um Deus único poderoso, monoideísmo ou monotonoteísmo - segundo sarcástica expressão nietzscheana - denunciando que " o monoteísmo é uma espécie de saque, pilhagem epistemológica", porque empobrece o imaginário coletivo, impõe uma só forma de pensar e ser.

Em paradoxal posição politicamente correta, Maffesoli apregoa a volta à diversidade dos deuses como antídoto contra a destruição da biodiversidade e a dicotomização do mundo, que separa o eu do Outro, a natureza da cultura.

Essencial em Maffesoli é entender a sua postura de respeitosa observação, abrindo mão de conceito em favor de noção, metáfora, fórmulas que ele reputa menos totalizantes para catalogar a vida. Para ele, o papel do pensador é apenas cristalizar o que já está na cabeça das pessoas, dando-se conta de que as coisas se apresentam sempre em duplo sentido, como se tudo estivesse, ao mesmo tempo, ligado e separado, feito as famosas ponte e porta de Simmel, uma fechando, outra ligando: " Não sou eu que vou criar o que estou nomeando, mas vou fazer com que aquilo que já existe seja destacado", ele esclarece.

Onde Lipovetsky ( 2004) enxerga hiperindividualismo como uma característica da Pós-modernidade, Maffesoli vê a saturação do indivíduo, possibilitando a emergência da pessoa - isto é, da persona e de suas máscaras - com múltiplas identificações, nomeadas de sinceridades sucessivas no glossário maffesoliano.


Contra a solidão das grandes cidades tão estudada por Simmel nas primeiras explosões urbanas do século 19, Maffesoli detecta um arcaico desejo de tribalismo, de partilha coletiva, um modo de estar junto orgânico, que ele soma com mais dois arcaísmos: um, já citado, do retorno aos valores dionisíacos hedonistas e outro, filho da globalização, do retorno ao nomadismo, que traz embutido o bárbaro selvagem pós-sedentário da megalópole.

Sexo, mentiras e dvd.

Em relação ao sexo, especialmente ao cybersexo, o francês relata que há uma nova erótica social facilitada pela tecnologia e pela internet e que a prática do sexo virtualizado funciona como um cimento social, ligando as pessoas, sem culpas, remorsos, preconceitos, apenas lúdicos e bem-vindos exercícios do imaginário.

Como o antropólogo Néstor Garcia Canclini ( 1999), que nomeia glocal o mix intercultural fruto da negociação entre o tom local e o estrangeiro globalizante, Maffesoli confirma: a tendência é misturar, sem pudores, raízes com novidades, mixórdias culturais de, por exemplo, feijoada com McDonalds.

E a privacidade, a qual o francês lembra ser uma invenção burguesa do século 19, que economizava tudo, desde os bens até a própria intimidade, está com os dias contados. Vide os blogs, os reality-shows, a Orkut, o Facebook. Segundo ele, há uma nova onda dionisíaca de obscenidade pós-moderna, que tudo mostra, tudo precisa exibir compulsiva e publicamente, no desejo de partilha.


Maffesoli critica a visão antivisual de Guy Debord ( 1967) com sua categoria espetáculo e a de Jean Baudrillard ( 2002), com sua categoria simulacro, aos quais ele chama de " os últimos marxistas" e lamenta também o epíteto do que o acusam seus desafetos, alienado, o excesso de severidade, o elogio da racionalidade e a falta de vocação hedonista - aliás bastante típica de uma certa esquerda vintage.

Para explicar o porquê de tamanha explosão do imaginário ( palavra originada de imagem, diga-se), Maffesoli faz um esforço lógico de causa-efeito. Devido ao movimento iconoclasta da Idade Moderna, que sufocou e destruiu o valor da imagem em favor da importância do espírito, da razão, da explicação, agora se propicia o ressurgimento das forças arcaicas naturais arquetípicas que atravessam os tempos amordaçadas, mas um dia se revoltam e renascem, exatamente no momento em que a humanidade de novo permite a estetização da existência: " A estetização é a rebelião do imaginário", constata.

Conforme Maffesoli, tatuar o corpo, adorná-lo com piercings, teatralizar rituais coletivos, vivenciar tragédias em manifestações viscerais de histeria grupal - como a Copa do Mundo, por exemplo - permite aos indivíduos compartilhar uma vibração comum que no seu modo de ver homeopatiza a morte em festas que intuem a não-eternidade do humano. Ao intuirem a sua mortalidade, os indivíduos a substituem pela intensidade do instante eterno, onde o bálsamo da estética rege a ética e o que verdadeiramente une é o simbólico.<> ( Graça Craidy)


Referências:

- BAUDRILLARD, Jean - Tela total. Porto Alegre: Sulina, 2002.

- GARCIA CANCLINI, Néstor - La globalizacion imaginada. Buenos Aires: Paidós, 1999.

- DEBORD, Guy - A sociedade do espetáculo. [ 1967] São Paulo: Contraponto, 1997.

- LIPOVETSKY, Gilles - Metamorfoses da cultural liberal. Porto Alegre: Sulina, 2004.

- MAFFESOLI, Michel - Sociologia compreensiva, razão sensível e conhecimento comum. In manuscritos colhidos no seminário de mesmo nome, por Graça Craidy, 43 páginas, Porto Alegre: PPGCOM PUCRS, 2006.

- MORIN, Edgar - O Método 3. O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 1999.

- NIETZSCHE, Friedrich - Sobre verdade e mentira no sentido extramoral . [ 1873] p.43-52, Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. 1983

- SCHILLING, Voltaire - Georg Simmel e a filosofia do dinheiro - Círculos sociais. Acesso em 17/06/2006, 12:38. Disponível em : http://educaterra.terra.com.br/voltaire/index_cultura.htmSIMMEL, Georg -

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Abra a felicidade. Não abra uma coca-cola.

Acabo de assistir ao último comercial da coca-cola no You Tube e preciso urgente de um plasil.

Os irresponsáveis foram pra dentro de uma sala de aula cheia de crianças que ficam cantando uma musiquinha feliz enquanto letreiros nos contam só boas notícias.

As notícias são todas meio fake, meio pífias, meio inconfrontáveis. Tipo: pra cada tanque que se fabrica no mundo, há X mil bichinhos de pelúcia fabricados. Pra cada muro que ser ergue, X mil pessoas põem capachos de boas-vindas em suas portas. Pra cada bolsa de valores que despenca existem dez novas versões de What a wonderful world. Pra cada pessoa corrupta há 800 doando sangue. Pra cada cientista criando uma arma existem 10 mil mães fazendo doces. A palavra amor tem muito mais resultados no Google que a palavra medo, blá, blá, blá.

E a gente que está assistindo fica ali, de campana, só esperando. Então, vem o golpe: pra cada arma que se vende, 20 mil pessoas partilham uma coca-cola. Ah! Por tudo isso, há razões para crer em um mundo melhor. Ah! 125 anos abrindo a felicidade. Ah!

Meus sais de fruta, por favor! Lá vem eles de novo com essa história de felicidade.

Faz tempo já que ando indignada com essa apropriação indébita, cínica e caradura da coca-cola, da categoria "felicidade". Não sei se você percebeu, mas, de uns tempos pra cá, a coca-cola deu de se autodenominar "felicidade". Começa sempre com uma conversinha mole boazinha de quem entende você, seus sonhos, seus desejos perepepê perepepê perepepê e acaba sempre em uma conclusão vulgar, barata e oca de "abra a felicidade, abra uma coca-cola".

Ora, vão tomar vergonha na cara! Fe-li-ci-da-de? Fala sério, marqueteiros da coca-cola...Vocês têm a cara de pau de chamar uma garrafa de um xarope preto esquisito de suspeita fórmula secreta cheio de acidulantes, espessantes, tonalizantes e sódios e outras mil porcarias viciantes, de felicidade? Vocês têm a coragem de vir a público com essa conversa pra boi dormir de abra-a-felicidade e nem ficam vermelhos?

Presumo que antes de virem encher nossos olhos e ouvidos com essa prosa pobre e equivocada, vocês gastaram meses pesquisando o que dizer, auscultando os mercados, adaptando os approaches às línguas locais etc etc etc. Tudo aquilo que quem opera em publicidade sabe muito bem que antecede a ação de grandes contas. Tanto trabalho pra vir depois nos aviltar com esse nojo de "abra uma coca, abra a felicidade?". Quer dizer que não teve nenhum sujeito menos alucinado na reunião de marketing que questionasse esse discurso devil-mental, alertando: - guys, acho que dessa vez fomos longe demais?

Me pergunto quando foi que nós consumidores do terceiro milênio concedemos a fabricantes hegemônicos globais como a coca-cola o direito de transformar nossas vidas em uma grande e obsoleta mercadoria? Quando foi que demos a chance a um bando de marqueteiros e publicitários inconsequentes e sem noção de ridículo achar que podiam despejar essa bobagem goela abaixo dos nossos jovens e crianças, como se fosse uma notícia fantástica? Como se a felicidade viesse em garrafa. Como se a felicidade fosse comprável. Como se alguém pudesse ser o detentor mundial dela e a pudesse revender mundo afora, com todos os copirraites.

Por mim, podem morrer abraçados à essa pretensa felicidade. Arreda! E nem vem de abra-a-felicidade pro meu lado, que eu tenho corpo fechado contra coca-cola. Me criei tomando limonada, vitamina C na veia, beibe.
Foto: C.F.
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Cala a boca e beija.

Um dos grandes mistérios, entre os milhares que habitavam minha cabeça, na infância, era o beijo na boca. Que coisa esquisita era aquilo de colar a boca? Só tinha visto no cinema, fazendo fundo pro The End. No cinema e um dia também pelo buraco da fechadura, que é quase a mesma coisa.

Meus pais, avessos a manifestações apaixonadas em público, tinham se trancado no escritório. Intrigada com o segredume deles, espiei pela fechadura da porta. E lá estava, que nem filme de Doris Day com Rock Hudson, meu pai beijando a minha mãe na boca, o corpo curvado e a cabeça torta.

Ficou aquilo registrado em meu olho voyeur, misto de estranheza e encantamento, como se eles fossem personagens. Na vida, não se beijava assim. Afinal, fecharam a porta, deve ser de fazer escondido.

Quantas coisas pertenciam ao reino do fazer escondido, nas infâncias dos anos 50... Não à toa que meu gibi predileto era o Gato Felix com seus indefectíveis pontos de interrogação, cipós que me jogavam pra lá, pra cá nos dias e noites daqueles anos pretensamente dourados. Aliás, quando vejo a Graúna do Henfil, me enxergo criança: sempre dois olhões estanhados especulando ao redor, fazendo demandas esquisitas que o mais das vezes deixavam os adultos muito desinquietos.

Descobri nas priscas que o melhor era esconder minhas perguntas e tratar de investigar sozinha as respostas. E a grande questão do beijo na boca, por exemplo, foi uma dessas que ocupou boa parte das minhas jornadas detetivescas infantis.

Eu fazia testes no espelho. Minha boca na boca refletida. Era gelado. - Não deve ser isso. Beijava o braço: - Braço?...Nhé! Quando virei adolescente, era a mais atenta ouvinte das minhas amigas saidinhas que já namoravam: - beijou? beijou! na boooooca?!
Elas contavam que sim, poderosíssimas. Mas nada de revelar os comos, as nojentinhas.

E a curiosidade somada à ignorância permanecia. E junto com aquela certeza de que era coisa de se fazer escondido, agregou-se um novo dado: a vergonha de não saber. Pior, ainda: a vergonha de ser descoberta como desconhecedora da prática do ofício. O que resultou num comportamento pessoal no mínimo estranho aos eventuais admiradores mais ousados que procuraram meus lábios, em vão.

Não teve quem atinasse que eu fugia com a boca, errando o alvo, não porque desquisesse ou fosse rígida, mas pelo embaraço terrível de me cair a máscara de virgem burra. Logo eu, tão inteligente. Virgem, sim. Burra, jamais!

Minto. Graças aos santos protetores da adolescente infeliz, houve um único bravo cavalheiro que não aceitou aquele negaceio como rejeição.

Recém eu tinha ido de mudança para Porto Alegre, mais feliz que passarinho alforriado da gaiola. Ia fazer faculdade, tinha virado gente grande, 19 anos, livre enfim de dar satisfações. Lembro que nem olhei para trás, adeus, meu pai, minha mãe!

Era sábado à noite, caminho a pé pra casa após horas num barzinho com uma amiga e, de lambuja, novo acompanhante, alto, bonito e loiro, que parecia bastante interessado na risonha coloninha aqui, acabada de chegar do interior. (Imagina, ele tinha comprado até rosa vermelha pra mim! Meus pés afundavam em algodão-doce.)

Chegamos ao prédio da minha amiga, ela cumplicemente sumiu no hall do elevador e eu fiquei ali, enleada na conversa murmurante do meu herói urbano. Num repente, do nada, ele aproximou seu rosto do meu e grudou os lábios imã em minha boca. Assustada, tentei desviar. Ele não desgrudou milímetro.

Pânico! Pânico! Tentei fugir: - ele vai perceber que eu não sei, socorro, pai! que vergonha, mãe! Dois braços muito mais fortes que os meus me mantiveram imobilizada contra o vão da porta de ferro do edifício.

Não deu nem tempo de eu metabolizar aquele pavor, já outro susto se emendou: língua!!!...Como-assim, lín-gua? Nunca na vida antes alguém sequer insinuou que beijo de boca continha língua. O que seria aquilo, meu deusinho do céu?

Feito barbárie em portão de castelo de Hagar, a língua do moço me invadiu a boca com valentia e vigor e, não bastasse o inusitado do objeto-função, começou a movê-la suave, roçando-a em minha própria língua e céu-da-boca e dentes e lábios.

Enlanguesci. De estado sólido mudei para puro líquido. E, se no começo fiz corpo duro, prenhe dos medos ancestrais, aquele meneio molhado, sensual e insólito me alquebrou a vontade de resistir, para sempre, acendendo ali quereres outros que me transformaram, do momento em diante e para o resto da vida, de menininha boba em arrebatada beijadora mulher.

Como diriam os Tribalistas: eu já sabia beijar de língua. Agora, só me restava sonhar. (Graça Craidy)

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Sinto muito. Volte na outra encarnação.

Um dia, eu me dei conta:
- " Eu sou um número infinitamente ímpar,
na órbita dos pares, dos dias e dos bares..."

Ficou aquele pasmo rabiscado ali, num guardanapo de bar, a tinta da caneta borrando melancólica o branco do papel, choro azul.

Na verdade, essa constatação agora traduzida em palavras, já de há muito tinha me ocorrido, eu criança ainda, uns cinco anos, a querer alcançar o propósito da minha personagem naquele microuniverso chamado família, mimetismo da vida grande lá fora: pai, mãe, avó, irmãos, irmã.

Cedo compreendi os espaços de cada um. Meu pai, o poder e a provisão. Minha mãe, o fiar e o afeto. Minha vó, reza e silêncio. Meu irmão mais velho, a continuação do sonho do patriarca. Minha irmã menor, boniteza e fragilidade. Meu caçula, mimo e rebeldia. E a mim, segunda de quatro filhos, o que sobrou? Inteligência e riso. Tudo temperado por uma velada competição, exercício prévio da dura guerra que se travaria lá fora, mais tarde.


Eu bem que queria ser linda. Ou, quem sabe - como boa Electra - continuação do sonho de Laio? Mimada e medrosa certamente garantiria bom retorno. Mas, no julgamento do ao redor, me pareceu mais prudente e produtivo ser solitária precoce e conquistar minha independência à custa de ler, rir, surpreender e observar.

Caminho difícil, o da solidão escolhida. Você sabe que precisa se fortalecer de valentias inimagináveis pra superar medos de lobisomens e desamores. Logo, logo você percebe que escolher um papel é quase um grilhão consentido.

Em família, cada um é cobaia de suas próprias decisões e feitor das escolhas alheias.

- Você quis ser inteligente e corajosa? Ah, não combina com beleza e temores. Sinto muito, volte na outra encarnação...

Não tinha, mesmo, como andar para trás e desarrepender da trilha eleita. Era quase como um caminho só de ida. De modo que vesti a fantasia e segui, juntando pedras pela estrada, imaginando um dia, como João e Maria, poder voltar, Maria que sempre fui.


Por mais que risse, brincasse, social e cheia de dentes, meu caminho foi todo tempo solitário. A todos olhava como se estivessem do outro lado da rede, em um jogo onde os pongs de lá encontravam sempre resolutos e defensivos pings daqui.

A solidão é uma escola doce e cruel. Ao mesmo tempo que fortalece você e desperta uma certa inveja nos gregários, eternos dependentes uns dos outros, faz também você correr o risco de enrijar demais, como um carvalho antigo, candidato a cair de um só golpe e com forte estrondo, no dia em que o destino irônico o apanha distraído, sem sua velha fantasia de super-homem.

Durante muito tempo, menti. Pros outros e pra mim mesma. Eu era a guerreira solitária que a tudo enfrentava e nada temia.

Percebia no olhar do meu pai uma desconfiança soslaiada com meu comportamento autônomo um tanto masculino, para a época. Constatava nos olhos da minha mãe a admiração incontida que só uma fêmea submissa dos anos 30 entenderia o por quê.


Manipulava minha irmã bonita com a força da minha coragem forjada e a bagagem colorida dos meus livros, em vinganças diuturnas pela inveja de não poder ser também encantadora como ela.

Grudava em meu irmão mais velho pensando poder ganhar por osmose o salvo-conduto para o mundo que só os machos faziam jus, eles, os nascidos X com X.

Ai de mim, que escolhi ser gauche na vida! Uma gaúcha gauche pode soar eufônico e drummondiano, mas tem seu preço.

Você garante o seu direito universal de ir e vir, porém sente uma falta inexplicável de cumprir o trajeto de mãos dadas.

Você adora dizer ninguém-me-manda, no entanto anseia por súplicas de cafunés e cúmplices de quefazeres.

Você compra uma cama enorme, alcatifa de travesseiros, depois dorme num cantinho, encolhida pelo frio de tão improdutivo latifúndio.

Como todo pobre ser humano, carregava no meu alforje a dor e a delícia de conviver com a incoerência dos meus desejos, setas invertidas que me atraiçoavam, desmentindo volta e meia meu arrebatado discurso libertário.


Aprendi a viver sozinha, a ir a cinema, teatro, feira e restaurante comigo mesma, a pessoa que mais me ama. Como ironizo: minha melhor companhia.

Desenvolvi uma técnica de sustentar o olhar dos outros, em público, com altivez e lisura, feito quem diz se-você-pensa-que-está-me-olhando-preste-atenção-porque-eu-é-que-estou-olhando-pra-você. Técnica perfeita: o interlocutor abelhudo sempre recua, intimidado.

Aprendi, também, a me levar passear e a atender aos meus quereres. Me pergunto: o que é que tu queres, menina Graça? E ela responde. E eu a mimo com tudo o que tiver vontade. E ela ri, ri, ri. Depois de mulher feita, aliás, me transformei em uma grande garota mimada. Me sagrei princesa, eu mesma minha própria primogênita e caçula.

Descobri que o bom da maturidade é saber que na vida sempre tem Plano B, Plano C, D, tantos quantos a criatividade construir e o coração ousar. Daí, o nunca desespero.
Viver é consequência do que se escolhe e, infinitas vezes, do que não se escolhe.

Viajei mundos sozinha. Taj-Mahal, só. Grécia, só. Esfinge, só. É muita beleza junta pra tanta sozinhez, diria o velho Rosa.

Mas, não me queixo. Ainda que hoje tenha entendido - embasbacada - que é possível ser inteligente e bonita, sei que no mais das vezes, não se pode ter tudo.


Por isso, sou geralmente feliz. Minhas janelas estão sempre abertas e deixam entrever a dança brejeira do voil das cortinas se entregando ao vento, como uma bandeira branca à vida e convite gentil aos possíveis companheiros de viagem que queiram me acompanhar em minha muito mais doce que amarga solidão.

" Sozinho? Mas eu não moro sozinho", respondeu à repórter enxerida o sábio poeta Quintana. E arrematou: "... Eu moro comigo!" ( Graça Craidy, 2003)

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A espiã de calcinhas de renda e saia de vagonite.

Eu devia ter uns 10 anos e não me conformava com algumas coisas.

Por que o mundo masculino parecia ser mais interessante que o feminino?

Por que meninos podiam sair, fazer e acontecer, sem dar satisfações?

E, principalmente, que mistério era esse que os dois primos metidos de São Paulo mais meu irmão se trancavam à chave no quarto de hóspedes todos os dias depois do almoço, que ninguém podia ouvir?

Um dia, resolvi tirar a limpo. Em minha fértil cabecinha, eu havia arquitetado um plano infalível: chegar antes deles no quarto, me esconder debaixo do sofá-cama aberto e ali ficar, mudinha e com os ouvidos bem abertos.

Depois, pra me escafeder, era só esperar os misteriosos saírem do quarto, coisa que faziam lá pelas duas e pouco da tarde, pois estávamos em pleno verão e eu sabia que eles não perdiam piscina de jeito nenhum.

Arquitetado o plano e colocado em prática. Mal o almoço terminou, subi rapidinho para o andar de cima da casa, rumo ao quarto de hóspedes, me joguei debaixo do sofá-cama, nem me importando em arrastar no chão minha linda saia azul de vagonite bordada. E ali aguardei a cachorrada, inconsequente que só.

Ouvi as vozes dos guris subindo. Primeiro ato: o primo Gilberto joga seu 1,85m de esqueleto sobre o sofá, me obrigando a fechar os olhos estoicamente, pra me proteger da poeira que caía sem clemência de entre os panos do velho sofá.

No instante seguinte, prendi a respiração pra não me sufocar com o chulé que vinha do sapato 44 que o mesmo querido primo - de apelido " Furinho" porque falava fazendo biquinho - teve a brilhante idéia de jogar, bem no espaço onde eu tinha me escondido.

Aí, vieram os diálogos. Finalmente seria descoberto o 4º mistério de Lurdes: o que os homens falam quando estão sozinhos?

Que decepção!...Frases completamente bobas e sem conteúdos secretos, do tipo será-que-vai-chover, passando por grunfs sonolentos, silêncios preguiçosos. Nada que prestasse! E o tempo passando. E neca! Cambada de inúteis.

Ouvi batidas na porta: "- Nelson, telefone da Maria Inês pra ti! " O bonitão conquistador do primo mais velho - que era a cara do Cary Grant ( suspiro!) - abandona seu posto na janela do quarto, pra atender. E os outros dois, meu irmão Paulo e o primo Gilberto, saem do quarto também.

Eu, terrivelmente desapontada com a pesquisa, mas ainda curiosa, em vez de aproveitar o ensejo e dar por abortada a missão, tive a pândega iniciativa de apenas trocar de lado, no debaixo do sofá, sabe-se lá com que intuito.

A esperta esqueceu que sofás-camas abertos ficam com um lado largo e o outro estreito. Pois, lá me enfiei no lado estreito do dito cujo – justamente o lado que dava pra porta - e aguardei a volta dos garnizés.

Voltou um, voltou outro, mas nem trancaram a porta. Cáspita! Sinal que não ia mais rolar segredos inconfessáveis, mesmo.

Nisso, minha mãe pára na porta aberta do quarto e eu só escutei, lívida e gelada, a voz dela pronunciando as palavras mais aterrorizadoras daquele malfadado verão de 61: - " Ué? O que é que a saia de vagonite da Graça está fazendo aqui?"

A morte teria sido mais doce. Vergonha das vergonhas!

Ao enxergar um pedaço azul da minha saia de vagonite que tinha ficado pra fora do debaixo-do-sofá, feito bandeira, minha mãe, intrigada, levantou a colcha que cobria o sofá e deu de cara com a cara-de-pau da filha gordinha espremida embaixo.

O máximo que eu consegui justificar para aquele ato injustificável foi me valer da minha famosa sinceridade kamikaze:- " Eu só queria saber o que eles conversavam quando se trancavam aqui no quarto!"

E saí do recinto sem olhar pra trás, com meu velho andar bamboleante, jogando toda a culpa do desastre na maldita saia de vagonite.


Surpreendentemente, não houve nenhuma punição. Nem materna nem paterna.

Meu único castigo: no resto daquela temporada, nenhum dos primos ou o irmão me dirigiu uma única palavra. 1961 foi o verão do desprezo total. ( Graça Craidy)
...................


Nota: vagonite.
S. f. Bord.
1. Espécie de bordado em que se introduz a linha entre os fios de um tecido especial a fim de formar desenhos decorativos.


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Como era gostoso o meu francês argentino

Vila Madalena, bar Piratininga, Sampa. Sentada sozinha em uma mesa de canto, à espera dos meus amigos, eu saboreava um cálice de vinho tinto, cigarro na mão, o olhar passeando ao redor lentamente como a luz giratória de um farol, no meu velho hábito de observadora solitária da fascinante fauna humana.

Acende, apaga, acende, apaga, o ritmo suave das minhas pálpebras descendo e subindo nos olhos pretensamente desatentos, marcava também o crescendo do radar dos meus ouvidos que pouco a pouco iam distinguindo os sons das conversas alheias, principalmente as que vinham da mesa em frente, onde um grupo de três amigos e uma moça esvaziavam, céleres, o whisky de uma garrafa de Buchanan's.

O ritual dos cubos de gelo retinindo no copo e logo depois o líquido dourado escorrendo entre eles, mesclado à mistura dos timbres das vozes, tornava a minha espera não apenas leve, mas intrigante.

Um dos vizinhos, especialmente, me atraía o olhar. Primeiro, porque falava mais alto que os outros, liderando a conversa em um tom irônico, dramático, debochado e de sofisticado vocabulário. Segundo, porque arrastava os erres das palavras, enganchando nas esquinas das frases, e eu - por auditiva e musical - fiquei curiosa em descobrir se era aquele erre de judeu de língua presa ou de estrangeiro.

Até a hora em que ouvi ele falando sobre a solidão dos urbanos, a dele maior que a de todos os outros: - Sou tão sozinho, cara, que a única que me beija na boca, todas as manhãs, é a tuba. E eu deixo, porque senão, nem ela...Pobre humanidade, a nossa, que não consegue se relacionar nem para fazer jus a um bom e merecido beijo na boca matinal!

Ri sozinha no meu canto daquele tom shakespeareano e fiquei pensando: - Nossa, um moço tão interessante e só tem uma tuba pra lhe beijar a boca? Aliás, quem será tuba: a empregada? uma cachorra? uma gata? ou uma tuba, mesmo, dessas de banda?

Tarde demais. O moço dos erres enganchados percebeu o meu sorriso e dirigiu-se, então, diretamente a mim: - E não é verdade? Você também aí, solitária como toda a humanidade, junte-se a nós, sente-se aqui e brinde conosco à saúde dos amigos, que isso é só o que conta hoje, neste domingo desolador. ( Desoladorrrrrrrr, ele falava, o erre rolando na língua, pra lá e pra cá.)

- Esse erre é de francês! - eu arquivei mentalmente, enquanto levantava e, com meu melhor sorriso, puxava minha cadeira até a mesa deles, avisando que esperava amigos, mas que teria prazer, sim, em fazer um brinde.

O francês, com os cabelos castanho aloirados, fartos e em desalinho, acompanhados de sedutores olhos castanhos avelã, tinha feições delicadas, harmoniosas, mas de traços claramente masculinos, acentuados por um nariz adunco.

Ao seu lado, a moça loira bonita, de cabelos longos e lábios bem desenhados, sorria amigável com seus dentes brancos e fortes, vestida de jeans e blusão, como quem foi à aula, não como quem vai ao bar.

Do outro lado da mesa, na parede, um baixinho minguado com voz estridente, dentes separados e uma franjinha infantil falava sem parar, como falam aqueles que nunca escutam os outros e tampouco são escutados: falam junto, falam antes, falam durante, falam depois.

E, finalmente, ao lado do esganiçadinho, um sujeito meio careca, atarracado, moreno e de fala mansa, vestindo uma jaqueta bege que já lhe parecia apertada, acompanhava o discurso do amigo cheio de erres, com um certo ar pachorrento de quem estava acostumado àquelas alegorias literárias.


Quanto mais vinho eu tomava e o francês falava, mais eu ficava interessada em seu discurso, porquanto único, desaforado, engraçado. Ele falava coisas do tipo:
- Sou casado, mas minha mulher sabe que eu é que não vou ficar me arrastando pela vida trepando com uma mulher só...Impossível, Mon Dieu, não há quem passe uma vida ao lado da mesma mulher e deseje ela pra sempre. C'est la mort!

Dei uma gargalhada do " arrastando pela vida" e comentei: "- Rapaz, você tem síndrome de argentino. Tudo é trágico!".... Ele me beijou a mão, pelo chiste. Atrapalhada com o entrevero dos nossos braços, derrubei a garrafa da água mineral espatifando-a no chão. Ao que o moço, generoso, emendou arremessando uma taça também, ao solo, em apupos alegres de santé! santé! àquele momento tão especial.

Meus amigos - um homem e duas mulheres - acabaram também se juntando à mesa.
Resultado: depois de horas de risadas e dardejantes mensagens de sedução dirigidas a mim e mais tarde, também, às minhas amigas, quando se falou de tudo, de física quântica à influência da TPM no fracasso das relações afetivas, da tuba às energias contidas numa floresta, achei por bem ir para casa, que dia seguinte acordaria cedo.

Meio de pilequinho, risonha e pasma, vim embora pensando que há muito tempo um domingo à noite não era tão fantástico assim. Que tevê, que nada...Aquilo sim que era o show da vida.
(Graça Craidy)
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I love Paris in the summer.

- Chora, não! ela me sussurrava, irmã, no meio da garoa fina de outono que roubava o brilho dourado das esquinas parisienses.

E eu secava o olho nas costas da mão, disfarçando a estranha dor de ausência do amor que tinha virado ex e ainda me rasgava o peito, dor acirrada pela desluz da acinzentada Champs Elysée.

Ela viu antes de mim, até, quando, no metrô, levantei o olho e esbarrei no inesquecível azul dos olhos de um homem super elegante, me olhando parecia entre encantado e surpreso de me encontrar ali, mais uma naquela multidão de gentes solitárias e enrijecidas pelo frio e solidão.

Ele me olhava como se tivesse me pescado triunfante numa rede de descorados seres e descoberto em mim um vermelho, talvez o da boca, quiçá o do coração sangrando.

Assim como o vi, baixei o olhar, nem adiantou ela me cutucar - sorria, mulher!-, eu carregava na mala, pela primeira vez na vida, um profundo medo de olhares desconhecidos. Onde a antiga inconsequência que tantos sorrisos colheu viagens afora?

Quando fomos ao Museu Picasso, ela queria pular a parte do cubismo. - Gente-monstra aos pedaços, quero, não! Tive que explicar que o gênio de Picasso propunha o olhar simultâneo de todos os ângulos, num só, e só então ela parou pra dividir comigo o desaforo colorido de Dora Maar.

- Notre-Dame quer dizer Nossa Senhora, ela me explicou, feito tivesse acabado de descobrir a pólvora, quando entramos as duas na catedral.

A luz bruxuleante das velas carregadas de rogai por nós e je vous salues a deixava meio nervosa, quase nem consegui acabar de rezar pedindo que a Dame deles me iluminasse o caminho, neste continente e no outro.

- Prefiro os cafés, ela me desafiava, atéia e à-toa. Les Deux-Magos, Café de La Paix, mais de uma vez sentamos as duas com aquela disposição para o desperdício de tempo que só um café em Paris constrói.

Mas, enquanto ela olhava curiosa ao redor, querendo beber de todos os olhares a intenção do novo, eu me encolhia em pensamentos remoídos no pasmo da infelicidade que tinha trazido na bagagem.

E nem adiantava um alemão simpático ao lado me tartamudear mensagens de beautiful-woman-will-never-be-alone, que só conseguia arrancar de mim um sorriso torto. O que faz o desamor!

Volta e meia ela brigava comigo, que eu não tinha vindo de tão longe pra ser infeliz, que Paris ia me trazer fados inaugurais, mas quê! Eu só fazia pôr um pé depois do outro, me arrastando pelo Marais. Eu sou triste triste triste de Marais, é sim.

Um dia, ela decidiu: - Vamos ao Moulin Rouge! Alez parlez avec Toulouse Lautrec! Tolouse, nada... Mais me pareceu to loose. Achei aquele Moulin Rouge pasteurizado, de mentira, pra americano ver.

E, não bastasse isso, ainda um velhote sentado em minha frente, vestido de listrado da cabeça aos pés e com cara de colarinho maduro dos sem-banho-hace-mucho, achou de me convidar pra continuar o programa noutro lugar. Ara, merci bocu, vá tomar na rima, messiê!

No Museu Rodin, minha companheira de viagem teve que me puxar pelo braço pra ir embora, fascinada que eu estava com as esculturas de Camille Claudell, ela que como eu tinha sido abandonada, a perda chorada na pedra.

Ele, Rodin, não: olhar pra fora, portas do inferno, os revolucionários Burgueses de Calais, o escritor Balzac derramando a pança fora da roupa, o escândalo de esculpi-lo nu e gordo, O Beijo, a obsessão pelo perfeito. Rodin e Camille, tormentos universais. Eu, no viés, solidária com eles. Mas, no fundo, comigo mesma.

E vinho, muito vinho. E lá vinha minha parceira sedenta de Paris: - Troco o Louvre por qualquer restaurantezinho com Menu de Jour completo, debochava.

Ela achou très legal os franceses haverem transformado as pedras da prisão de Bastilha numa praça de concórdia. - Uns humanistas, esses inventadores de liberté, egalité, fraternité: primeiro sangram, depois fazem praça pra cicatrizar! - resumiu, zombeteira e pragmática.

Aqueles 20 dias em Paris foram pródigos de andanças, mesclados pelo cheiro acre de urina do metrô e o amanteigado oloroso dos croissants, onde brigamos muito, eu e ela, cada uma puxando prum lado: eu, para dentro de mim, ela, para os imãs parisiens.

Até que não aguentei mais carregar minha tristeza encasacada e abreviei a viagem.

Ela ficou amuada comigo para sempre. Jurou nunca mais me acompanhar pelo mundo.
Aceitei. E jurei, também, ali mesmo, de pé junto: jamais de la vie que eu ia viajar
de novo, só eu e ela. Só eu e a minha maldita solidão. ( Graça Craidy)

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Wolton: A caixa-preta da comunicação é o Outro.


Il faut partager.

"Partager". Essa é a expressão recorrente que permeia o discurso humanista do sociólogo francês Dominique Wolton, diretor de pesquisa e da revista Hermès no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS), um apaixonado confesso por democracia, diversidade e comunicação. Tão apaixonado, que escreveu um livro-s.o.s. onde apela ao mundo: "Il faut sauver la communication".

É preciso salvar a comunicação. SP: Paulus, 2006



Nele, Wolton afirma que a salvação da humanidade, em tempos inquietos de mundialização, só poderá ser alcançada pela restauração da partilha saudável com o Outro e pelo respeito às diferenças culturais proporcionado pela verdadeira comunicação. Não confundir com informação - ele alerta. Comunicação é a que estabelece laços sociais, vínculos, relações e gera pacificamente um novo amoldamento de coabitação produtiva entre os indivíduos, as sociedades e as nações. Informação, não. Informação apenas informa.

Il faut accepter l'autre.

" A comunicação tem um grande valor humanístico e democrático", garante Wolton, porque "é igualitária, reconhece o valor do Outro, reconhece sua liberdade, igualdade e alteridade".


A democracia, diz ele, "é o único regime que admite que o Outro não pense como nós".
Por isso, deduz que comunicação, muito mais que uma questão econômica ou tecnológica, é uma questão política e cultural. Política é o meio legítimo de organizar a coabitação entre os indivíduos, entre as sociedades, as culturas e as civilizações.

Principalmente nos tempos atuais, lembra Wolton, onde a comunicação é encarada pelos players do setor como um mero processo de racionalização e mercadorização da vida, esmagando diversidades e gerando resistências de culturas oprimidas que reagem com violência, como no episódio de 11 de setembro, por exemplo.

Em entrevista a Juremir Machado, no site Trópico, Wolton dá a sua versão do atentado, bastante semelhante à de Jean Baudrillard (2003), inclusive, que também enxerga ali a vingança das culturas singulares desaparecidas:

" Na era da globalização da informação, os povos e as culturas querem ser reconhecidos.(...) A violência do atentado reflete a violência da sociedade capitalista e a sua dificuldade para conviver com outras culturas. O terrorismo é inaceitável. Mas é preciso compreender o desespero que o gerou.(...) Para além da desigualdade econômica, o mais grave, sem dúvida, é a falta de comunicação entre as culturas. (...) o 11 de setembro é emblemático do fosso cultural. Bin Laden não é o porta-voz dos pobres, tampouco o herói da guerra de religiões, mas simplesmente o símbolo da incompreensão entre as culturas. " ( TRÓPICO)



Afora as reações radicais, a globalização tem provocado, também, um recrudescimento do nacionalismo em muitas culturas. " Quanto mais globalização, mais os povos vão querer manter as suas identidades" - diz Wolton. Identidades, aliás, entrelaçadas pela comunicação:
"( ...) os meios de comunicação nacionais desempenham um papel importante, pois são um fator de identidade coletiva e de laço social, pela língua, pela informação, memória, cultura." ( TRÓPICO)


Il faut défendre l' identité .

Alinhados com a opinião de Wolton, estão também Anthony Smith (1997), Manuel Castells e Pekka Himanen ( 2002), outros estudiosos da mundialização na chamada Era da Informação, que detectam um contra-movimento das culturas ameaçadas pelas indústrias culturais homogeneizadoras.

Castells e Himanen (2002) , em seu livro sobre a Finlândia, relatam que depois de muito tempo sob o domínio das culturas russa e sueca, os finlandeses, carentes de mitos construtores da sua identidade nacional e do seu próprio idioma (substituído pelo sueco em várias gerações), incentivaram o aprendizado do finlandês via comunicação e literatura e elegeram um poema épico como o narrador de sua história.



"...Os meios de comunicação e a literatura em finlandês se desenvolveram em grande medida como um projeto nacionalista guiado pelo princípio de ' um idioma, uma nação'. O poema épico nacional Kalevala ( ...) foi deliberadamente manipulado para construir uma história finlandesa mítica."( 2001:144)

O cientista político britânico Smith (1997), em suas pesquisas sobre identidades nacionais, afirma que nada é mais forte que a identidade coletiva e que o grande fio que a tece é a cultura, impregnando a vida dos indivíduos em várias esferas, feito um constructo multidimensional.

As principais funções desse movimento nacionalista salvaguardador, diz Smith, são criar uma história, um destino, uma grande família a que todos pertençam, devolvendo a cada um o que ele poeticamente chama de " direito de nascer".

Il faut cohabiter.

"A questão da comunicação é a questão do amor", esclarece Dominique Wolton, reafirmando que na comunicação sempre se busca o Outro, alguém para escutar "o que eu tenho a dizer". No entanto, ele alerta: " 'Eu tenho algo a dizer' não é comunicação", apenas expressão, informação, mensagem sem destinatário.

"Comunicação é falar, ser ouvido, ouvir " - enfatiza, advertindo para o perigo ideológico da arrogância de uma comunicação feita por emissores que falam ao vento, esquecendo que a dinâmica do real processo comunicativo só se completa, de fato, no momento em que a mensagem é decodificada.

Em vez de "eu tenho algo a dizer", melhor seria - contrapõe ele - "eu sonho compartilhar com alguém algo que nos interesse".


"O verdadeiro elogio da comunicação é o diálogo", afirma Wolton. Aliás, essa, a grande dificuldade de qualquer relação, ele mesmo reconhece, pois para haver diálogo é necessário de antemão aceitar a alteridade do outro, respeitá-lo ao mesmo tempo como um igual e como um diferente.

O diálogo seria uma superação consciente do percalço da diferença: " Reconhecer a dificuldade e, apesar disso, querer manter a comunicação", contemporiza Wolton. Dificuldade a que ele dá o nome de "incomunicação", espécie de breu, limbo, pré-estréia constrangedora da troca desejada e, ao mesmo tempo, alerta de impasse, rumo ao horizonte de coabitação. "Incomunicação é a realidade", escancara o francês, não deixando dúvidas de quão difícil é comunicar-se de verdade.

Il faut s'ouvrir.

Sua proposta: o primeiro passo para haver comunicação é "aceitar a incomunicação". Ou seja, compreender, como premissa básica das relações, que sempre há uma incerteza de que o Outro vá nos ouvir, nos entender, nos respeitar, nos aceitar.

Por quê? Porque o Outro é, também ele, um Eu, sujeito "centro do seu mundo", na expressão de Edgar Morin.


"Outro significa, ao mesmo tempo, o semelhante e o dessemelhante; semelhante pelos traços humanos e culturais comuns; dessemelhante pela singularidade ou pelas diferenças étnicas. O outro comporta, efetivamente, a estranheza e a similitude. (...) O fechamento egocêntrico torna o outro estranho para nós; a abertura altruísta o torna simpático. O sujeito é, por natureza, fechado e aberto." (Morin, 2002: 77)


Como facilitar o abrir-se para o Outro, em harmoniosa coabitação, atendendo aos apelos de Wolton? Morin explica que é preciso cultivar o hábito de enxergar o Outro com duplo olhar - como sujeito e como objeto:

"O ponto capital é que cada sujeito humano pode considerar-se ao mesmo tempo como sujeito e como objeto e objetivar o outro enquanto o reconhece como sujeito. Infelizmente, é capaz de parar de ver a subjetividade dos outros e considerá-los somente como objetos. A partir daí, torna-se 'inumano', pois deixa de ver a humanidade deles ou, ao contrário, só pode amar ou odiar cegamente." ( Morin, 2002: 80)



Mais de uma vez Wolton realça que o difícil na comunicação é o receptor: o Outro. Vale-se até de uma expressão bombástica, para sublinhar a sua afirmação: "O receptor é a caixa-preta da comunicação". Tão complicado saber o que se passa na cabeça do Outro, tão delicado atingir uma simetria de codificação-decodificação ideal, que, para nos pouparmos do inferno sartreano, "preferimos a tecnologia", diz Wolton, onde se pode simplesmente transmitir, sem partilhar.

Il faut surpasser la technique.

Pior aliás que incomunicação, ele lamenta, é o equívoco da filosofia da comunicação dominante que imagina a técnica garantir a comunicação:

"O desafio da comunicação não está na técnica, mas no homem. Quando não conseguimos nos entender sob o ponto de vista humano, achamos que a técnica vai resolver. Mas, você pode passar horas no computador e não ter relações. "


A técnica trouxe informações abundantes, mudou a noção de tempo e espaço, e no entanto, diz Wolton, em sua entrevista ao Trópico," vê-se de tudo, mas compreende-se pouco. O fim das distâncias físicas revela a incrível extensão das distâncias culturais. (...) Precisamos compensar a velocidade e a performance dos sistemas de informação com a lentidão da intercompreensão entre os homens."

Il faut communiquer.


Nem apocalíptico nem integrado, Dominique Wolton escapa aos epítetos de Umberto Eco pela via de um otimismo crítico contundente, em que aponta os erros e propõe as soluções. Erros: tecnicismo, egocentrismo, monoculturismo, economicismo, elitismo intelectual. Soluções: democracia, consciência da incomunicação, diálogo, respeito à diversidade, à alteridade, à cultura, atenção ao receptor, legimitação das diversas manifestações culturais, estímulo ao exercício de coabitação.

E arremata: "o grande desafio da comunicação é conseguir compreender um diferente de mim". ( Ainda que ele mesmo compreenda mas não aceite, por exemplo, o diferente Pierre Levy, a quem chama de "filósofo da técnica" e o outro diferente Michel Maffesoli, a quem acusa de ter uma visão meramente "estética", não propor nada, e, como se não bastasse, decretar a morte da democracia.)
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Referências bibliográficas:
- BAUDRILLARD, Jean - Power Inferno - trad. Juremir Machado, Porto Alegre: Sulina 2003
- CASTELLS, Manuel e HIMANEN, Pekka - El estado del bienestar y la Sociedad de la Información. El modelo finlandés -Ed. En castellano. Madrid, España: Alianza, 2002
- MORIN, Edgar - O método 5 - A humanidade da humanidade - A identidade humana, trad Juremir Machado da Silva, Porto Alegre: Sulina, 2002
- SMITH, Anthony - La identidad nacional - Madrid , España: Trama, 1997.
- TRÓPICO - Wolton fala sobre a valor da mídia e da diversidade, entrevista a Juremir Machado da Silva, http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/517,1.shl (12:44, em 19 de junho de 2005)
- WOLTON, Dominique - .Il faut sauver la communication - Report escrito pelo autor para o Seminário Comunicação, Política e Tecnologia. PPGCOM PUCRS, de 17 a 19 de maio de 2005: Porto Alegre ( tradução nossa)
- WOLTON, Dominique - anotações em aula, durante o Seminário Comunicação, Política e Tecnologia, ministrado pelo sociólogo no PPGCOM PUCRS, de 17 a 19 demaio de 2005, Porto Alegre.
( Graça Craidy)
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Que Janis Joplin, que nada!





- Quer ser a cantora aqui do bar, Gracinha?

Acostumado a me acompanhar ao piano nas mil e uma canjas que eu dava na noite porto-alegrense nos anos 70, Maestro Garoto fez um convite inesperado que me gelou a alma.

Nunca havia pensado seriamente em cantar como profissional, antes. Ainda que eu cantasse desde que me dei por gente e mesmo que o prazer de cantar tenha sempre me transportado a uma dimensão onírica desmedida, jamais ousei acalentar semelhante atrevimento. Uma moça de família, filha de Dr. João, cantando na noite? Nem pensar!

Ensaquei a ovelha negra que morava dentro de mim e tratei de ir pra faculdade arrumar uma profissão decente, daquelas que dão dinheiro e estabilidade e que nenhuma tia velha pudesse fazer muchochos e cochichar: - vergonha da família!

Aliás, segui um conselho do próprio Dr. João que - hoje me dou conta - era moderníssimo para a época: - Faça alguma coisa para ter autonomia, minha filha, pra não depender de dinheiro de marido...( Será que ele já tinha a premonição de que eu nunca me casaria, mesmo?)

E agradeci ao Maestro Garoto. Me faltava valentia.

Mesmo assim, qualquer oportunidade lá estava eu, microfone na mão, olhos fechados, encarapitada num banquinho alto. Ou, então, metida em botecos de garagem, onde cruzava a madrugada em loas musicales, chegava em casa às 7 da manhã, tomava banho e ia trabalhar o dia inteiro, bem contente.

Desde menina, na minha casa, se cantava. Meu irmão tocava violão, minha irmã e eu fazíamos duas vozes, minha mãe arredondava o coro, meu pai, cigarrinho na mão e olho de peixe morto ouvindo, se comprazia em nos pedir três " toca aquela!" e a gente já sabia quais: Nervos de Aço, Vingança e Naquela Mesa.

Lembro que com 14 anos eu cantava num coral da igreja e também num grupo chamado Os Vocalistas, e que viajávamos pela região aos sábados, entoando desde trechos de ópera como Va Pensiero, no coral, até roquinhos dos Incríveis, no Vocalistas. O que provocava resmungos do meu pai: - Não sei o que tu queres te enfiando com esse bando de gente mais velha em pleno sabado à noite, em vez de ir passear com jovens da tua idade...

Eu não queria nada. Só cantar, E hoje lembrando disso - só cantar - lembro também que, de todos os aplausos que recebi, teve um especial que ficou marcado em minha memória para o resto da vida.


Cenário: um bar de beira de praia em Garopaba, com meu amigo Paulo Tiaraju - grande violeiro - e mais uma turminha, num desses feriados em que metade do Rio Grande do Sul se muda pra Santa Catarina, como se fosse extensão da própria casa. De noite,
estrelas no céu, e nós já embalados por uma alcatéia de caipirinhas e cervejas, Paulo me anuncia no palco, pra cantar.

O lugar estava quase vazio. Sentei num banco, fechei os olhos e me deixei levar pela doçura do acalanto de Gershwin: Summertime. Sempre que cantava isso, parece que eu incorporava um santo e me enlanguescia toda e cada agudo me pendurava numa nuvem e me deixava lá feito fio de mel babando pra terra. E the living ficava easy, mesmo. Porque o daddy era rich e a mamma, good looking. O baby não precisava to cry.

No momento em que acabei de cantar, ainda de olhos fechados e meio anestesiada pela emoção de me rasgar assim em mil tiras, o profundo silêncio foi quebrado por aplausos frenéticos e uma ovação desproporcional ao numero de pessoas que eu imaginava presente.

Só quando abri os olhos, me dei conta: o bar tinha ficado completamente lotado e em todas as janelas havia gente se espremendo do lado de fora, me aplaudindo e me acariciando com sua felicidade musical.

E a glória das glórias foi o elogio que ouvi, na saída, de um rapaz negro grandão, dono de um sorriso inesquecível: - minha branca, tu canta lindo como uma negra!
( Graça Craidy)
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Humor: O bêbado sincero

Era uma festa da Lew Lara dentro do Museu de Arte Contemporânea, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. 

Tudo muito charmoso, clientes, gentes da alta publicidade paulistana, daslusetes deslumbradas e seus pretinhos básicos e aquele clima hampton-chic de festa pagã em searas sagradas da arte de verdade. 

Humilde e alegremente eu flanava por ali, com minha taça de vinho, convidada como ex-redatora da agência (nessa época eu já tinha ido pra Grottera). 

Eis que do meio dos tantos convidados circulantes me surge um gordinho de barba, vestido meio casual demais pra ocasião e completamente bêbado. 

O homem parecia que tinha os pés, como ele. Redondos. Não conseguia ficar parado no mesmo lugar, bamboleando perigosamente pra lá e pra cá. 

Isso não impediu, porém, que ele atracasse seu corpanzilzinho em um pier imaginário bem em minha frente e me medisse descaradamente dos pés à cabeça, fixando-se, na última mirada, no meu rosto. 

Aproximando sua carranca-de-pau hirsuta do meu rosto, ele não teve a menor piedade. Me catalogou, ali mesmo, declarando em voz bem alta, pra quem quisesse ouvir:

 - ilustre desconhecida! 

(Graça Craidy)
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A loira que não pensou com a raiz.


- Graça!!!.....
O olhar dele, esgazeado, focava alguns centímetros acima dos meus olhos, como se um fantasma levitasse atrás de mim.

- Graça!!!... - ele repetiu, sua habitual voz grave, agora ainda mais grave e com aquele tom de pânico que me dava arrepios de cima a baixo e me paralisava o gesto, sem coragem de virar a cabeça. Quanto menos ali, de noite e naquela luz bruxuleante da cozinha, que tornava tudo meio sinistro e irreal.

Meu namorado era espírita e, virava mexia, vinha contar - pra meu horror - que enxergava almas atormentadas do outro mundo vagando ao redor, espiando as deste mundo com pedidos silenciosos de socorro, a cujas eu confessava, em voz bem alta e muito clara, não ter a menor vontade de ver, ouvir, saber ou tocar, que dirá salvar.

Aquele " Graça" cheio de exclamações e reticências de holografia me dava nos nervos de tal maneira, que reagi quase gritando:
- Pelo amor de Deus, fala, criatura, !...

O alarmista não falou. Em vez, me deixou ali, catatônica, foi com aquele seu passinho de urubu malandro até o quarto pegar um espelho desses de tirar sobrancelha, segurou o dito bem em frente ao meu rosto e me obrigou, com os olhos, a botar tento no acontecido.

Como boa moça prendada do interior, onde nos ensinam que tudo pode ser feito em casa - de geléias a partos - eu tinha passado a tarde daquele sábado aplicando henna em meu falso cabelo loiro, me embonitando para um jantar com amigos logo mais à noite.

Foi uma trabalheira do cão. Além da henna ter um cheiro acre de cocô de cavalo, também não dava liga, mesmo misturada com água, e se recusava a permanecer emplastrada na cabeça, feito as outras tinturas do mercado, escorrendo pela nuca.

Apesar da melecança no banheiro, eu estava no sétimo-céu com minha façanha embelezadora. Afinal, em vez do aviltante blondor com água oxigenada que me provocava coceira no cérebro, de tão invasivo e antinatural, eu tinha optado por louvável atitude ecológica escolhendo aquela henna indiana sem química para avivar a cor do cabelo.

Rá! Depois de horas cheirando a curral, me dei por satisfeita e busquei a libertação do martírio no chuveiro. E creminhos, e perfumes, e batom, e agora ali, vitoriosa
e exuberando frescor, o rapaz me vinha com Sexta-Feira 13- parte I?

O que vi refletido no espelho em frente ao meu rosto iluminado pela luz fria não foi nenhuma loira interessante, mas - socorro! - uma alienígena de olhos arregalados, que me espiava com um estranho cabelo verde.

Verde, sim. Verde cocô de cavalo, claro!

Alguns segundos de pavor e não aguentei. Explodi numa gargalhada.

- Mil vezes marciana que mal-assombrada!

Acabei indo ao jantar daquele jeito, mesmo. E não preciso dizer que o povo me pegou pra cristo da hora que abriu a porta até o último ás da derradeira canastra.

Sufocando o riso, minha amiga me explicou, caridosa, o que tinha acontecido: henna só pode ser aplicada em cabelo virgem. E, antes que você pense besteira imaginando intercursos sexuais bizarros, saiba que virgem é cabelo que nunca foi currado com L'oreais, Kolestons ou Majiréis.

Virgem, eu, com aquele cabelo loiro-belzebua amarelo van gogh? Nem nascendo na Escandinávia...


Saímos da festa às duas da manhã e, pontualmente, duas e quinze, estávamos na drogaria 24 horas ao lado do Shopping Iguatemi, na Faria Lima, em busca do milagroso shampoo-que-lava-colorindo, pois, àquelas alturas eu já cultivava um profundo ódio do meu loiro-verde prostituto 30 volumes e tinha certeza absoluta que o mundo inteiro me olhava meio assim, do balconista ao mendigo.

Naquele sábado fatídico, meu namorado fez jus a um privilégio que muitos homens sonham e poucos podem se vangloriar: acordou com uma loira fatal, jantou com uma extra-terrestre e dormiu com uma inocente castanha-clara. ( Graça Craidy)

Baudrillard alerta: você está morto e não sabe.


O filósofo francês Jean Baudrillard é um gênio. De uma lucidez tão lúcida que parece alucinada. Em seu livro Tela Total (2002) ele vai fechando uma a uma todas as saídas para um futuro possível, no qual não só não acredita como garante que não existe, porque para ele a era da virtualidade nos assassinou e nos conserva assim fantasmas, zumbis no lugar dos vivos.

Delata a desconstrução da História e o avanço da banalidade como ideologia, personificada na espetacularização do vazio. O humanitarismo? Uma forma de absolvição da impotência da humanidade, inerte diante do esgotamento da violência e da guerra divulgados à exaustão pela mídia, a infelicidade alheia como última energia do real onde vampirizamos sentido.

Denuncia a hipocrisia da Europa branca homogeneizante em sinistro processo de purificação étnica, valendo-se de mercenários como Saddam ou os sérvios para acabar com o diverso.

Acusa o Ocidente de impor não os seus valores, mas a sua carência de valores, diagnosticando o mundo civilizado como paralítico mental, com ausência total de destino, espectro, clone de si próprio.

Aos políticos, reserva sua melhor ironia, incluindo-os em uma era vitimal do arrependimento, simulacro de purgação - “ como o dinheiro sujo, devem ser lavados”. Em cada eleição, escolhidos por uma massa de eleitores indiferentes, purificam-se dos seus vícios e readquirem pelo voto suas virtudes.

Debocha do poder: vazio, exercido por gente vazia, “sarcófagos vivos que nos protegem da podridão da morte”, a direita e esquerda em aliança incestuosa.

Pintura trompe-l'oeil


Aos reality-shows, interpretação: com eles, as massas adquirem uma pseudo-interatividade como legítimos figurantes de uma realidade que já não existe.

A expressão “trompe-l’oeil” parece ser uma de suas analogias favoritas, simbolizando o quase, o falso, o pretenso da pós-modernidade.


A liberdade – diz ele – é um fardo que a humanidade se enfada de carregar. E a informação, transitando no hiperespaço, ultrapassou a verdade: não é nem falsa nem verdadeira, porque instantânea, permanece sempre numa 4ª dimensão intermediária, onde a credibilidade não importa mais.

Diverte-se com as pesquisas, às quais garante que o povo mente com prazer.

Alerta para o negror da infância, fábrica de clones alterados geneticamente, a violência biológica artificial gerando inimigos dos adultos, não mais filhos e pais, mas estranhos que não se sentem solidários ou descendentes, tampouco desejam crescer, porque sem finalidade, obsoletos.

Vice-verseia, traduzindo nossa alucinação coletiva pelos efeitos do virtual: “hoje, não pensamos o virtual; somos pensados pelo virtual”, onde tudo está fadado à maldição da tela, à maldição do simulacro.

O ressentimento entre os sexos – explica ele – é filho do despojamento da ilusão vital de homem-mulher, consequência do feminismo: tirou-se o poder do homem e agora não se aceita o impoder do homem.

Aliás, cenarizado em N.York, vem o escárnio: todo humano é dejeto da civilização. Cospe na pasteurização de Disney:
“a nova ordem mundial é disneica (…) o próprio mundo já se transformou em performance interativa.”
E, finalmente, nos reduz a meros atores em meio à total indemonstrabilidade do real. ( Não sei se corto os pulsos agora ou daqui a pouquinho.)


Baudrillard, Jean - Tela Total. Mito-ironias do virtual e da imagem, Porto Alegre: Sulina, 2002

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