Casaram e foram felizes até a página 147.


- Se eu não consigo achar nesta multidão nem o Wally, que eu sei quem é, como vou encontrar o homem da minha vida que eu não tenho a menor idéia de quem seja? - se pergunta agoniada a jovem e bela Mariana, protagonista do primoroso filme argentino Medianeras ( 2011), dirigido por Gustavo Taretta.

Não à-toa, ela - arquiteta desempregada fazendo bico como designer de vitrines - contracena boa parte do filme com manequins de gesso, homens másculos que não movem um músculo, não questionam, não ofendem, não desapontam, não chegam com novidades, não viram o cocho. Bastante pedagógica, a imagem.

Ressabiada com o último homem com quem viveu quatro anos que - um belo dia ela se deu conta, apavorada-  se revelou completo desconhecido, nossa mocinha junta suas tralhas e some do mapa direto pra dentro da história do filme, uma fábula urbana sobre o amor e a ausência dele.

Me dou conta, eu também, de que na verdade somos todos se não completos bastante desconhecidos uns para os outros. E que o sonho de toda gente seria nos congelar, uns e outros, para que ninguém mudasse um milímetro desde o dia em que nos apaixonamos não um pelo outro mas por nossas mútuas idéias idealizadas do queríamos que fôssemos um para o outro.

No entanto -  oh, dor! -,  como somos irredutivelmente iguais ao rio de Heráclito, águas onde ninguém se banha duas vezes, sempre chega o dia em que o outro já não nos aprisiona mais represa, falsa natureza artificial fingindo de RG definitivo. E os outros eus que nos habitam escapam pelas orelhas, exuberam os olhos, roubam o controle do gesto. E o bochincho está feito. E já lá vem um dedo I-want-you enfiado em nosso nariz cobrando I want you do jeito que eu conheci, não mude, não cresça, não ouse, não experimente, não exerça nada além do já provado.

E é aí que o bicho pega. O bicho, o divórcio, a briga, a separação. E vai cada um para um lado e começa tudo de novo, sair campeando pela vida outro ideal pra tentar congelar em zips cerrados e etiquetados, esquecendo, amnésicos, de que aquela forma como tal tem prazo de validade. E que deveria ficar claro: felizes para sempre, neste formato, até a página 147. E a página 148? Bueno, haveria que se fazer um - esse sim, o mais honesto pacto nupcial - pacto de rediscussão dos termos contratuais sem necessariamente partir para o rompimento.

Da página 148 em diante poderia muito bem ser um novo romance encenado pelos mesmos protagonistas, com uma ressalva: eles seriam livres para  exercer outros eus, descongelados da obrigação fictícia de permanecerem estátuas feito os manequins da Mariana.

Porque, afinal, tudo é processo. Relação é processo. Vida é processo. Natureza é processo. Tudo é  mutação e movimento. O tempo todo. Por que ficaríamos só nós, os tontos, parados brincando de habitante infeliz de Pompéia depois do vulcão?

O verbo ser talvez devesse ser revogado e assumido como estar, bem mais coerente com o gerúndio, o tempo do verbo mais verdadeiramente real, tempo de estar vivo aqui e agora definitivamente não definitivo. Ando, endo, indo, ondo, undo. Mundo mundo vasto mundo.
( Graça Craidy)

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Agonia e êxtase de Izidério Valdonílson.

O Martin Fierro, na rua Aspicuelta, Vila Madalena, São Paulo, faz o bife de chorizo mais delicioso do Mercosur.  Não tem pra Puertos Madero, Palermo ou qué-sé-yo. O bife de chorizo do Martin Fierro vem num prato com um elegante ramo de agrião e forma com ele uma flor, um poema, uma epifania que só se sabe, mesmo, da boca para dentro.

Lá eu costumava me aquerenciar volta e meia, com amigos, quando batia aquele desejo pré-histórico de chafurdar no pecado capital sem culpa. Bife de chorizo acompanhado, por supuesto, de inigualáveis papas. E, sin embargo, de um maravilhoso, reconfortante, libertário e dionisíaco vinho tinto. Podia ser malbec, carmenére, cabernet ou merlot. Desde que seco.

Pués, naquele puxadinho sencilla de mesas apertadas com vista para a paz da Vila Madá, era fundamental também dar início aos trabalhos com uma empanadita de carne feita na hora, que vinha pelando pra mesa, e desaparecia na boca entre gemidos suspirosos de ay-mamita!

Um belo sábado ao meio-dia, estávamos na varanda do Martin Fierro, eu e minha amiga Pati, na campana do bife de chorizo, e já no enleio malemolente do vinho, naquele assunto preguiçoso e sem-vergonha de fim de semana, o garçom passando pra lá e pra cá em azáfamas portenhas.

Esse tal garçom - me lembro bem - era uma figura rara. Alto, magro, nordestino da cara angulosa, uns 30 e poucos anos, cabelos ondeados, ele gostava de puxar assunto nas mesas e prosa que te prosa. Cinco minutos de conversa e já contava que ser garçom era apenas um prolegômeno breve para a sua - essa sim, duradoura - carreira de cantor e compositor de música brega. E dali pra puxar uma fita demo do paletó branco eram dois palitos. Digamos que o nome dele fosse Valdonilson. Ou Izildério, quem sabe? Não posso garantir.

Só sei lhe dizer que Izildério Valdonilson tinha acabado de nos presentear com sua fita K-7 de inspiração Reginaldo Rossi,  Pati e eu rindo aquele riso sem relógio, de sábado, achando supimpa a vontade boa e justa dele de virar artista, nem que fosse um artista de música brega, porquois pas?  Que convivam morubixabas e orixás!

Era sábado, mas em vez de me jogar dentro de um abrigo ou de uma bermuda com camiseta, eu tinha escolhido um vestido de linho muito bonito de minha especial predileção, pra usar com sandália baixa. Longuette, manga curta, decote careca, preto com  risca de giz, adredemente amarrotado como todo linho deve ser, mas chiquezinho: tinha um abotoamento charmoso nas costas, da nuca até o tornozelo, com delicados botões de madrepérola. Me deixava com um ar assim entre o descolada e o  retrô.

Lembro que as cadeiras do Martin Fierro eram vazadas, e que eu estava sentada de costas para a entrada. E lembro ainda do restaurante lotado. Era um sábado de sol e, em assim sendo - de sol - o povo paulistano por nascença ou adoção tudo o que quer na vida é lagartear e comer e beber sem hora pra pedir a conta. E, claro, se os convivas estavam ali soltos e solteiros, nada obstava que um olho espichasse aqui, outro acolá. Nós aproveitávamos para lançar unas miraditas que matam, nunca se sabe o que o destino arquiteta.

Enfim, a modorra já havia se estabelecido e o volume das vozes nas mesas vizinhas tinha subido pelo menos dois tons, graças ao Baco ou às Norteñas, e podia quizás rolar uma sedução promissora. Que no! Começou a acontecer uma coisa muito estranha com o Izildério Valdonilson.

O homem se punha parado ao meu lado direito, na mesa. Me olhava angustiado, esfregando uma mão na outra. E seguia lá pra dentro, sem dizer palavra. Dali a pouco, lá estava ele de novo, do lado esquerdo da mesa, me encarando em agonias. E nada que nada.  Até que uma certa hora ele se aprumou,  abaixou o rosto ao lado da minha amiga Pati e cochichou qualquer coisa no ouvido dela.

Pati levantou de sopetão, os dois se dirigiram pra fora do bar, na calçada. Eu vi que eles conversaram algo pelo jeito muito sério. E olhavam pra mim, ambos, bem enfáticos, com - estranhei!- uma dramaticidade completamente fora de hora. Confesso que eu não estava entendendo porcaria nenhuma. Côsa mais esquisita, sô, vá-te!  Mas, pensei: a mí qué! Deve ser rolo do cara pedindo uma força pra Pati ou talvez queira me morder nuns pilas mas faltou valentia? Que no me venga!

Nisso, minha amiga volta pra mesa e, lembro daquela cena - das mais bizarras! - como se fosse hoje. Sem nem sentar, me olhando dentro do olho lá no fundo, a cabeça levemente abaixada feito o touro quando vai atacar o toureiro,  um jeito assim entre o histérico, o estóico e o catatônico, ela riscou com o polegar no guardanapo jogado sobre a mesa, desenhando  uma letra "V" bem forte, a ponta da unha afundando na textura macia do papel. Deste jeito, com gestos bem lentos. Primeiro, a haste esquerda do V. Depois, a haste direita. Só então, ela se acomodou devagarinho na cadeira, quase desfalecendo. E, empurrando o guardanapo com aquele V estrangeiro pro meu lado, ela murmurou entredentes a sentença mais orangotango-gorila-chimpanzé-babuíno-mico da minha vida sócio-cultural paulistana:

 - Guria, seu vestido desabotoou inteirinho atrás, da cintura pra baixo, e to-do-mun-do do restaurante está vendo - há horas!!! - a sua bunda de fora pela fresta do vestido, com a calçola em V. Assim!

E apontou de novo, implacável, para o maldito guardanapo.

(Graça Craidy)

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