Douglas Kellner: A identidade virou um jogo prazeroso de livre escolha do eu-mercadoria.

Por que o sr. fala em cultura "da mídia"? A mídia tomou posse da cultura?
Kellner: A cultura veiculada pela mídia em radio, TV, cinema, feita de imagens, sons e espetáculos, trama o tecido cotidiano, domina o lazer, modela opiniões politicas, modela comportamentos sociais. Aponta ainda o que é ser homem/mulher, o que é ser bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente, modela senso de classe, etnia, raça, nacionalidade, sexualidade, nós -eles. Define também o que é bom, mau, positivo, negativo, moral, imoral, visão de mundo, valores. Enfim, fornece material para construção de identidade, pela qual o indivíduo se insere na sociedade tecnocapitalista contemporânea, produzindo uma cultura comum. Por isso falo em cultura da mídia. É na mídia que está hoje a cultura dominante. Inclusive, para muitos jovens desta geração, a cultura da mídia é a única cultura que conhecem.

O sr. é um apaixonado pelos Estudos Culturais e, como seguidor dessa abordagem multidisciplinar, tem a preocupação de detectar as relações de poder, o discurso hegemônico e o contra-hegemônico, alertando para os focos de dominação e resistência. Qual o intuito de , como o sr. diz, buscar uma "pedagogia crítica da mídia"?
Kellner: A pedagogia crítica da mídia existe para o indivíduo se fortalecer, resistir à manipulação, à pedagogia cultural. E, assim, aumentar sua autonomia e produzir e inspirar a produção de novas formas de cultura. Ao resgatar a criatividade que ficou minada, produz a sua própria identidade e resistência. Em suma, a pedagogia crítica da mídia confere poder ao indivíduo sobre seu ambiente cultural.

O sr. , como os frankfurtianos, acredita que a mídia tem, mesmo, o poder de manipular? A mídia obriga os indivíduos a consumir, a se vestir assim assado, a agir tal como a mídia está falando?
Kellner: Não, exatamente. A mídia não obriga ninguém, mas seduz, induz o indivíduo a se identificar com as ideologias, com as posições e representações sociais e políticas dominantes. E faz isso não com um sistema de doutrinaçao ideológica rigida, mas induzindo aos prazeres da mídia e consumo. Através de seduções visuais e auditivas agradáveis, leva o individuo a se identificar com opiniões, atitudes, sentimentos e disposições, a buscar gratificação comercial. Por outro lado, o individuo pode resistir, criar seus proprios significados, usar a sua cultura como recurso para inventar significados próprios. A midia dá recursos tanto para aderir como para resistir aos modelos dominantes. Por quê? Porque a mídia é complexa, contraditória, não é onipotente, e, além disso, o individuo raramente lê a mensagem conforme o desejo do produtor. Mais uma coisa que é bom não esquecer: a mídia quer audiência e, muitas vezes, se modela, ela mesma, pelos desejos do seu telespectador. Por isso é importante fazer um estudo cultural crítico.

O que é, exatamente, estudo cultural crítico?
Kellner:
É o que conceitua a sociedade como um terreno de dominação e resistência, preocupado com o projeto democrático, examinando como a cultura da midia pode ser um entrave ou uma aliada para a democratização da sociedade, diagnosticando as inclinações e tendências sociais, os temores, esperanças e desejos que ela articula, o modo como a midia provê recursos para formaçao de identidade, como promove reacionarismo ou progresso.

Como a mídia pode ser um entrave e como pode ser uma aliada?
Kellner: Como entrave: quando reproduz discursos reacionários, promovendo racismo, preconceitos de sexo, idade, classe. Como aliada: dando voz a grupos oprimidos, atacando segregacão racial e sexual ou até enfraquecendo o preconceito, quando mostra representações de raça e sexo pelo lado positivo. É importante entender o seguinte: a necessidade de vender significa que as produções da indústria cultural devem ser eco da vivência social, num mínimo denominador comum que não ofenda as massas e atraia um máximo de compradores. A mídia pode oferecer produtos atraentes que talvez choquem, transgridam convenções e contenham critica social ou expressem idéias correntes originadas de movimentos progressistas. Assim, promove os interesses dos donos da mídia, mas também entra em conflitos com a concorrência dos outros donos da mídia. Daí, veicula posições conflitantes, promovendo às vezes resistência.

E quando uma produção é superpopular?
Kellner: Entender o porquê da popularidade de certas produções pode elucidar o meio social em que elas nascem e circulam. Nos leva à percepção de o que está acontecendo na sociedade e na cultura. Por exemplo, filmes de terror exploram o ocultismo, o sobrenatural, articulando os temores da classe média em relação ao seu declínio social, perda de moradia, dissolução da familia, ameaças vindas de outras classes, de outras raças. Filmes de terror sintetizam o medo do Outro. Quando o ocultismo começa a ter espaço é porque a sociedade já não está conseguindo resolver as suas crises do cotidiano, no cotidiano. Ao mesmo tempo que o sucesso do filme de terror nos traz os sintomas das doenças sociais, é reacionário, porque desvia para " forças do mal" esotéricas e intangíveis a clareza da origem das fontes reais de sofrimento social.

Como o sr. relaciona a narrativa com o problema?
Kellner: Em Poltergeist, p.ex, a familia perde a casa, a menininha foi raptada pela TV. Sinaliza o medo da perda de poder aquisitivo , o medo da tecnologia, o medo do excesso de TV na vida dos filhos. A série Beavis and Butt-Head da MTV, p.ex., é um diagnóstico do transe pelo qual passa a juventude insatisfeita dos nossos tempos, e sinaliza, principalmente, o discurso de uma juventude que foi criada pelo " úbere vítreo da tv" que as ninou, alimentou, ensinou, entreteu. É uma juventude que extrai da mídia todas as idéias que tem da vida, do mundo, da história. Tanto, que a revista Rolling Stone chamou a série de "a voz de uma geração". Preocupante!...Para mim, a série é um hieroglifo social: revela uma sociedade de famílias desagregadas e indivíduos anômicos, sem valores ou objetivos. Revela também um desejo de utopia sem regras, narcisismo, liberdade ilimitada, sem pais ou autoridades

Professor, o sr. fala muito no seu livro A Cultura da Mídia que deve-se ter uma abordagem multiperspectivica na crítica da mídia. Que proposta é essa?
Kellner: Nietzche diz que toda interpretação é mediada pela perspectiva de quem a faz, trazendo pressupostos, valores, preconceitos, limitações. Ou seja, é unilateral, comprometida. Por isso proponho que sejam usadas várias perspectivas, neutralizando a possível arbitrariedade de um só ponto de vista. Nenhuma teoria conta toda a história. É preciso combinar várias teorias em uma abordagem multiperspectívica : quanto mais teorias à disposição, mais tarefas poderão ser cumpridas, mais específicos os objetos tratados. Ex: marxismo mais feminismo mais psicanálise é muito mais útil que cada um sozinho. As perspectivas da visão multiperpectívica são sexo, raça, classe, marxismo, feminismo, estruturalismo, pós-estruturalismo, semiótica, psicanálise, história, ideologia, contexto, produção, recepção. É importante trabalhar inclusive com perspectivas opostas. A abordagem interdisciplinar ultrapassa disciplinas: sai do texto para o contexto

O sr. tem o dom equilibrado de separar, de cada teoria, o que acha útil, forte, do que acha limitado, fraco, mas sem rejeitá-las totalmente. Quais são os pontos fortes e fracos das teorias com as quais o sr. trabalha?
Kellner: Cada método tem pontos fortes e fracos: o marxismo é forte na contextualização histórica das classes e fraco na análise formal, sexual e racial. O estruturalismo é forte na análise da narrativa, mas excessivamente formal, abstrato demais, falta concretude. O feminismo é forte nos aspectos sexuais, mas fraco porque ignora raça e classe. A psicanálise é forte na hermenêutica do insconsciente e fraca nas determinacões sociológicas. Então, se você tem uma abordagem multiperspectívica, pode se valer do melhor de cada teoria em busca da verdade mais ampla, sem se prender restritamente a essa ou aquela abordagem.

No seu livro, inclusive, o sr. faz elogios e, ao mesmo tempo, críticas, a duas grandes escolas: a de Frankurt e a de Birmingham. Fale sobre isso.
Kellner:
Os frankfurtianos achavam que o público é passivo, os birminghamianos, que é ativo. Ambos exageraram. A cultura oferece as duas coisas: força de dominação e recurso para resistência e luta. A Escola de Frankfurt é carente de uma análise mais concreta, mais empírica, mais histórica, apregoa a dicotomia entre cultura superior e inferior, tem ideal de arte autêntica, crê que toda cultura de massa é ideológica, é determinista demais, monolítica, redutora , fraca na formulação de prática de oposição e em estratégias contra-hegemônicas e, ainda, não distingue codificacão de decodificação. É parcial e unilateral, mas útil: seu ponto forte são as noções de mercadorização, reificacão, crítica à ideologia e uso do método qualitativo (achavam o quantitativo insuficiente) Já os teóricos de Birmingham têm o mérito de subverter a distinção entre cultura superior e inferior - valorizam cinema, também, música popular, o ordinário, o comum, o popular - mas abandonaram a cultura superior. Precisamos valorizar todas as culturas, ficar atentos à diferença entre popular e populista, e também, tomar cuidado com os fetiches, que obstruem a crítica: " fetichismo do público", " fetichismo da produção", "fetichismo da resistência"," fetichismo do prazer do público". É tudo ao mesmo tempo imbricado. Precisamos articular relações e instituições sociais também, junto com a análise do texto ou do público, precisamos contextualizar. Fiske, por exemplo, um conhecido fetichista da resistência, fala entusiasmado da revista Hustler contrabandeada dentro da Life, que teria minado o conservadorismo da classe média, etc. Ok. Mas, ele esquece de ver que - do ponto de vista feminista - a revista Hustler é machista, coisifica a mulher, portanto, é reacionária, também. Resistente por um lado, reacionária pelo outro.

Como se detecta ideologia?
Kellner: A ideologia apresenta seus interesses particulares como se fossem universais, pega forças negativas e as mostra como positivas, apresenta construções históricas como se fossem naturais, de senso comum, mostra-se apolitica e tem forte retórica: é persuasiva, sedutora, mistificadora. Para Gramsci, cultura, sociedade e politica são terrenos de disputas entre varios grupos e classes. Há que se perguntar: quais disputas são essas? Entre que grupos? Quais suas posições? Segundo a visão gramsciana, as sociedades mantêm a estabilidade por meio de força - policial, militar - somada com a anuência à hegemonia praticada por instituições como escola, igreja, mídia. Assim, o que importa é identificar onde está a hegemonia e onde estão os grupos que poderiam resistir e lutar contra essa hegemonia. Devemos relacionar o texto da mídia com o discurso político da época e com outras produções culturais referentes. Dessa forma, a ideologia se escancara.

Enquanto muitos autores assumem a expressão "pós-modernismo", sem hesitar, o sr. diz que não estamos na pós-modernidade, mas em um lugar entre a era moderna e uma nova era pós-moderna. Por que o sr. não adere ao termo?
Kellner: O termo "pós-moderno" é um guardador de lugar, não exatamente pós-moderno, mas indicador de que estão acontecendo mudanças , coisas novas. As teorias são muito incongruentes entre seus teóricos , uns utopistas, outros nihilistas, não há uma coerência de teses que caracterize com clareza o que é pós-moderno. Por enquanto, estamos em um tempo de um "construto cultural", sintomático de fenômenos desconcertantes que ainda não conseguimos categorizar, nem entrar em consenso. Por enquanto, é apenas palco de guerras teóricas.

Quando o sr. fala de identidade contemporânea, dá a impressão de que hoje em dia se troca de identidade como quem troca de roupa. É isso?
Kellner
: A identidade é um construto a partir de papéis e materiais sociais disponiveis. E hoje em dia, a identidade do individuo moderno é ser sempre novo, transitório, mutável. Antes, identidade era função da tribo, do grupo, do coletivo, um negócio sério; girava em torno da profissão e da função na esfera pública ou familiar, implicava escolhas. Hoje, na sociedade de consumo em que vivemos, identidade é imagem, aparência, representação de papéis, gira em torno de jogo, lazer, teatro, ludibrio. Viramos " jogadores", players, não mais com identidade fixa, mas com quantas você quiser e puder. Identidade hoje é descartável. Na modernidade, o Outro é constituinte da nossa identidade, o Outro é quem valida a nossa identidade: você só é alguém se o Outro o reconhece. Para os teóricos pós-modernos como Baudrillard, o sujeito acabou - só existe massa, eu fragmentado. Para os estruturalistas, não existe sujeito fixo, sujeito é um construto de linguagem. Assim que, a identidade virou um jogo prazeroso de livre escolha do eu-mercadoria. A TV, aliás, ajuda a estruturar essa identidade contemporânea: assume a função de ritual coletivo e mito e, dessa maneira, " resolve" as contradições sociais com seus modelos de identidade. Veja Madonna: ora loira, ora morena, ora mundana, ora comportada, ora sexy, ora mãe de familia.

O sr. abdicou da sua conhecida admiração por Jean Baudrillard em favor do escritor cyberpunk William Gibson?
Kellner: O que Baudrillard denunciou em teoria do " admirável mundo novo da tecnologia", Gibson materializou em narrativas. Veja este texto, no livro Neuromancer, de Gibson: " o céu acima do porto tinha cor de TV sintonizada num canal inativo" . Acho que Baudrillard parou no tempo, depois dos anos 80: deveria ser lido hoje como ficção científica, enquanto Gibson, com sua ficção científica, deveria ser lido como um teórico social.

Que conselho o sr daria aos "midiocres", como ironiza o professor e jornalista Juremir Machado?
Kellner: Somos o que vemos e ouvimos, como somos o que comemos: evite a comida ruim da mídia e escolha produtos saudáveis e nutritivos. Esse é o meu conselho. •

(Entrevista simulada por Graça Craidy, baseada no conteúdo do livro A Cultura da Mídia (2001).

Douglas Kellner é professor de Filosofia da Educação, no curso de graduação em Educação da UCLA - Columbia University - desde 1997, quando trocou sua cadeira de Filosofia na Universidade do Texas, em Austin, onde lecionava há 24 anos. Foi um dos fundadores dos Estudos Culturais americanos, nos anos 70. Autor de inúmeros artigos e vários livros, entre eles Herbert Marcuse e a crise do marxismo,Camera Politica, A política e ideologia dos filmes de Holywood, Teoria crítica, marxismo e modernidade, Jean Baudrillard: do marxismo ao pós-modernismo e além, Televisão e a crise da democracia, A cultura da mídia (editado pela Edusc) e, ainda, O espetáculo da mídia, todavia não publicado no Brasil.

O professor Kellner é o que Gramsci chamava de " intelectual orgânico", ou seja, comprometido com as transformações sociais. Sua arma são os Estudos Culturais, e seu campo, a mídia. Kellner é um estudioso apaixonado da mídia, trabalha com exemplos concretos de programas de TV, fenômenos midiáticos como Madonna, filmes populares de Hollywood, eventos históricos noticiados pela mídia como a Guerra do Golfo, entre outros, buscando identificar os discursos de dominação e resistência, o modo como a mídia constrói identidades e comportamentos, e - fervoroso militante dos estudos culturais - persegue o que ele nomeia "pedagogia crítica da mídia", uma espécie de antídoto necessário para nos proteger da manipulação e dominação.


KELLNER, Douglas - A Cultura da Mídia - estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno - tradução Ivone Castilho Benedetti -
Bauru/SP - EDUSC - 2001 [ 1995]


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A prenda e o rodeio no campo do bem-querer.

Oigalê, que era um 20 de setembro louco de especial, feriado sagrado da Revolução Farroupilha, quando todos os CTGs do planeta se alvorotam em bailantas comemorativas.

(Pra quem não sabe, CTG quer dizer Centro de Tradições Gaúchas, uma espécie de clube nativista onde se cultua a música, a dança, a comida, a vestimenta e os valores das tradiçoes gaúchas campeiras.)

Ijuí não fugia à tradição. E eu, moça faceira morando já de há muito na Capital, em visita à família na terrinha naquele começo dos anos 80, resolvi me aventurar nas lides festivas gauchescas.

Me pilchei bem como tem que ser, com um vestido de prenda emprestado cheio de babados - coisa mais linda-, me ornei bem catita com flor vermelha no cabelo, me tasquei um batom rosado bem oferecido na boca e me fui, disposta a levantar poeira da pista dançando toda a noite, se possível e se santo antônio me ajudasse, com um gaudério bem guapo.

Vanerão vai, xote vem, chimarrita vai, bugio vem, e eu ali espiando os moços pra ver quem eu ia laçar com meu olho pidão de prenda de araque, cheia de vontade de vestir a personagem de prenda-minha e rodopiar rodopiar rodopiar.

Lá pelas tantas, me passa um moreno bonito dançando empertigado, braço estendido,
postura de monarca, batendo os tacos das botas, a bombacha, comme il faut, uma fieira de casinha de abelha nas laterais, o lenço maragato lhe adornando o pescoço, guaiaca de couro engalanando o trajo e, quebrado nas costas displicentemente, como quem não vai partir tão cedo, um belo chapéu preto meio espanholado.

O tal espichou o olho pros meus lado e eu gostei. - Então vai ser tu!- decidi.

Foi terminar a música, o tempo de ele devolver a prenda pra família dela em uma mesa e arrodear os cascos pros arredores da mesa onde eu estava. Moderna ou tradicionalista, a paquera entre jovens, pelo menos naquela época, não se diferenciava muito de cidade grande pra pequena.

O rapaz se encosta no balcão das bebidas ou num canto estratégico do salão e fica ali se mosqueando um pouco, testando os olhares, testando de novo e de novo, secando a prenda com os olhos pra ver se sai faísca, pra se garantir que ela não vai dar tábua, quer dizer, largar o pobre com a cara no chão, se negando a ir dançar com ele, o que seria quase motivo pra puxar o revólver ou, no mínimo, nunca mais circular por aquelas bandas, nos próximos dez anos. Uma verdadeira desonra!

Pués, fiquemo ali, de bobagem. Eu sorrindo pra ele, ele sorrindo pra mim. Eu baixando os olhos envergonhada, ele ajeitando o lenço no pescoço se fingindo de ocupado. Aquele ritual de puxa-afrouxa (que os guascas dizem puxa-flócha) decerto aprendido dos bichos, de florear a conquista com a mistura rica de negaceios e atrevimentos.

E o nheco-nheco das cordeonas rasgando a noite farroupilha, Os Serranos liderando a parada e o povo a se botar no meio da pista sem dó de gastar sapato, numa faceirice de rodopio que dava gosto. Rodopio de tal maneira saracoteado que um casal levava menos de um minuto pra dar a volta no salão ao corcoveio dos acordes.

Meu pezinho de prenda inquieta batia impaciente no chão até que o xiru se encorajou a me tirar pra dançar uma marca. E foi um asseio! Parecíamos gêmeos de baile. Aprochegados pra dançar sem muitos grudes - que o estabelecimento era de respeito e não permitia arreganhos-, minha mão direita desaparecida na mão dele, seu braço firme atrás da minha cintura me conduzindo feito eguita bem-domada e lá nos fomos pista afora num sacolejo bem marcado, os pés mal tocando o chão que nem jaburu pulando sanga.

Me diverti a noite inteira. O rapaz se chamava talvez João Fernando, algo assim. Era engraçado, galanteador, cheio de minha prenda pra cá, minha princesa pra lá, como sóem ser os gaúchos de campanha quando querem agradar a uma chinoquinha que lhes interessa. E eu encantada com aquele mundo cetegiano quase que completamente desconhecido pra mim, tirante os ai-bota-aqui-o-teu-pezinho e maçanicos-maçanicos que aprendi no Grupo Escolar Ruy Barbosa, quando guria.

João Fernando também parecia estar contente, pois se atreveu a me apresentar à família dele, fiquei lisonjeada, imagina! quatro da manhã e eu convidada a comer galinha assada com salada de batata na copa do CTG, refestelada junto com pai, mãe, irmã dele!

Não sei direito se por ingênua ou falta de noção, fiquei ali me comprometendo, porque cá pra nós, comer galinha assada com salada de batata com a família de um rapaz do interior - ainda mais de CTG! - era quase que um pré-noivado. Não é como hoje que as gurias entram e saem não da casa ou da mesa, mas da cama dos namorados. Tudo acontecia com menos pressa quando se tratava de colocar a família no meio.

Por isso que, como diz o outro, meu peito que eu gavo! Onde é que já se viu essa gachação de intimidade com a família do moço?

Falando em "gavo", João Fernando, como boa parte dos gaúchos de fora que vivem na lida tradicionalista, volta e meia trupicava no português, adicionando uns "peguemo", uns "voltemo", uns "de vereda" que eu achei mais pro folclórico que pro linguístico. Afinal, o clima era de grossura, em Roma, como os romanos. Vai pensando!

Dia seguinte eu ia voltar pra Porto Alegre, onde morava com meu irmão e já trabalhava como redatora em uma agência de publicidade, espia o contraste... Me despedi do rapaz deixando com ele meu endereço e telefone, esperando quem sabe que me escrevesse uma cartinha apaixonada, eu missivista militante de longa data adorava aquele envelopinho de tarja verde-amarela com meu nome subscrito na capa.

Passaram-se alguns meses, nada de notícias do tal João Fernando. Nem lembrava mais dele quando um certo dia, sem mais essa nem aquela, batem na porta do nosso apartamento. Quando vi quem era, quase caí dura. Ele, o gaudério. Saltou de pára-quedas, sem avisar, direto na mira do meu olho mágico.

Fiquei meio constrangida com aquela sem-cerimônia típica do interior que as pessoas vão invadindo a casa dos outros sem bater, no máximo batem palmas no portão. Deve ter sido isso. Ele achou que não tinha mal nenhum aparecer assim, do breu, sem me avisar.

Disfarçando o mau-jeito, convidei o rapaz pra tomar um café na lancheria do chinês que havia debaixo do meu prédio, na esquina da Salgado Filho com a Dr. Flores. Ele aceitou, cordato.

Descendo de elevador, me contou que tinha deixado o carro estacionado na Dr. Flores, que sorte que achou lugar. Quando cheguei na frente da lancheria, espiei pra baixo, na direção onde ele apontou e não acreditei. Estacionado de fora a fora na Dr. Flores, ocupando quase uma quadra até praticamente a rua General Vitorino,
um garboso caminhão FNM me olhava pachorrento, com aquela cara achatada sem focinho que todo o fenemê tem.
(Graça Craidy)
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Agradeço por uma graça não alcançada.

O frio estava de bater queixo e resolvi ir à sauna. Era bem numa época em que eu ainda tinha paciência de amarrar fitinha de Bonfim no pulso, dar os tradicionais três nós acompanhados de três desejos e carregar aquele trapo se decompondo e se desbotando por meses a fio até rebentar sozinho, momento mágico em que os tais desejos virariam realidade, segundo a crença baiana.

E lá me encontrava eu na sauna, de prosa com uma garota duns 15 anos, tanto ela como eu com a medida do Bonfim já esfarrapadinha amarrada no pulso. Sorri pra ela e falei: “ - olha! eu também tô com a fita do Bonfim!”

Em vez de me retribuir o sorriso, ela fez uma carinha angustiada e me saiu com esta: “ - ai, meu Deus, não sei o que vou fazer…não quero mais os três desejos que eu pedi!…” Dei risada e sugeri que ela cortasse a fita com uma tesoura. Pimba! O encanto se desfaria, garantidamente, ofendido com o sacrilégio do gesto.

Não sei se ela se encorajou a transformar a medida do Bonfim em desmedida, mas essa cena é inspiradora pra falar de desejos que a gente anela, anela e um belo dia se dá conta que nem deseja mais, que ficou carregando aquele querer prisioneiro dum sonho que se esfarrapou, desbotou e não aconteceu. E, por não acontecer, a gente fica frustrada, infeliz, arruma álibi pra se queixar pelos séculos dos séculos.

Antigamente até eu achava isso bacana. Lembro que dei uma camiseta pra todos os meus sobrinhos onde se lia: “Nunca te esqueças do teu sonho de criança.” Mas, hoje, penso de outro jeito. Acho que existem tantos sonhos pra serem sonhados que ficar grudado num só é até falta de imaginação. A vida não pode se resumir a um sonho, caramba! Senão, se ele não acontece - não importa por que razão - a gente vai jogar a vida no lixo?

E depois, tudo é tão gerúndio, o repertório da gente vai se enriquecendo de tantos novos saberes e quereres que um sonho que se sonhou lá longe não necessariamente é o melhor sonho que se poderia sonhar, pensando na outras mil gavetinhas dentro que vamos abrindo pelo caminho.

Meu pai, por exemplo, que era um grande médico, um dia largou a Medicina pra realizar outro sonho que ele deve ter se dado conta muito mais tarde que na infância: virou marceneiro. E tenho certeza que era feliz como um menino cada hora que passava enfiado em sua marcenaria a fabricar berços, mesas e baús encantadores pra presentear os amigos.

Por isso, querido leitor, se você ainda é refém de um sonho que não aconteceu e todos os dias se martiriza por ele, tenha dó! Descubra outro entre os bilhares de sonhos que pairam por aí. Pra começar, passe numa padaria e coma um sonho daqueles feitos na hora, com creme de baunilha, açúcar, canela, e lambuze os beiços. Você vai ver a delícia que é curtir um sonho novinho em folha. ( Graça Craidy)

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Meu João Wayne favorito.

Várias madrugadas, já, que um gato desses vira-latas andava miando nos ouvidos do meu pai, decerto a namorar pelos telhados da vizinhança do nosso sobrado em frente à Praça da República, na minha Ijuí.

Uma bela noite, o velho João se atacou, (coisa que não era difícil de acontecer, como todos que o conhecemos sabemos), pegou seu revóver 38 e desceu, de pijama, disposto a acabar com todas as sete vidas do tal gato, de uma vez só.

O miado vinha dos lados da garagem, onde o velho guardava o seu imponente Landau prateado, um primo moderno, na época, dos carrões rabo-de-peixe americanos, seu xodó, bichão que vivia brilhante e lambido de tão bem cuidado, feito o Dodge 51 verde-oliva dele que ficou mais de 20 anos impecável em suas mãos.

Pois, poderoso, fungando estrepitosamente e abrindo e fechando as narinas como fazia quando estava furioso, praticamente soltando fumacinha pelos ouvidos, o velho João meteu-se garagem adentro atrás do gato, seguido silenciosamente por minha mãe Bila, que por certo já havia descido as escadas em preces mudas de SOS-Santo Antônio, desconfio que, inclusive, a favor do gato.

Guiado precariamente apenas pela luz da rua, meu João Wayne favorito mirou seu 38 em direção ao fundo da garagem e mandou ver: pôu!

Tudo o que se viu foi um gato voando porta afora, com todas as suas sete vidas intactas, precedido apenas de um miadaço assustado.

Após alguns segundos do silêncio atônito dos meus velhos, ouviu-se um inesperado silvo: pffffffffffffffffffffff!

Era o inocente pneu do Landau, ferido de morte pela bala cega do tresoitão do João.
(Graça Craidy)

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Canclini: A cultura não é uma Arca de Noé embalsamada.

Nos anos 40, a cantora luso-brasileira Carmem Miranda, que fazia sucesso em Hollywood como A Pequena Notável ou The Brazilian Bombshell, ícone do Brasil tropical em terras estrangeiras, foi criticada pelos brasileiros da época por ter aderido ao american way of success. Ao melhor estilo carioca, no entanto, ela respondeu aos seus conterrâneos detratores com um samba de Vicente Paiva e Luiz Peixoto, reforçando o seu amor à cultura brasileira:
Disseram que eu voltei americanizada/ Com o burro do dinheiro/ Que estou muito rica/ Que não suporto mais o breque do pandeiro (... )Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno/ Eu posso lá ficar americanizada/ Eu que nasci com o samba e vivo no sereno/ Topando a noite inteira a velha batucada/ Nas rodas de malandro minhas preferidas/ Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you/ Enquanto houver Brasil/ Na hora da comida/ Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu. (Disseram que voltei americanizada, 1940)

Mais de seis décadas depois, já no terceiro milênio, as críticas à influência estrangeira na cultura adquiriram foro científico e freqüentam assiduamente a academia, que questiona estarrecida como encaixar " esta madeixa de comunicações distantes e incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos, que se nomeia como globalização", segundo palavras do filósofo e antropólogo argentino Néstor García Canclini ( 2004: 13).

Canclini, que vive no México desde 1976, é um obstinado estudioso da cultura latino-americana e dos efeitos da globalização no cotidiano pós-moderno do hemisfério sul.

Afinado com a proposta transdisciplinar dos Estudos Culturais, afirma não ser mais suficiente valer-se só da sociologia, ou só da antropologia ou, ainda, só da comunicação, para entender o fenômeno avassalador da globalização. É preciso ir além dos saberes compartimentados, questionando antigas conclusões disciplinarmente isoladas e buscando, no tempero dos vários jeitos de olhar, outras respostas, ou, melhor, outros questionamentos, como ele enfatiza, na epígrafe do seu livro Diferentes, desiguales e desconectados (2004): " Se não conheces a resposta, discute a pergunta", citando Clifford Geertz ( 2004:12).

E ele se faz perguntas intrigantes o tempo todo, para as quais nunca há só uma resposta: O que nos faz comuns? O que nos faz diferentes? O que é ser latino-americano? Globalização globaliza ou desglobaliza? Identidades são essências ou processos? Quais os paradoxos? Que conflitos movem as culturas contra as culturas? E os indivíduos contra os indivíduos? etc

No seminário Interculturalidade e Globalização que ministrou na PUCRS baseado no livro citado, Garcia Canclíni alerta para outros aspectos decorrentes da globalização que não apenas os econômicos e tecnológicos. Ele pretende uma teoria transdisciplinar ( antropologia, sociologia e comunicação, principalmente) que organize o conhecimento sobre as novas diversidades surgidas do que ele chama de desdibujamento das fronteras, da transnacionalização, das migrações e da monopolização da indústria cultural pelo capital norte-americano, sufocando as manifestações culturais locais, transformando maiorias geográficas em minorias culturais, e desglobalizando-as pela diferença, desigualdade e desconexão.

Suas propostas básicas são compreender esse fenômeno através de uma nova categoria, a interculturalidade, como a cultura que se mescla, confronta, troca e negocia, diferente da multiculturalidade, que apenas enxerga o heterogêneo estanque, o diverso separado como diverso. Ele recomenda, ainda, que se analise a globalização não somente a partir dos seus dados estatísticos - os indefectíveis datos duros canclianianos - mas também pelo imaginário, pelas narrativas dos seus atores.

Canclíni reconhece (contrariando quem achava que tudo estava perdido) o quociente inegociável de cada cultura da parcela hibridada pela globalização e sugere que se busquem acordos de co-produção cultural com capitais globalizados de culturas afins, que se reivindiquem políticas de regulação e proteção nacionais e de incentivo à produção cultural local, sob o risco de anulação e desaparecimento da diversidade cultural, em prol de uma pretensa multicultura monolíngüe construída sob o molde norte-americano.

Como receita final, ele incentiva fortemente o estudo da Economia da Cultura apontando-a como saída da opressão do mercado pelas armas do próprio mercado, fazendo lembrar claramente os estudos de George Yúdice em A Conveniência da Cultura (2004), onde a cultura extrapola o patamar tradicional de distinção apologizado por Bourdieu ou de antropologização aprofundado por Williams, e salta para a rentável plataforma de recurso, sob o argumento de que "a maior distribuição de bens simbólicos no comércio mundial (filmes, programas de televisão, música, turismo etc) deram (sic) à esfera cultural um protagonismo maior do que em qualquer outro momento da modernidade" ( 2004:26).

Ao longo do mesmo livro inspirador do seu seminário, Canclíni desconstrói algumas crenças da antropologia, da sociologia e do pensamento pós-moderno.

Da antropologia, reconhece, por exemplo, o disfarçado desejo idealizador de manter a cultura e os objetos dos seus estudos em redomas intocáveis, preservados do processo globalizador que agita o mundo, como se fosse uma Arca de Noé cuidadosamente embalsamada, cada espécie em seu escaninho cultural, "com inércias que o populismo celebra e a boa vontade etnográfica admira por sua resistência" ( 2004:21), citando inclusive Clifford Geertz que, segundo o autor, recusa-se a que se reduza a disciplina a " um saber sobre verdades caseiras" ( 2004:21).

Da sociologia, Canclíni duvida, por sua vez, que a famosa noção de campo de Bourdieu, amplamente utilizada nos meios acadêmicos como um coringa valioso para compreender a ação dos atores sociais em investigação científica sobre estrutura e poder, assim, a lo largo, como uma fórmula metodológica infalível, possa dar conta das especificidades particulares "de cada arte, da literatura, da política e das indústriais culturais" ( 2004: 97).

O estudioso argentino alerta também sobre a " indiscriminada exaltação da fragmentação e do nomadismo" de alguns estudiosos da pós-modernidade, criticando a visão tribalizadora do francês Maffesoli que, segundo Canclini, " banaliza a desintegração" (2004:22), como se todo nomadismo fosse feito apenas " pelo gozo do momento" (idem) e não, como se constata muitas vezes na prática, por sobrevivência.

Mas, afinal, a globalização é ou não o fim do mundo multicultural, a praga homogeneizadora que devorará a diversidade?

" O problema é mais de explosão e dispersão das referências culturais, que de homogeneização", responde Canclini, preocupado em estudar a interculturalidade, nova categoria criada por ele e reconhecida elogiosamente por Jesús Martin Barbero como "uma categoria com a qual nomear tanto a densidade dos conflitos e os intercâmbios que vivem as etnias, as regiões e as nações, como o lugar epistêmico desde o qual abarcá-los compreensivamente" ( revista online Pie de Pagina nº 3, abril 2005).

Para Canclini, precisamos evoluir de pensar a diversidade globalizada não mais como multicultural - o antigo caldeirão de raças e etnias catalogadas meramente por sua diferença - mas como intercultural. E explica: " interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, ao que sucede quando os grupos entram em relações e intercâmbios". Multiculturalidade, diz ele, apenas " supõe a aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são em relações de negociação, conflito e préstimos recíprocos" ( 2004:15)

E, àqueles que entendem a interculturalidade como um trânsito da diferença à fusão, como se a diferença deixasse de importar, Canclíni ressalta que sua idéia é " complexificar o espectro", considerando," junto com diferença e hibridação, as maneiras em que as teorias das diferenças necessitam articular-se com outras concepções das relações interculturais: as que entendem a interação como desigualdade, conexão/desconexão, inclusão/exclusão" ( 2004:21).

Para ele, a problemática da desigualdade se manifesta sobretudo como desigualdade econômica. Já a da diferença é visível principalmente nas práticas culturais: mais que em genética, língua e costumes, nos processos históricos de configuração social.

Aliás, Canclini ressalta que as transformações não são produzidas só pela globalização contemporânea, mas já vêm de há muito, desde a colonização, passando pela modernização, hibridação com outras culturas, pelas migrações, pelo consumo de bens industrializados e até pela adesão voluntária a modos de produzir não tradicionais. ( 2004:47). Inclusive, em um momento de raro humor, ele cita os antigos inimigos do capitalismo - os ex-comunistas chineses - que hoje produzem de tudo para todos os cantos do mundo, mesclando-se inclusive no Natal ocidental, onde são facilmente identificáveis pelos enfeites natalinos de papais noéis com bizarros (para nós) traços orientais.

Budistas cristãos ex-comunistas capitalistas globalizados, que mixórdia!

A desconexão, por sua vez, é um agravante que evidencia o aspecto desglobalizador da globalização, que marginaliza maiorias geográficas transformando-as em minorias culturais, alijadas do mercado de trabalho e da informação. Ser um conectado, no entanto, afirma Canclíni, citando Boltansky e Chiapello, pode também virar "fonte de novas formas de exploração e de novas tensões existenciais" ( in 2004:78) como, por exemplo, os portadores de celular, que acabam se transformando em trabalhadores sem limite de horário, alcançáveis em qualquer lugar e momento do dia ou da noite. Em suma, diz Canclíni, "ler o mundo pela chave das conexões não elimina as distâncias geradas pelas diferenças nem as fraturas e feridas da desigualdade"( 2004:79).

Enfim, o que Néstor Garcia Canclini propõe, cientificamente, são novas políticas de valorização das diferenças e do que chama de " direitos conectivos", para que os excluídos participem da indústria cultural e das comunicações, mantendo uma parte do seu território cultural preservada, com direito à diferença, direito à conexão e direito à igualdade, forjando talvez um novo grito de guerra pós-moderno, democrático, intercultural e universal: " Egalité, differènce, conection."

Referências bibliográficas:


GARCÍA CANCLINI, Néstor - Diferentes, desiguales e y desconectados, Mapas de la interculturalidad, Barcelona: Gedisa, 2005, 1ª reimpressão.

MARTÍN BARBERO, Jesus Maria - El tercer nombre de América Latina, resenha publicada na revista on-line colombiana Pie de Pagina, nº 3, abril de 2005, http://www.piedepagina.com/numero3/html/diferentes.htm

YÚDICE, George - A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global - Coleção Humanitas, Belo Horizonte: UFMG, 2004
(Graça Craidy)

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Meri que não foi com as outras.

Uma tinha 78 anos. Outra, 65. Enquanto a primeira, viúva há décadas, guardava em si a menina brejeira e mimada, agora novamente casta, a outra, largada do marido, ainda mantinha acesa a fêmea aquengada dos seus extintos hormônios. Em uma boca, batom rosa-palha tênue. Vermelho-desaforo, na outra.

Prima Eulália, a mais velha, era a dona da casa. Moça fina, criada em colégio de freira, antiga professora, teve acesso a literaturas e pedagogias privilegiadas para uma mulher da sua geração. Quando casada – e foram mais de 30 anos – eu sei que ela bem que apreciava as lides da cama, diz-que quando o primo Ramón investia em ataques falópicos, prima Eulália não se negava a doces entregas madrugadeiras.

“ Uma boa esposa tem que ser uma dama na sociedade e uma charmuta na cama” – ela dizia, na época, nariz empinado e cheia de razão, valendo-se da palavra árabe para não falar “puta”, ela que adorava um eufemismo. Na falta de charmuta, diria, cochichando,“ pê-u”, não tenho a menor dúvida.

Meri, a mais moça, era uma espécie de dama de companhia da prima Eulália. Ambas prisioneiras uma da outra. Sua origem humilde se revelava estampada no gosto duvidoso das sobrancelhas feitas a lápis preto, desenho tosco que lhe embonecava o rosto cor de cuia, transitando entre feições de bruxa e princesa envelhecida.

Tudo que a prima Eulália tinha de requintada, pudica e pundonorosa, Meri tinha de vulgar, atrevida e sensual. Meri varria o pátio calçando tamancos de salto alto, as longas unhas pintadas de vermelho, como se concedesse à lida a delicadeza da sua majestosa dedicação jamais servil.

Prima Eulália, não. Parecia uma pombinha gorda rosada, arrastava suas pantufas eternas pela casa, pra lá e pra cá, em tarefas autoimpostas de pôr e tirar a mesa.

Talvez cultivando esperanças para o dia seguinte, tinha o estranho hábito de arrumar a mesa do café da manhã logo após o final do jantar, se antecipando em uma muda obsessão de pratos e xícaras e talheres ordenados religiosamente, quando não dormitava em frente à TV, no sofá da sala, o queixo caído no peito como palomita vieja, ao lado de uma Meri entediada com aquela pasmaceira que se repetia fim-de-semana após fim-de-semana, período em que vendia seu tempo à prima Eulália.

Mal ou bem, iam se suportando, as duas, uma irritando a outra com as sombras das suas almas feito espelhos, onde se enxergavam mutuamente, evidenciando justo o que cada uma não queria ver: prima Eulália, o abandono consentido do seu lado mulher, o sexo retornado à sua função meramente biológica de urinar; Meri, ao contrário, tendo que encarar a velhice assumida da patroa, quase que lhe anunciando eu-sou-você-amanhã.

Até o dia em que Meri arrumou namorado em um daqueles bailes-matinées que ela frequentava e adorava – tinha sido escolhida inclusive “ Rainha da Terceira Idade” - para desgosto da prima Eulália, que resmungava pelos cantos: “Que barbaridade! Que falta de compostura!…”

Meri estava radiante, dava pra ver a sinfonia de ais que o tal namorado devia lhe ressoar por dentro, aliás, não bastasse o desaforo de levar o homem pra casa dela, só se referia a ele como “ o meu gato”, ao que prima Eulália respondia com um muxoxo e um olhar de franca desaprovação. Era só o que faltava: uma velha de 65 anos falando “meu gato” para um ser de duas patas, sem pêlo nem rabo!

No meio das duas, eu observava, dois olhos, duplo ouvido, nenhuma boca. E não pude deixar de perceber: toda vez que prima Eulália falava de Meri para alguém, repetia a mesma invejosa e surrada frase: - sabia que a Meri arranjou um homem? É…Um macho! Imagina, botou o cara pra dentro de casa!

E lá se ia prima Eulália frase afora, no cultivo daquela pequenez tão humana e envidraçada dos que, não podendo ser felizes, se incomodam profundamente com a felicidade alheia. Cada “ meu gato” de Meri, uma bofetada na cara da prima Eulália. ( Me veio à mente uma premissa famosa em psicanálise: quando Eulália fala de Meri, diz muito mais de Eulália que de Meri.)

Até quando certa manhã Meri pegou seus mijados e foi-se embora curtir os anos que lhe restavam com o dito gato. Para a prima Eulália foi um alívio: - Onde já se viu isso? Francamente!- ela encerrou o assunto, meneando a cabeça com ar de reprovação. E nunca mais na vida tocou no nome da Meri Padilha aquela.
(Graça Craidy)
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