Mad Woman. A maluquinha da Madison Avenue.

A Madison Avenue, em New York, como sabem os iniciados, ainda é o endereço superchique das mais poderosas agências de publicidade dos Estados Unidos. Eu, na época – anos 80 –, não tinha noção dessa importância e, talvez por isso mesmo, me meti de pata a gansa sem atinar que pretendia o praticamente impossível a reles mortais brasileiros. Inda mais reles mortais brasileiros como eu, redatora do mercado publicitário do Sul do Brasil.

A história começa em 1983, quando fui demitida de uma agência onde havia trabalhado quase sete anos, em Porto Alegre, e resolvi investir meu FGTS em New York. Pra horror do meu irmão engenheiro, que não entendia tamanha imprudência – guria, tu tá desempregada! tem que poupar! –, peguei minha indenização e me mandei bem bela pra Big Apple.
Quando comentei com amigos meu plano insensato, um deles, o diretor de arte e ilustrador Joaquim Fonseca, da MPM, se ofereceu pra me passar o nome de um amigo – diz ele – que havia conhecido em um dos famosos cursos de Criatividade de Buffalo. Nome do seu amigo: Ron Travisano.
Sabia eu quem era Ron Travisano? Não! Sabia eu se o homem era diretor de arte, redator, atendimento ou o quê? Não! Sabia eu se o homem era famoso ou um simples Ron? Não!
Indiferente como só os ignorantes sabem ser, anotei nome, telefone do tal Ron e me fui. A intenção era pedir um estágio ou algo assim na agência em que ele trabalhava, pensando conhecer melhor o dia a dia de uma agência norte-americana. Já que eu estava lá, why not? Assim facinho, pensei. Ligo, falo no Joaquim, o cara fica feliz de atender a uma amiga do amigo, me chama, eu peço um estágio, ele arranja e estamos conversados. Rá! Melhor dizendo, rá-rá-rá!

Pra economizar, como boa desempregada, eu me hospedei no YMCA (pra quem não sabe, a ACM de lá) da 63th Street, ali nos arredores do Central Park, a US$ 40 a diária. As saying, quarto sem banheiro, com acesso a banheiro coletivo, onde eu tomava meu banho na companhia ruidosa de dezenas de companheiras, tipo colégio interno. E jamais esquecerei das colegas negras peso-pesado que, enquanto se ensaboavam, cantavam encordoados blues em impressionantes agudos. Um showparticular! Enfim, o clima era esse, peculiar, interessante, divertido até, mas, não há como negar, terceiro-.
mundista estudantil.



No segundo dia, decidida a aproveitar meu tempo, passo a mão no orelhão do YMCA e ligo pro tal Ron Travisano, querendo marcar reunião. Depois de algumas tentativas, consegui falar com alguém que me passou pra outro, e outra e mais uma e, naquelas de eu-sou-brazilian-friend-do-friend-dele, me atende uma voz grave, meio sem paciência, tipo educado, mas sem mostrar os dentes: “Hello, o que eu posso fazer por você?”. Expliquei que eu era brasileira, redatora publicitária, do Sul do Brasil, amiga do Joaquim Fonseca, que tinha feito o curso aquele com você, e que…
Ele me interrompeu: “Sorry, não sei quem é Joaquim Fonseca”.
Silêncio.
Como assim, não sabe quem catzo é o Joaquim Fonseca?! Só me restou adotar de volta o mesmo tom meio nojentinho e contrafeito com o qual ele tinha me atendido.
— O.k., Ron! (Ron. Simplesmente: Ron. Mr. Travisano? Nem passou pela cabeça! Ah, essa falsa intimidade completamente sem-noção de homem cordial de quem o pai do Chico Buarque falou… ) E continuei: — Se você não lembra do único elo que eu poderia ter com você, então não temos mais nada a falar. Muito obrigada. Goodbye!
Não sei se ele ficou em dúvida se de fato não lembrava do Joaquim ou se ficou curioso pra conhecer a cucaracha que tinha respondido pra ele tão impetuosamente malcriada, o fato é que voltou atrás e me convidou pra ir até a sua agência, ali na Madison, 625. Ali. Na Madison.
Break: você, que conhece a extrema formalidade dos norte-americanos, responda: pra quando Ron marcou a reunião comigo: alternativa A- pra próxima semana? B- pro próximo mês? C- pro próximo semestre? A resposta está er-ra-da! Ron marcou a reunião comigo pra dali a – pasme! – duas horas.
Me arrumei com cuidado pra não chegar com cara de pedinte sul-americana: blazer de lã, echarpe, bota, num estilo elegante-casual-outonal, digamos assim. E me fui. Da 63th até a Madison dava uma salutar caminhadinha, boa de pegar aquele vento frio encanado naquelas ruas desenhadas a régua do Up to Midtown. 
Chegando lá, montes de gente na recepção esperando. Um tal de entra e sai e sai e entra e nada do Ron Travisano me receber. Fui me entediando daquilo, fui me entediando, entediando e, num impulso típico da protagonista, na maior sem-sensatez e vigarice do planeta, chego pra recepcionista e, educadamente, pero no mucho, atriz que só, lasquei: “Olha, tenho vários compromissos hoje e lamento, mas não posso ficar esperando muito mais; quem me chamou aqui foi o Ron, ele disse que quer falar comigo… Assim que, por favor, poderia fazer a gentileza de verificar se ele vai ou não poder me atender? Senão – sorry! – vou ter que ir embora.
A recepcionista imediatamente liga lá pra dentro não sei onde e, levantando em seguida, me convida a passar, dizendo que o Ron estava em uma reunião e que, quando terminasse, me atenderia, mas que eu poderia então aguardar na sala dele. Mais confortável – ela completou.
Mais confortável?! Meu coração tuntunzou, eu gargalhava por dentro sem mexer um músculo do rosto, Meryl da Graça Streep! Na sala do homem, com todas as coisas dele lá, segredos, papéis, gavetas, sozinhas, todinhas quietas, à minha mercê? Eu, uma ilustre desconhecida, amiga de outro desconhecido ilustre. Inacreditável, improvável, e, se me contassem, eu não acreditaria!
Entrei na sala do Ron, sentei, e comecei a vasculhar rigorosamente tudo com os olhos. A sala estava uma bagunça. Leiautes enormes empilhados na mesinha do centro de um recanto com sofá. Espichei o olho: era uma campanha para ninguém menos que a Rolls-Royce. Uh! O carro mais conceituado do mundo, aquele do anúncio do relógio do Ogilvy, caramba! Esta agência deve ser da pesada!, pensei.
A sala era tão charmosa que até a desarrumação dava a ela um ar mais interessante, de vida, de pulsação, de verdade. De um lado, uma cadeira de barbeiro com assento de couro vermelho. Na parede atrás de uma escrivaninha, prateleiras de cima a baixo recheadas de livros, revistas, objetos. Meio antiques, meio brechó, meio quarto de rapaz. Fiquei extasiada!
Eu não sabia nem que cara tinha esse Ron Travisano nem que apito tocava e estava ali desfrutando da intimidade dele, que se oferecia pra mim em cada objeto, em cada livro, lápis, gravura, flor, caco, me desafiando zombeteira: decifra-me, decifra-me!
Tomada de súbita ternura pelo dono de sala tão encantadora, abri a bolsa, peguei uma folha de papel, uma caneta, e comecei a escrever, em inglês: “Vou tentar adivinhar como é o dono desta sala a partir dos seus objetos e do jeito que ele escolheu decorá-la, para saber quem ele é. Quem sabe as coisas me contam do homem?”.
E comecei: pelo carrinho vermelho, lascado no para-choque, imagino que aqui deva viver um eterno menino que ressuscita cada dia, guardando no bolso com pedrinhas, sapos, figurinhas, o olhar da primeira vez. Pelo cartão-postal, sei que ali um dia ele ou alguém que ele ama foi feliz, e que cada vez que olha mais uma vez, é feliz de novo e de novo e de novo. Pelo… A memória me falha, mas lembro que fui escrutinando aquela prateleira, andar por andar, e sei que o Ron demorou pra chegar porque quando ele afinal entrou na sala, eu tinha pelo menos umas três páginas do papel escritas à mão, de cabo a rabo.
Ele me apertou a mão, sério e frio como aquelas pessoas que te atendem dizendo pois não? Fiquei meio sem jeito. Ele havia interrompido minha pequena viagem sentimental, eu já gostava dele, e aquele cumprimento distante e formal me gelou a alma.
 — Pois não, em que eu posso ajudar? – ele falou, de novo, sentando e fazendo um gesto com a mão para que eu sentasse, também.
Ron era um homem dos seus 40 anos, alto, corpulento, farta cabeleira ficando grisalha, sobrancelhão, traços marcadamente italianos, nariz grande, boca rasgada, olhos escuros, pele morena. Um homem bem bonito. Estava vestido nem tão formalmente como um cara do atendimento nem tão à vontade quanto o pessoal da criação.
Depois de um átimo elaborando o impacto da quebra de clima, peguei o papel que tinha na mão, derramado de palavras, todas pra ele, sobre ele, como ele. E falei: “By the way, enquanto eu esperava você, tentei adivinhar quem você era através das suas coisas… Have a look!”.
Surpreso, sem entender direito o que eu estava falando, ele pegou o papel e começou a ler. Dava pra filmar, frame por frame, a transformação do que foi acontecendo em seu rosto, à medida que ia vencendo as linhas. A testa desfranziu. A boca afrouxou. O queixo amoleceu. A cabeça entortou levemente pro lado. E já num tom de voz quase amoroso, encantado, italiano, ele sorriu pra mim e capitulou: “How sweet!”.
Dali pra frente, ficamos amigos: eu, mais discípula que amiga, ele, meu mestre. Impedido por razões sindicais de me dar estágio em sua agência por eu ser estrangeira e pretender vaga já prometida a estudantes norte-americanos, Ron fez melhor: me convidou pra assistir 100% free às aulas de Criatividade que ministrava na School of Visual Arts, uma das mais importantes escolas de belas-artes e design publicitário do mundo.
Ron era nada menos que um dos mais famosos e criativos diretores de arte dos Estados Unidos, vice-chairman e sócio do ainda famosíssimo publicitário (em quem dizem haver se inspirado a série de TV Mad Men), Jerry Della Femina, na agência Della Femina Travisano Partners, agência que brilhou por muito tempo nas luzes madisonianas até ser vendida para um desses big groups de hoje em dia.
Aceitei o generoso convite de Ron e não apenas assistia às suas aulas na School of Visual Arts. Toda semana, ia também até a agência dele meia hora antes do horário da aula, pegava carona no seu carrão com motorista, e depois sentava no meio da garotada a quem ele ensinava com muito bom humor como criar publicidade com pertinência e originalidade.
Lembro que ele passava o briefing (1) numa aula e, na outra, os alunos tinham que trazer um anúncio pronto, texto, título e leiaute. Antes de julgar se o anúncio entregue estava criativo, Ron submetia todas as peças à malha fina do briefing. Pegava uma por uma, mostrava aos alunos e perguntava: “Atende ao briefing?”. Não tinha meio-termo. Só podia responder sim ou não. Ai do anúncio que a maioria dos colegas achasse que não. Nem seguia pra próxima etapa. Era implacavelmente ze-ro. (Vinte anos mais tarde, quando me tornei professora de Criação Publicitária na ESPM, ainda me lembraria dessa preciosa lição.)
Depois que voltei ao Brasil, trocamos algumas cartas, Ron e eu, mas acabei me perdendo dele até outro dia, quando lembrei dessa história maravilhosa e encontrei uma carta sua numa velha caixa de guardados. Não contente, fui ao Google e ao Facebook atrás do seu rastro. E lá (veja aqui) estava ele, o velho Ron, lecionando design publicitário em uma Universidade do Brooklyn. Três décadas mais velho, mas igualmente encantador.
 ( GRACA CRAIDY)
(1) O briefing é o documento produzido dentro de uma agência de propaganda, contendo informações necessárias e direcionamento da empresa-cliente para a criação de uma campanha publicitária, como dados sobre o produto ou serviço a ser anunciado, sobre o público a que se destina, problemas enfrentados no mercado, posicionamento atual do produto ou serviço, objetivos da comunicação a ser criada etc. Um bom briefing é mais do que meio caminho para uma campanha bem-sucedida.
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