O espantoso, bizarro e escalafobético dia em que meu pai revelou afinal de onde vinham os bebês.

- Pai, qual a diferença entre um boi e um touro? perguntou inocentemente meu irmão caçula, do alto do seu enxoval de porquês, aos 3 anos de idade.

Antes não tivesse perguntado!

Meu pai, um experiente médico obstetra - "médico de senhoras", como dizia a plaquinha do seu consultório - decidiu, não sei por que cargas d'água, que tinha chegado enfim a esperada hora de revelar aos seus quatro filhos, dois meninos e duas meninas com idades entre 3 e 9 anos, de onde vinham os bebês.

Uma decisão tão nonsense, equivocada e intempestiva que até hoje eu vago insone em meus pensamentos da infância indagando aos céus: ó, Deus, me esclarece, por favor, o que tem a ver boi e touro com criança nascendo?

Jamais vou esquecer. Tínhamos acabado de jantar, em uma afável noite de outono, e eu lembro de estar já na sobremesa, atracada com a metade de uma laranja de umbigo.

E foi atrás dela que me escondi na cena a seguir, das mais bizarras da minha infância, quando dr. João trocou olhares cúmplices com minha mãe e, muito sério e compenetrado, nos conduziu ao recôndito mais reservado da casa, espaço proibidíssimo para trânsito familiar: o seu gabinete-consultório, onde atendia às suas pacientes.

Os móveis lá eram lindíssimos e assustadores. Altos, pesados, imponentes, de madeira esculpida, me representavam muralhas, eu mal e mal encostava o nariz no topo da escrivaninha.

Parecia uma aula de colégio, só que sem colégio. Meu pai foi falando aquela coisarada que eu não entendi nada, que isso, que aquilo, que aquilo outro, que entra por aqui, que sai por ali, que depois cresce e sei mais o quê.

Ao mesmo tempo ele ia abrindo livros grossos de capa dura verde com letras douradas na capa, e os livros iam revelando imagens horríveis e assustadoras de gente - no meu entender - com o lado de dentro estrebuchado.

E o mais espantoso de tudo: dentro do tal estrebuchamento tinha uma  criancinha mais apertada que rato em guampa, toda retorcida, coitadinha. Acho que tu não entendeste bem: a criancinha estava dentro da barriga da criatura do desenho!!!

Como assim, dentro?

Era uma coisa tão tão tão inconcebível, que se não fosse meu pai falando e se não existisse o desenho ali esmiuçadinho, juro que eu não acreditava. Por detrás da minha laranja, eu espiava aquilo com os olhos arregalados e sem dizer uma palavra. Nem eu, nem meus irmãos. Imagina, se com uma humilde perguntinha de boi e touro, meu mano tinha desencadeado aquela polvorosa horrenda, que dirá se a gente ousasse perguntar coisas veramente cabeludas.

E meu pai se esbaforia, mostrando os desenhos e, flap flap, virava páginas e mostrava outros piores ainda e, flap flap, voltava. Deus meu, aquilo não acabava era nunca! Nós quatro, catatônicos, ao redor daquela escrivaninha poderosa e à mercê daquele mestre enlouquecido na sua digressão biológicoterrorista.

Depois de um tempo muito comprido que não sei dizer quanto, meu pai se deu por satisfeito e nos liberou pra brincar na calçada ali na frente, que era o brinquedo bom da época. E nós saímos em escancarada fuga, aliviadíssimos por nos livrarmos daquele pesadelo acontecido antes de dormir.

O mais estranho de tudo é que nenhum dos quatro irmãos tocou no assunto depois, entendendo tacitamente aquilo como mais uma das muitas loucuras incompreensíveis dos adultos. E meu irmãozinho, por sinal, continuou sem saber a diferença entre boi e touro.

Enfim, a minha descrença naquelas cenas de terror explícito continuou até que uma fonte mais fidedigna - leia-se, minha melhor amiguinha do colégio - me contou que alguém tinha cochichado pra ela que pepepepe pepepe ali por onde a gente faz xixi.

- O quê?!

Foi um choque de novo, mas, agora, um choque de nojo. Total e completo. Porque nos desenhos do meu pai eu não tinha atinado que a tal vulvavagina era o por-onde-a-gente-faz-xixi.  Eca! E a cegonha, alguém por favor, me diga, onde anda em uma hora dessas?

Confesso que nunca superei o sentimento aflitivo de saber que os pobres bebês passam ali por aquele cochicholo tão apertado e tão pouco nobre.  Aliás, pobres bebês e pobres mamães! Por tudo isso, podem me falar com lágrimas nos olhos da ternura, beleza e sacralidade do parto normal, que não adianta: me vem de novo a mesma velha e esquisita sensação. (Graça Craidy)

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Artigo: Os criadores de fantasmas.

Ao longo da História, verdade e mentira têm sido consideradas dois lados de uma mesma moeda moral. Ora contrapõem-se uma à outra, ora se justapõem, sempre mensuradas com juízos de valor que vão do erro ao pecado. 

Quando cruza com a religião judaico-cristã, a mentira se transforma em crime duplamente punível: pela lei dos homens e de Deus. Acrescida da culpa, o pior dos castigos.

Jacques Derrida (1997:14) em sua conferência Historia de la mentira: prolegômenos invoca Santo Agostinho e De mendacio para alertar que é preciso distinguir entre mentira e crença e que a própria verdade, às vezes, mente:
Mentir é querer enganar o outro, às vezes até dizendo a verdade. Pode-se dizer o falso sem mentir, mas pode-se dizer o verdadeiro no intuito de enganar, ou seja, mentindo. 
Mas não mente quem acredita naquilo que diz mesmo que isto seja falso. (DERRIDA, Jacques. Historia de la mentira: prolegomenos. Buenos Aires: Oficina de Publicaciones del CBC, 1997)

 Na passagem por Kant, a falta à verdade é abominada por prejudicar não apenas o Outro, mas a humanidade em geral, e também porque o dever de dizer a verdade seria um imperativo sagrado (Kant, citado por Derrida, 1997:24-27), sagrado no sentido de original, de sinal, de " pegada dos deuses que se foram" e que conduziria ao seu retorno, em interpretação de Heidegger (citado por Derrida, 1997:25).

Quando, porém, verdade e mentira encontram Nietzsche, ruptura. Espanto. Quase um alívio. Para ele, verdade seria uma espécie de mentira - pode-se até interpretar - uma ex-metáfora gasta, puída pelo tempo, desmemoriada, onde não cabe punição mas até elogio, pois o filósofo seqüestra a expressão do seu tradicional tugúrio moral do Bem e do Mal, onde reinava há uma dezena de séculos, e a conduz além, a um diferente patamar extramoral, o da imaginação:


Que é então a verdade? Uma hoste em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e adornadas poetica e retoricamente e que, depois de um prolongado uso, um povo considera firmes, canônicas e vinculantes; as verdades são ilusões das quais se há esquecido que o são; metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua cunha e não são agora já consideradas como moedas, mas metal. 
(NIETZSCHE, F., Sobre verdade e mentira em sentido extramoral 1,1903, póstumo)


Metáfora mentira

Criar publicidade pertence, sem dúvida, ao mundo da retórica, das metáforas e das metonímias adornadas e realçadas, ilusões das quais volta e meia se esquece que o são. Criar uma peça publicitária buscando o seu máximo de qualidade inventiva para depois inscrevê-la em um festival de premiações burlando uma regra - a de que deveria antes ser veiculada na mídia - neutralizaria seu valor como verdade criativa e a enquadraria como culpada de mentira?


Essa foi a grande questão que ocupou o cerne de calorosos debates no meio publicitário, a partir dos anos 90, quando se descobre que muitos estariam trazendo do festival de publicidade de Cannes troféus reais de peças premiadas irreais, conquistados com trabalhos ditos crème de la crème, mas que jamais teriam visto a luz do mercado, nem nunca se exposto à sanha dos consumidores.

" Já pensou se um cientista ganhasse o prêmio Nobel com uma pesquisa que não deu certo, mas que se desse, seria ótima? Uma pesquisa fantasma? Ou um ator que ganhou o Oscar por um filme que não foi rodado, mas que se fosse, seria fantástico?"
É o que inquire o redator publicitário Davi Amarante (2002), ex-supervisor criativo da agência Edson, FCB de Lisboa, referindo-se aos prêmios - que ele parece considerar injustos - da chamada propaganda fantasma, conquistados no mais famoso certame de excelência publicitária do mundo.


Pela lei de Santo Agostinho, " Quem enuncia um fato que lhe pareça digno de crença ou acerca do qual formava opinião de que é verdadeiro, não mente, mesmo que o fato seja falso" ( Santo Agostinho, citado por Derrida, 1997:16). Por esse raciocínio, qual fato seria falso: o dos criadores inscreverem uma peça fantasma em Cannes como não sendo fantasma ou a sua crença na verdade criativa superior contida nas peças inscritas?

















"No último Festival de Cannes, metade dos anúncios não eram anúncios", diz o título de artigo online do jornalista Celso Japiassu, que explica o processo em questão, posicionando-se claramente contra o suposto procedimento fantasma:
No desespero para mostrar que pode fazer melhores anúncios do que aqueles que são publicados, o povo das agências deu para inscrever nos concursos de premiação criativa peças realmente descompromissadas – as que nunca foram nem serão publicadas e muito menos aprovadas e pagas pelos anunciantes. (...) (JAPIASSU, Celso. No último Festival de Cannes, metade dos anúncios não eram anúncios.)
O exercício da criatividade pura em publicidade, desvinculada do seu lado comercial, remete, talvez, ao conceito nietzscheano de vontade de poder, no sentido dado por Francisco Menezes (2005), na cátedra de Filosofia da Comunicação (PPG Com PUCRS) de que, mais que vontade de dominar, vontade de poder é desejo de criar, de buscar o Belo, a arte, de se superar, de exercer seu destino como pastor, não ovelha.


Ou, quiçá, pos-modernamente falando via as descobertas do filósofo Gilles Lipovetsky (2004), seria a ação dos indivíduos criadores publicitários abrigados em uma nova ética que o francês chama de à la carte: cada um respondendo apenas à sua própria consciência, na neomoral customizada de nome hiperindividualismo.





Cannes, a casa do espanto.

Esse arrastar de correntes das peças fantasmas teria começado em 1991, segundo Armando Ferrentini, editor do jornal Propaganda e Marketing, com um filme da agência Casadevall Pedreno & SPR, de Barcelona, para uma cola que nunca existiu. Mas que ganhou Grand Prix em Cannes. 

Neste comercial, de nome " Freiras", duas religiosas descobrem que a estátua do querubim do convento está com o pênis quebrado. Respeitosamente, a freira mais velha cola o pênis de volta no anjinho, voltado para baixo. Outra freira, desta vez uma noviça, mais observadora que sua par, passa pela estátua e refaz a colagem, corrigindo a posição do delicado pênis para cima. Grand Prix para a Espanha e grand começo para todos os fantasmas posteriores, como constata Ferrentini:




















Estaria a metáfora nietzscheana que tece a urdidura da verdade começando a se construir aqui, nesse claro momento histórico? Ou ironicamente os fantasmas, como Derrida resgata do sentido original da palavra - do grego phántasma - significam, de fato, espectro, simulacro, não pertencendo " nem ao verdadeiro nem ao falso, nem ao veraz nem ao mentiroso?" (1997:11)


Bem como ao estilo de Baudrillard (2002), talvez essa criatividade descomprometida ultrapasse a verdade: nem falsa nem verdadeira, porque pendurada em uma 4ª dimensão intermediária do tempo internético globalizado, onde a credibilidade não importa. A verdade das peças fantasmas seria uma verdade performática, disneica, com hora marcada em efêmero momento não histórico, bem à Baudrillard - trompe l'oeil, sua analogia favorita - simbolizando o quase, o falso, o pretenso. (2002, Baudrillard).


Seja na posição de metáfora querendo virar verdade ou de espectro virtual, hoje, mais do que gerar polêmica sobre sua validade ou não, entre publicitários do mundo inteiro, a propaganda fantasma tem provocado situações de puro constrangimento.

Leão cassado

Em 2002, depois de conquistar dois Leões de Ouro em Cannes, com um poster e um banner de internet para o lubrificante íntimo gel Ky, fabricado pela Johnson & Johnson, uma das mais renomadas agências do Brasil, a DPZ, filial do Rio de Janeiro, foi obrigada a devolver os cobiçados prêmios ao júri, cassados pelos organizadores do festival, diante da denúncia de outra agência brasileira multinacional, a Mccann - apoiada inclusive por comunicado da própria Jonhson & Jonhson - de que seriam peças fantasmas.



A conta do lubrificante íntimo Ky, segundo a Mccann, estaria com sua agência há pelo menos dois anos, configurando-se portanto em fraude não apenas a peça publicitária da DPZ como o seu suposto vínculo com o anunciante Johnson & Johnson. Ainda que, sob o ponto de vista criativo, a peça fantasma da Ky atendesse com raro brilho aos desejáveis pré-requisitos consensuais da boa propaganda: pertinência, originalidade e impacto.


Por que a DPZ, uma das agências mais premiadas do Brasil, ao longo dos últimos 30 anos, em Cannes, com peças reconhecidamente não fantasmas, arriscaria sua reputação em um exercício nonsense de avesso do avesso do avesso, quase que como no famoso poema de Fernando Pessoa sobre o poeta fingidor que finge sentir a dor que deveras sente, isto é, finge criar peças publicitárias de alta qualidade inventiva quando, de fato, já provou milhares de vezes saber criá-las?


O filósofo Oswaldo Giacóia, na palestra televisionada " O impacto de Nietzsche no século XXI" afirma que, para o dionisiófilo Nietzsche, o único real é o estético e para o nihilista Nietzsche, cada um de nós é o nosso destino particular, sobrevivente sem próteses de moral ou religião, sísifo fabricador de um eterno retorno que valha a pena ser revivido. Vivendo cada momento como digno de retornar eternamente, sem nenhum final redentor. Vivendo - reforça Giacóia - no plano da resistência, " como um outsider" liberto das influências, sem metafísica.

Fantasmas não vão às ruas

O que diferencia a campanha cassada de Ky das premiadas por duplo mérito - criatividade e veiculação - é que as segundas campanhas, além de criativas, teriam ido às ruas e logrado, como numa corrida olímpica de obstáculos, superar todas as dificuldades inerentes ao processo de criação, aprovação e veiculação de uma campanha. A saber: passaram por um briefing correto e bem-focado, uma criação pertinente e original, um atendimento persuasivo e fundamentado, um cliente arrojado e consciente dos riscos, uma verba adequada e uma produção competente (para falar de um kit operacional mínimo).  Enquanto as Kys fantasmas atenderiam apenas à primeira parte do básico, limitando-se a cumprir só até a etapa da produção da peça, muitas vezes, inclusive, desprezando a fase da aprovação do cliente ou simplesmente ignorando a sua reprovação.

Ou, ainda, como indicam alguns relatos, veiculando a peça publicitária, se filme, em horas ermas e de baixo custo da programação de TV ou, se anúncio, em jornais alhures de pequenas cidades, inserções pagas pela própria agência apenas para atender ao requisito de pré-veiculação obrigatória pelo menos um mês antes da inscrição em Cannes. O que, na opinião dos concorrentes europeus aos mesmos leões abocanhados pelo Brasil, não está correto, como reclama o criador publicitário português José Carlos Santos, do Clube de Criativos de Portugal:


No ano passado, no Festival de Cannes, segundo informações divulgadas pela imprensa, a DM9 conquistou o troféu de melhor agência do mundo só com fantasmas. As pessoas diziam: "Não, o anúncio saiu num jomal no interior de São Paulo." 
Mas o anúncio saiu uma vez porque a agência se dispôs a pagar esse espaço. Acho que os fantasmas servem para estimular a criatividade, mas não se pode trabalhar sempre assim. (CAMPOS, José Carlos. Entrevista ao site Coisa Séria 5.  Clube de criativos combate fantasmas.)



Com a gradual mudança dos bastidores econômicos não apenas nas agências de propaganda como nas próprias empresas anunciantes, a maioria vinculada hoje a matrizes americanas ou européias integrantes de grandes conglomerados financeiros que prestam contas a acionistas anônimos em busca de lucratividade, poucos - seja nas agências, seja nos anunciantes - arriscam, como em anos atrás, apostar em idéias publicitárias inovadoras simplesmente confiando no seu feeling, no seu gostei-não gostei, preferindo campanhas menos ambíguas, cuja linha criativa já tenha provado sua eficiência, ou, por outro lado, submetendo as campanhas a tantos testes, pesquisas e policies que poucas idéias, por mais brilhantes que sejam, resistem a tão fartos por quês.

Verdade: o dom de iludir 

Domingos Cía Lamana, doutor em Filosofia pela Universidade de Barcelona, ressalta que nas obras Zaratustra, Além do Bem e do Mal, Genealogia da Moral, O crepúsculo dos ídolos e O Anticristo, o valor da verdade para Nietzsche aparece situado além do Bem, do Mal e também além da verdade e da falsidade:
não é mais que um preconceito moral considerar a verdade como mais valiosa que a ilusão. (NIETZSCHE, citado por Cía Lamana, Domingos, in La Filosofía Narrativa de la Mentira, la Metáfora y el Simulacro.)

Cía Lamana indica, ainda, que Nietzsche teria sugerido a perspectiva como condição básica da vida, filosofia que o pensador alemão chamou de perspectivismo, " poder lógico-poético de determinar as perspectivas de todas as coisas".

Nietzsche não se furta de repetir que o engano e a falsificação são necessários para a vida - afirma Cía Lamana - e que somos os únicos seres da natureza com capacidade de inventar. Isto é, Niezsche não apenas aprova a ilusão como, parece, a entende tão valiosa quanto a verdade. Verdade, por sinal, que, se compreendida como ex-metáfora, em última instância seria exatamente o mesmo que ilusão.

















A perspectiva nietzscheana faz sentido com a recomendação de Morin (1999) à saudável renúncia à completude da verdade. Assim sendo, atente-se para a perspectiva do redator Toninho Lima, Diretor Associado de Criação da McCann Rio.

Em artigo no site de publicidade Vox News, ele aventa uma explicação para a busca quase insana de reconhecimento de autoria que move a criação de fantasmas. Toninho lembra que antes da globalização e da economização brutal da propaganda, o dia-a-dia de quem trabalhava em criação era muito menos angustiante:
Baseava-se em receber o pedido de trabalho, estudar a necessidade do cliente, pensar em idéias que solucionassem aquele problema e, de quebra, nos divertirmos criando coisas irreverentes, ousadas, mas quase sempre extremamente eficazes. 
E ainda recebíamos um bom salário no fim do mês. Sem correr atrás dos nossos nomezinhos em fichas técnicas, até porque eles apareciam lá, automaticamente, no caso de um prêmio. (LIMA, Toninho, em Deus criou a idéia. O diabo, a ficha técnica. 2005)
Toninho Lima

O cenário mudou duplamente, no entender de Lima (2005). Nas agências, o que se vê é
"uma gente neurótica, checando calendários de premiações, verificando fichas técnicas com olhos nervosos, folheando Ar(gh!)chives, fotografando ou manipulando imagens, imprimindo anúncios que muitas vezes nunca viram e nem verão a luz da mídia. 
Todos catando afoitos, aqui e ali, os possíveis focos dos holofotes imaginários de um mercado que virou show-bizz de otário. " (LIMA, Toninho, em Deus criou a idéia. O diabo, a ficha técnica. 2005)

E os clientes, não importa o porte, pequenos ou grandes, nacionais ou multinacionais, também estariam bem diferentes de há 10, 20 anos. Pela observação do diretor de criação da McCann-Rio ( 2005), muito mais tensos e burocráticos:
Você lá na frente, se descabelando, interpretando o personagem, fazendo caras e bocas, cantando, dançando. E eles com a cara enfiada no bloco, anotando, conferindo, calculando. No final, um deles explica porque a sua idéia não atingiu os níveis mínimos de persuasão determinados num manualzinho. Você acha que eles fazem isso de sacanagem? Talvez. Mas, na maioria dos casos, eles também estão mais tristes e inseguros. (LIMA, Toninho, em Deus criou a idéia. O diabo, a ficha técnica. 2005)
Antigamente, mesmo os clientes multinacionais ainda se permitiam o gosto-não-gosto na hora de aprovar ou desaprovar uma campanha, eles que tradicionalmente só decidem apoiados em testes e pesquisas. Hoje, porém, o prudente procedimento do pre-durante-pós-teste tornou-se regra sem perdão, dificultando sobremaneira aprovar boas idéias que se baseiam em qualidades tão intangíveis como leveza, inovação, humor, por exemplo, qualidades aliás que desde os anos 70 sempre exuberaram na premiada propaganda brasileira, e conduziram o Brasil ao reconhecimento como o de terceira propaganda mais criativa do mundo, junto com Inglaterra e Estados Unidos.

Conforme Lima (2005), neste novo quadro contido dos anunciantes, as boas idéias assustam porque não cabem nos manuais, nos padrões estabelecidos internacionalmente. Por isso, ao final das apresentações de campanhas realizadas por criadores, nas reuniões, em vez de subjetivos e passionais " adorei" ou "detestei", os profissionais passaram a ouvir dos seus clientes frias e circunspectas indagações, ao melhor estilo do que Francisco Rüdiger ( 2005) chama de pensamento tecnológico:
"- Esta peça não tem o look and feel da nossa marca. (...) Onde está o plano de taste and pleasure?" ( LIMA, Toninho, em Deus criou a idéia. O diabo, a ficha técnica. 2005)
Esses, na opinião de Lima ( 2005), os motivos que talvez tivessem levado os criadores publicitários ao desvio do fantasminha camarada, como ele chama, advertindo, porém, que pode ser um caminho sem volta, pois "de fantasma em fantasma, um dia você vai se perder no meio do devaneio, sem saber ao certo o que é real e o que é fantasia."

Pró-fantasmas

Há outros que, feito Lima, relevam os ghosts, chamando-os de válvula de escape, como entende o colunista publicitário e jornalista Jomar Pereira da Silva Roscoe (2006), em sua coluna Lubrificando a criatividade, justificando que as peças publicitárias fantasmas, muitas jamais apresentadas aos clientes, " seguem para os concursos inscritas pelas agências, na esperança do reconhecimento criativo, de grande valor para o curriculum dos profissionais e enriquecimento do portfolio das empresas". Jomar, aliás, toma claramente partido:


Sem querer radicalizar posições, sou de opinião de que os anúncios "fantasmas" funcionam como estímulo aos criadores e que os concursos deveriam incluir uma categoria específica para acolhê-los. (ROSCOE, Jomar P. S. Lubrificando a criatividade. Fevereiro 2006.)

Outros, ainda - o redator e sócio da agência carioca V & S, Lula Vieira, por exemplo - não só apóiam as peças fantasmas como ironizam a respeito, alfinetando os que fingem não saber ser esta uma prática disseminada em todos os festivais de propaganda:



















Quanto aos fantasmas da propaganda, só é importante para quem acha festival coisa importante na propaganda.  (Vieira, Lula,Vitrine)

Emmanuel Publio Dias (1997), jornalista da revista Propaganda & Marketing, em entrevista à revista on-line portuguesa Exame Executive Digest , vale-se de uma analogia para explicar a sua perspectiva sobre os fantasmas:

O Festival de Cannes está para a indústria publicitária como as corridas de Fórmula 1 estão para a indústria automóvel (...) 
O que hoje se exibe em Cannes, amanhã influenciará a produção publicitária de todo o mundo. ( DIAS, Emmanuel P. "Quem ruge mais alto em Cannes?", in Exame Executive Digest.

O caça-fantasmas.

Há, no entanto, a dura perspectiva dos inimigos ferrenhos da propaganda fantasma, como a do criador Washington Olivetto, dono da W/Brasil, autor declarado do epíteto fantasma, inventado na cola da expressão contas fantasmas de PC Farias, homem de confiança de Collor nos anos 90.

Em represália aos fantasmas de Cannes, Washington, nos anos seguintes a 91, se recusaria a inscrever peças de sua agência no festival e teria publicado, no Brasil, o que ele chama de gibizão (formato standard) com os melhores trabalhos da W/Brasil, sob o título: "A W/Brasil mata a cobra e mostra o pau", vendido inclusive em banca.

Olivetto, que tem em seu currículo quase 50 Leões conquistados em Cannes, todos não-fantasmas, ao que parece, não apenas condena a propaganda ghost, por razões éticas, como alerta para as politicagens do júri e a mina de ouro das inscrições em que teria se transformado o festival, antigamente sem fins lucrativos. Em 28 de junho de 1995, imaginando que os fantasmas teriam se acabado, Washington escreveu na Folha de São Paulo:

(...) O que sobrou dessa coisa toda foi um pequeno tititi sobre os "premiados" na mídia especializada, alguns anúncios daqueles que os publicitários escrevem para os outros publicitários lerem, e algumas declarações estapafúrdias do tipo "Não devemos confundir marketing com criação", "Cannes no fundo é um desfile de alta costura", etc. e tal. 
Por sorte, os clientes trabalham muito, vivem pensando nos seus produtos e não têm tempo de ler essas coisas.  (...) propaganda só existe se existir o cliente, a agência, o veículo e o consumidor. Só isso me dá a sensação de que todo esse meu nhenhenhém valeu a pena. ( OLIVETTO, W. "Fim ou começo?" in Os piores textos de Washington Olivetto, São Paulo: Planeta, 2004:142).


Como se sabe, todavia, em 1995 e nos anos a seguir, os fantasmas não apenas não acabaram como renderam grandes momentos - tanto de glória quanto de humilhação - à publicidade brasileira.

O Grand Fantasma

O colunista baiano Nelson Varon Cadena (2002), do Correio da Bahia, aliás, no evento já narrado da cassação do prêmio Ky, relembra um dos maiores feitos publicitários dos brasileiros em Cannes, como reconhecido fantasma:
Não é a primeira vez que o Brasil conquista prêmios internacionais com trabalhos fantasmas (tivemos o grand-prix da DM9 para Antarctica diet e o leão de ouro da Standard para Araldite, dentre outros) e certamente não será a última, mas desta vez a novidade é que a agência admitiu o erro, também confirmado pelo anunciante. (Cadena, Nelson V. "Anúncio fantasma é ouro no Festival de Cannes". Propaganda e Mercado, Correio da Bahia 30/06/2002)




















O citado Grand Prix da DM9 para Antarctica diet, conquistado em 1993, inaugurou uma série de acontecimentos para a publicidade brasileira e seus criadores - Nizan Guanaes e Marcelo Serpa - não apenas de prestígio profissional na condição de pessoas físicas, mas como grandes empresários gestores de verbas milionárias.

Grand Prix 1993

No mesmo ano de 1993, o diretor de arte da peça premiada, Marcelo Serpa, foi convidado a se associar à Almap BBDO, integrante do gigantesco grupo financeiro de publicidade nº 1 mundial - o Omnicom Group - onde permanece até hoje sócio e presidente, e inclusive, segundo o Relatório Gunn Report, considerada sua agência a mais premiada do mundo, em 2004, pelo montante de prêmios conquistados.

Ou seja, como constata o diretor de criação da agência carioca Artplan, Marcos Apóstolo, "Peça fantasma hoje não é mais apenas uma realização do ego. É negócio. É marketing para a agência."

Apóstolo lamenta, no entanto, essa mistura estranha de talento real com fantasmagorías e alerta para possíveis consequências negativas junto aos anunciantes que, a par do seu usual receio conservador para aprovar peças ousadas, estariam começando a desconfiar, também, das verdadeiras intenções da agência, quando propõe a eles propaganda criativa:


Infelizmente também nos expomos perante o cliente como fazedores de idéias para nós (hoje, nossa profissão sai em coluna social, tem matéria em jornal, e não apenas na mídia especializada; eles também ficam sabendo). 
Aí, como na hora de negociar a taxa, vamos negociar a criação tentando mostrar para o cliente que aquela idéia diferenciada, original e ousada é boa justamente por isso, para destacar o seu produto na paisagem? 
Em resposta, ouviremos: "vocês da criação são fogo: só pensam em prêmio." (APÓSTOLO, Marcos. Caça-fantasmas. Opinião. Site Janela Publicitária, 1999)
 A mim parece que a questão contém duas questões: uma, extramoral, quando se refere à criação pela criação, veleidade artística, vontade de poder, busca da superação; outra, moral, terrena e rasteira, quando envolve business e política. Mas, essa é apenas a minha perspectiva. Nietzsche talvez simplesmente dissesse: vocês, da criação, é que são verdadeiros. Só pensam em metáfora. <>

Resumo: Em 1993, a publicidade brasileira conquistou o seu primeiro Grand Prix no festival internacional de publicidade de Cannes, com um anúncio dito fantasma ( isto é, produzido apenas para concorrer em festivais), considerado uma espécie de marco no reconhecimento internacional do Brasil como um dos três países mais criativos do mundo em publicidade. Esse prêmio - o mais cobiçado do universo criativo publicitário mundial - acabou estimulando a naturalização da chamada propaganda fantasma no imaginário dos publicitários brasileiros. Esta reflexão busca ampliar a discussão sobre a moralidade da prática dessa espécie de arte-publicitária-pela arte, e também pelo que representa de ascensão hierárquica dos seus autores, nas agências de propaganda, e de novos negócios no setor. Sob o ponto de vista teórico, apoia-se principalmente em Nietzsche.

Palavras-chave: propaganda fantasma; criação publicitária; verdade; mentira; moral.

Notas:
1.Propaganda fantasma: propaganda criada apenas para concorrer em festivais de excelência criativa, sem nunca ter sido veiculada na mídia e, muitas vezes, sem ter sido solicitada ou autorizada pelos anunciantes. Estratagema utilizado por muitos criadores publicitários do Brasil e do mundo, a partir da década de 90, principalmente no festival de publicidade de Cannes. Também chamada de ghost ou scam, em inglês, e trucho em espanhol.

2. Briefing, de " brief, resumo; conjunto de informações sobre o produto ou serviço a ser anunciado, indicando público-alvo, características, concorrência, objetivos da comunicação, verba, etc.

3. Pessoa, Fernando." O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente" (...) poema "Autopsicografia". in O eu profundo e os outros eus.

4. Revista alemã Archive Luetzer que publica os anúncios considerados melhores do mundo, a maioria com linguagem fortemente visual; espécie de lançadora mundial de tendências em formatos de criação publicitária.

 5. Pensamento tecnológico, segundo Rüdiger, (em aula de Crítica da Razão Tecnológica, no PPGCOM PUCRS) é aquele que tende a olhar para tudo - pessoas, atos e coisas - como passíveis de serem avaliados feito máquinas, peças de um grande sistema, em claro reducionismo maquinístico.

6. The Gunn Report , do publicitário americano Donald Gunn, é uma espécie de auditoria internacional de premiações publicitárias, organizando anualmente a lista dos maiores detentores de prêmios no ranking mundial.

Bibliografia:
BAUDRILLARD, Jean - Tela total. Porto Alegre: Sulina, 2002.
DERRIDA, Jacques. Historia de la mentira: prolegômenos. Buenos Aires: Oficina de Publicaciones del CBC, 1997. 1ª Ed.
LIPOVETSKY, Gilles . Metamorfoses da cultura liberal. Porto Alegre: Sulina, 2004
MORIN, Edgar - O Método 3. O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina. 1999. 2ª Ed.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência .São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
___________________ Genealogia da Moral . São Paulo: Companhia das Letras, 1998
OLIVETTO, Washington. Os piores textos de Washington Olivetto. São Paulo: Planeta, 2004.
PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980

Videografia:
GIACOIA, Oswaldo - O impacto de Nietzsche no Século XXI , in Balanço do Século XXI Paradigmas do Século XXI . Os Fundadores do Pensamento. São Paulo: TV Cultura, 2005 .DVDR.

Webgrafia:
APÓSTOLO, Marcos. Caça-fantasmas. In Janela Publicitária. 1999. Disponível em http://www.janela.com.br/anteriores/Janela_1999-07-03.html
AMARANTE, Davi - Desista. 2002. Disponível em: http://www.bleast.com/shithappens/arquivos/2002_12_01_arquivos.html
CADENA, Nelson. Anúncio fantasma é ouro no Festival de Cannes. Coluna Propaganda e Mercado, in Correio da Bahia 2002. Disponível em http://www.correiodabahia.com.br/2002/06/30/noticia.asp?link=not000056456.xml
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