Ela sou Eu.

Não sei se você já assistiu ao filme Ela, do diretor Spike Jonze, que ganhou Oscar de Melhor Roteiro 2014.  Conta a história de um solitário escritor profissional de cartas pessoais (Joaquin Phoenix) que se apaixona por um sistema operacional. Sim! isso, mesmo: um sistema operacional, tipo um aplicativo, um app com voz de mulher, chamado Samantha (Scarlett Johansson). Ele conversa com a Samantha, passeia com a Samantha, vai à praia, a concertos e até faz sexo com ela, auxiliado por seu smartphone, desses que se encaixa na orelha. Tudo só acontece ali, ao pé do ouvido.

É um belo filme. Quando a gente vê, está envolvida em uma delicada história de amor de intensa afinidade e mútua compreensão, absolutamente terna,  divertida e improvável, torcendo pro mocinho ficar com a mocinha - ops! com o sistema operacional - no final.

Até a hora em que você toma distância e se dá conta de que o filme, na verdade, é uma melancólica metáfora  dos tempos atuais, do indivualismo exacerbado, que o filósofo Gilles Lipovetsky chamou de hiperindividualismo. O sujeito autocentrado que, com a frouxidão das antigas amarras éticas e morais da igreja, da família ou da própria sociedade e, ciente de que não existe mais aquele futuro com final feliz das grandes utopias do século XX,  se sente no direito de moldar o mundo conforme le gusta. 

E a medida, na medida do possível, é uma só: o seu umbigo. E aí cada um exercita a primeira pessoa do singular sem a menor modéstia e indisfarçável prepotência, perdendo totalmente a noção de alteridade, o Outro apenas uma palavra que se reveste claramente de inferno, como Sartre chamou,  visto que do lado de lá também habita um Um, com seu umbigo, seus desejos, sua intolerância, sua impaciência, sua cegueira a qualquer coisa que não seja seu bem-estar e estar bem. 
Por que o escritor solitário que acabou de sair de um casamento com Outra com quem não conseguia mais se relacionar, só consegue se dar bem com uma Samantha Sistema Operacional? Bingo! Porque a Samantha, no caso, é ele, mesmo. Programada a partir dos seus quereres, suas necessidades, seu universo. A Samantha não é nem um alterego. É o próprio ego. Como não gostar de quem pensa exatamente como eu, sente exatamente como eu, deseja exatamente o que eu desejo? Não dá serviço nenhum, não há embates, corre que é um riacho manso.

Todo dia a gente se depara com comportamentos na nossa sociedade atual que reforçam esse sentido de autocentrismo impaciente, de tal maneira que nos enfiam goela baixo toda hora seus Eu! Eu! Eu! e recebem de volta nossos Eu! Eu! Eu! numa briga de mudo com surdo que não chega a lugar nenhum. E a tecnologia é a grande aliada dessa lambeção de umbigo. O celular, hoje chamado de telefone inteligente, na verdade,  é um abduzidor do tempo e da realidade que nos deixa meio burros. As pessoas não conseguem mais nem sentar pra comer uma linda refeição sem ficar de olho na telinha do whats-app pra ver o que vem a seguir, numa sofreguidão pelo novo, pela necessidade de dominar o relógio, de estar up-to-date, que não preenche a fome nunca porque o novo que chega sempre é requentado, pífio, raso, pequeno, paroquial, efêmero, medíocre, midiatizado, espetaculoso. E tem a selfie que substituiu o autógrafo e a selfie pós-coito e a selfie da estante de livros e a selfie da bunda e a selfie, qualquer dia desses, do colo do útero e do intestino delgado, a julgar o andor da carroça.

Outro dia me deparo com a notícia de uma fotógrafa britânica que casou, de véu, grinalda, festa, juiz, buquê e tudo....com ela mesma! Santo deus! Dai-me Liquid Paper pra apagar tanta bobagem. Mas, não. Não é bobagem. Os dias tem sido cada vez mais assim e não se sabe onde tudo vai dar. Enquanto isso, tenho me exercitado para não estar nem aí porque pós-moderna que sou também me tornei uma hiperindividualista e, como dizia meu pai, Mateus, primeiro os meus. (Graça Craidy)
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