A roupa branca de fadinha retrô e o véu de gosma de maranduvá.

- E o que o Deus uniu, o homem não separe! - encerrou o padre, um ar entediado de quem já tinha repetido aquilo milhões de vezes, sublinhando a frase com um sinal da cruz sobre nossas cabeças, cujo significado não alcanço direito se queria dizer bênção, ameaça, advertência, fechamento de corpo ou premonição.

Eu mal podia acreditar. Onde arrumei coragem para aquela insanidade? Depois de anos em um namoro de boa troca porém descomprometido com o Walter, havíamos acordado, enfim, um tudo-ou-nada kamikase. Desconfio que aquela garrafa de Veuve Clicquot naquele fatídico feríado de Finados nunca deveria ter sido aberta.

O medo de morrer sozinho, a pressão dos amigos, o olhar magoado de mamãe, o aluguel cada vez mais alto - pra quê dois aluguéis se você pode pagar um só? - e nossa boa cama de orgasmo garantido, tudo podia ser alegado como boa razão para o casamento. Afinal, gente muito menos inteligente e descolada que nós se atrevia, por que não tentar?

No corredor da igreja rumo à porta, já comecei a me sentir meio ridícula, fantasiada com aquela roupa branca de fadinha retrô. Não bastasse o véu se arrastando atrás de mim feito gosma de maranduvá, percebia no olhar da mãe do Walter um certo desgosto com promessas de Otela explícita, ela que nunca aceitou eu fosse mais velha que o filho. Velha por velha, ficasse com ela... Em minha mão esquerda, aquela aliança de ouro inspirada decerto em argola de focinho de boi de carreta também começava a me pesar, estranha sensação de que meu braço esquerdo estava mais comprido que o direito.

(Lembrei do olhar triunfante das comadres da minha cidadezinha, quando anunciavam noivados: Fulana contratou casamento! Contratou?! Parecia business, uma espécie assim de Recibo Arras da pessoa.)

Bem que eu era apaixonada por Walter. A vantagem de um marido mais jovem é que não vinha com aquele ranço machista dos Fifties. Viva os anos 70! Meu doce cônjuge tinha a leveza dos crescidos no tempo do "be happy, don't worry", resgate de São Mateus, Novo Testamento: " a cada dia, sua pena".

Em meio aos sorrisos de plástico que adornam festas de casamento, aquele povaredo feito corvo empetecado em lixão, comendo e bebendo às custas da família da noiva e pouco se importando se você vai ou não ser feliz, captei no olhar de Walter uma pequena nuvem de pânico. Eu conhecia aquele S.O.S.. Toda vez que ele se sentia preso ao compromisso amoroso, assumia o cúmulo- nimbo de sufocamento que só desanuviava na renovação dos votos de forever solteiro.

Entendi perfeitamente a sensação. Também eu tinha lá minhas esquisitices de metereologia, não à toa havia permanecido solteira até então.

Talvez pela falsa impressão de rei-rainha que só quem vestiu fantasia de noivo-noiva sabe, naquela noite Walter e eu nos comportamos como dois pombinhos, atendendo à psiche-du-rôle das personagens.

Trégua consentida, mútuo pacto, vivemos uma lua de mel pontilhada de beijos e juras de amor eterno.

Eterno, até o dia em que ele reclamou que eu apertava a pasta de dentes do meio pro bico, em vez de do fim pro meio. Não acreditei no que estava ouvindo!... Dez anos juntos e ele nunca tinha se incomodado com isso, agora vinha com aquela bobagem?

-Bobagem, é? Pois fique sabendo que eu detesto suas calcinhas penduradas no box, revelando pra todo mundo o tamanho da bitola da sua bunda!
- Mas, que todo mundo, Walter? Ninguém entra em nosso banheiro...( Bitola da bunda? Aquilo me ofendeu...)
- E você, que não é capaz de juntar a toalha molhada do chão depois que toma banho? Diga: quem você pensa que junta sua toalha molhada, Walter, todos os santos putos dias, 365 vezes por ano?

Nosso casamento começou a acabar ali. Quando um casal se presta a gastar energia com miudezas, é porque finalmente a rotina se entranhou na relação, enferrujando os afetos.

Compramos duas pastas de dente. Para meu pasmo, constatei que Walter odiava Close-Up, a marca que sempre escolhi. Vitorioso, como se aquilo fosse um divisor de espaço, ele escolheu uma pasta branca - Philips - a mesma pura pasta que a mãe tinha lhe ensinado a usar, na infância. Walter, À Procura da Identidade Perdida...

Nossa cama, que antes parecia tão sedutora, passou a ter dia e hora pra acontecer. Nunca durante o futebol de domingo. Nunca, por exemplo, numa segunda-feira. Jamais de manhã cedo, como eu adorava. -" Vou perder a hora, mãe!"

Mãe???? Então, eu tinha virado parente dele, só porque cogitamos longinquamente ter um filho quem sabe um dia não sei quando mais tarde? Aquilo me caiu como uma bomba: tanto eu havia posto reparo e agora repetia o abominável incesto sempre condenado por mim em casais que se tratam pai e mãe.

Não sei se porque mais velha, não sei se porque mais diaba, corri ao espelho catar rugas e verdades cruas naquela mulher que um dia pensou ser moderna, madura, bem-humorada e jovial.

- À quem você está querendo enganar, neguinha? - me perguntava ela, com um brilho entre divertido e sarcástico no olhar.

Essa pergunta, pra mim, era fatal. Transparente toda vida e realista compulsiva, quando chegava ao ponto de eu me fazer tal pergunta, duma coisa podia ter certeza: a resposta sempre vinha em forma de mudança.

- Não gosto de ser casada! Não quero mais ser casada! Não nasci pra isso, putaqueopariu! ( Lembrei da Gabriela do Jorge Amado arrancando os sapatos de Sra Nassif.)

Já há algum tempo eu carregava a estranha sensação de ter virado
irmã xifópaga do Walter, como prenunciava Quintana em seu poema sobre casamento. Tudo o que a gente fazia era grudado. Cinema, televisão, refeições, festas de família, dormir, acordar, não fazer nada, tudo era junto. Não admira que estivéssemos virando parentes.

Um dia me dei conta que fazia os mesmos gestos do Walter - ritualizados - para abrir uma garrafa de vinho: pega a faca, põe do lado, ( direito! jamais esquerdo! ) Com a mão direita corta o laminado, do meio para trás, num impulso único. Pega o saca-rolha e religiosamente finca a ponta curva no centro da rolha. Exercício de precisão ge-o-mé-tri-ca!...Torce uma, duas, três, quatro. Pronto! Que chatice....Cadê aquele desconhecimento do sabe-lá como um gesto acaba, onde a distração do prazer?

Casais não se dão esse direito. Como dois pitbulls, um cuida de zelar pela perfeição do outro. À primeira quebra do rito, dá-le rosnado, e toca o burlador de volta ao caminho da lei.

O mistério se explicita. Não há mais mistérios. Nem espaço para descobertas, invenções, desafios. Surpresas não têm mais lugar.

Walter que me desculpasse, mas, mãe, só tem uma. E não era eu.

Hoje vivo de novo em meu apartamento de solteira, com minhas calcinhas penduradas no box denunciando bitolas de bunda e, vez ou outra, a rolha do vinho quebra e tenho que coar.

Agora, com licença. Vou tomar um banho de banheira e me fazer a mais gostosa para o meu doce amante que logo, logo bate aí. Quem? Walter, claro! Eu falei que era apaixonada por ele!... Não gosto é de casamento. ( Graça Craidy)

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8 comentários:

  1. Bia Deck escreveu:

    Graça; imprescindível aplaudir. Beijo.

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  2. Vera Lucia Bemvenuti escreveu:

    Adorei. Vou partilhar para os/as amigos./as.bhj

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  3. Daisy Barella escreveu:


    Adorei Graça, assim como tua personagem, também eu, não gosto de ser casada. Bjo

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  4. Renee El Ammar escreveu:

    Ela é sempre ótima , minha amiga Graça Craidy....

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  5. Teresa Valadao escreveu:

    Adorei Graça Craidy! Você precisa escrever os relatos após 30 anos de casados. Aff!!!

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  6. Ivan Caires escreveu:

    Graça Craidy, muuuuuito bom! Eu me vi em vários momentos...rsrsr... "finalmente a rotina entranhou na relação, enferrujou os afetos.". O começo do fim nos casamentos.

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  7. Marly Schmitt escreveu:

    Graça!!! Adorei és Barbara!!!

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  8. Sara Seadi escreveu:

    Adoooorei, aliás como tudo que tu escreve! bj

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