Final dos anos 90. Vez ou outra eu conversava com ele pelo chat. Oi-tudo-bem-calor-aí? Aquela moleza gentil que - juro! - não mexia com uma grama dos meus hormônios, mas eu gostava.
Quer coisa mais confortável que uma reserva técnica para diálogos leves em noites de garoa paulistana, na preguiça do lar, os pés enfiados em inconfessáveis pantufas?
O sábado estava frio. Recém eu tinha voltado de um jantar com uma amiga, onde repartimos vinho, peixe, risos, fofocas, pasmos e, claro, o mesmo assunto que habita recorrente todos os baloons de prosas mulheris: homens.
Duas sem namorado a suspirar por um, entre goles de Valpolicella. Muito peculiar!
Pois, chegada em casa e retomado o meu velho kaftan cingapuriano, eis-me tela-a-tela no chat com o moço aquele da não-testosterona.
- É, um peixinho, um vinhozinho...- contava eu, em pleno exercício do kit insosso e inodoro.
- Ah, você curte peixe e vinho?...Eu também!
Sabe-se porque, aquela noite resolvi pôr um pouco de tabasco no papo e, junto com o menu do jantar, adicionei - marota - a informação de que me encontrava em um momento muito especial de assumir meu lado feminino, que tinha deixado crescer o cabelo, passado a usar salto alto, roupas mais justas. Pimentinhas irresponsáveis jogadas ao léu.
Ato contínuo, borbota pavloviana a indefectível reação masculina:
- Que tal um vinhozinho, dia desses?
- Claro, por que não? - respondi educadamente, pensando ao mesmo tempo aimeudeusinhodocéu!...
- Que tal amanhã à noite?
Engoli em seco, do outro lado da tela. Quem mandou provocar?
Putz! O cara entrou numas de tomar vinho comigo domingo à noite! Não basta a inhaca natural domingão de faustãofantástico, me aparece agora um sem-rosto, conversa morna, e ainda vou ter que bancar o modelito moça-gentil e, acrescente-se em tempo, gostosa?
- Amanhã, domingo? - engambelei.
- É. Passo aí e apanho você. Tudo bem?
Não tive como. Ia parecer grossura recusar . Afinal, o cara não estava me convidando para intimidades febris - era óbvio! - apenas para um previsível confronto de curiosidade estética, aliado a um modorrento vinho que eu esperava não fosse daqueles com falsos nomes franceses ou, pior, alemães.
Assim combinei. E assim deletei. Obnubilação total dos sentidos.
8 da noite do dia seguinte, estava eu na sesta dominical pós algum almoço tardio, toca o telefone na mesa de cabeceira, feito curra acústica.
- Alô, Graça? Sou eu...Tô chegando. Pode descer?
Cazzo! Esqueci do homem, do vinho. E agora?
Minha voz meio pastosa inventou uma desculpa de atraso e pediu pra ele estacionar nas vagas de visitantes do prédio, já-já ia descer.
Um pé cá, outro lá, entre puta-merda-puta-merdas!, tomei uma chuveirada, passei a mão no primeiro pretinho básico que se oferecia no armário, enfiei os pés na sandália marrom altíssima - dane-se se o cara for pequeno! - e saí voando porta afora. Elevador. Botão do térreo. Um último batom no espelho do Otis e fui, rumo à portaria.
O passo ralentou: aimeudeusinhodocéu! Nem sei a cara da criatura! E se for um esquisito? Assassino? Um chato de galocha? Se usar peruca? Falar menas? Menos, Graça, menos! Não vai casar com o homem, mulher! ( Engraçado, essa frase "não-vai-casar-com" sempre me acalma, desde menina...)
Parei de arrastar os pés que postergavam o encontro, abri, corajosa, a porta de vidro e...uau!
Encostado displicentemente em uma BMW prateada, braços cruzados, sorriso cheio de dentes muito brancos e exalando testosterona por todos os poros, me surgiu do nada a versão Herbert Richers de um ídolo da adolescência: Rossano Brazzi, ele, o italiano das minhas matinées no cine América de Ijuí.
Meu olho deve ter arregalado, meus joelhos deram uma baqueada, nem sei como não caí da sandália de plataforma marrom.
Sim, eu quero! - foi meu primeiro pensamento, vergonhosamente adesista de último minuto.
Meio hipnotizada, abri um sorriso de boas-vindas e disse oi com aquela naturalidade langorosa inconsciente que mulher adota quando vai seduzir.
Entrei no carro e desatei a falar uma letra atrás da outra, numa fieira de conversa comprida que durou horas: antes, durante e depois do vinho (cujo, por sinal, nem lembro a marca).
Se a boca parava pra ouvir, o olho ficava extasiado passeando em zoom no rosto do interlocutor, perscrutando cada pedaço: a sobrancelha grossa, o nariz aquilino, os lábios fartos, bem desenhados e - aiaiai! - uma pontinha quebrada no dente da frente, anzol fatídico fincado no meio daquele sorriso deslumbrante.
Ele falava baixo, contando da vida, gestos tranqüilos, a mão honesta, morena, unhas impecáveis. Mão de homem,aiaiai!... Quanto mais calmo ele, mais meu sangue bolia histérico nas veias. Vontade de morder aquela mão!
No caminho de volta, parados num farol, ambos quietos, ouvi Rossano falando baixinho, como se sussurasse pra ele mesmo: - gos-tei!
Fiz que não ouvi, em respeito ao segredo traído, mas lá no fundo meu coração cambalhotou destrambelhado.
Carro no pátio do prédio, aquele instante tudo ou nada de tchau-a-gente-se-fala, inclinei o corpo e, numa ousadia desaforada, em vez de beijá-lo no rosto, rocei-lhe os lábios, selo moleque.
Pra quê?
Não tive tempo de retornar o corpo ao encosto do banco, aquela mão morena me agarrou pelo queixo e deu-se ali o beijo na boca mais technicolor e estonteante das últimas Metro Goldwin Meyer Productions.
Rossano Brazzi e Graça Craidy, créditos subindo lentamente. Suspiros na platéia. The end. Letreiro final: a seguir, na casa mais perto do seu cinema. (Graça Craidy)
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Um blog à beira de um prozac. Reflexões sobre pós-modernidade, criadores publicitários, artigos acadêmicos, vida real, memórias, xingamentos, declarações de amor e desaforos em geral.
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E cadê o cara? Tu não casou com ele ou ele contigo?
ResponderExcluirExatamente como pergunta o Aldo, cadé o dito cujo? Tem que ter plano sequência. Não pode escrever assim e deixar a gente na mão. Entrega Gaucha. Fica jogando pimentinhas irresponsáveis ao léu, sua danadinha. rsrsrs
ResponderExcluirMuito bom Graça. Delícia.
Ivan Caires
Patrizia D.Streparava escreveu:
ResponderExcluirLi ontem, via FB. Adorei. Agora, nao me conformei com o suspense: que aconteceu com a maravilha????
Hermes escreveu:
ResponderExcluirTe cuida Martha, te cuida Lia... Das Graças chegando a mil no pedaço.
Guilherme Azevedo escreveu:
ResponderExcluirTá demais esse texto, querida.
Tô pensando em publicá-lo no Jornalirismo, posso?
bjs de cinema mudo
Claudio Eduardo de Oliveira escreveu:
ResponderExcluirBem legal,
Ab,
Cláudio
Graça!! Muito bacana teus textos! Bjs Isabella - a vizinha!
ResponderExcluirMarta Escaleira escreveu:
ResponderExcluirGraça, você é terrível! rsrs Muito bom, leitura deliciosa! Beijos!
Amanda Fischer escreveu:
ResponderExcluirTenho lido alguns artigos do seu blog! muito bons, adorei o do Rossano, o "principe"! como eu ri, parecia louca rindo sozinha lendo desde meu celular!
Um grande abraço e parabens pra vc tb pelo se aniversario (q eu esqueci sorry!) e pelo blog maravilhoso!
bjs