- Um chá verde! - ele pediu ao rapaz do balcão, depois de tirar do bolso da camisa um par de óculos para perto, ajeitá-lo sem pressa no nariz e aproximar o rosto da caixa abarrotada de pequenas embalagens coloridas de camomilas, cidreiras, hortelãs e que-sé-yo que o italianinho rústico do Italian's lhe oferecia, com rara delicadeza naquele confim gelado de Soledade, num domingo sem nenhuma razão especial, a horas bestas de arredores meia-noite.
Aquela voz grave, mansa e carregada de andares outros que eu nem imaginava, mas podia adivinhar cansados, um pouco doídos, talvez, tocou histérica em algum ponto nevrálgico das minhas vísceras.
E soou boa, aguda, novidadeira em minha vida celibata, noviça e desnamorada, mais prenhe de soledad que a cidade escondida atrás da serra. Não pude evitar meu olho rápido e dissimulado procurando com urgência sem lógica o rosto de seu dono.
Chá verde?! Naquele ambiente rodoviária fim de feira, em meio a um bando de gente desinteressante atracada em gordurosos pastéis de carne reciclada do churrasco do meio-dia, coxas de frango empapuçadas de óleo velho e bolos pra inglês não ver?
Chá verde?! Naquele trânsito deselegante de passageiros com os olhos meio vítreos de sono, babados de ramela, descabelados, desengomados, arrastando sapatos com nesgas de papel higiênico trazido sem querer dos banheiros de limpeza duvidosa?
Parecia que eu tinha ouvido: - " leve-me ao seu líder!" O dono da voz só podia vir de um OVNI estacionado ali fora, junto ao anacrônico monopólio da Ouro e Prata e seus barrigudos motoristas de camisa azul- cobalto com indefectíveis palitos no canto da boca, sempre às vésperas de um arroto de comida deglutida sem mastigar, prisioneiros do taquímetro e do relógio de seus patrões tedescos.
O dono da voz era um homem estranhamente elegante, destoando do lugar. Magro, grisalho, cabelo cortado rente, com suaves entradas na testa, bem-vestido ao estilo casual, em torno de 1,75 m, moreno e barba adredemente por fazer, o que acentuava ao mesmo tempo seu mistério, estranheza e charme.
Enquanto eu - tosca como todos os outros - engolia às pressas meu sanduíche de salame com café, observava com o canto dos olhos o homem do chá verde, tranquilamente sentado sozinho em uma das mesas de fórmica, perdido em seus próprios pensamentos, como se não ouvisse nem visse aquele ir e vir noturno de formigas-cupinzentas ao seu redor.
Fumando lá fora, percebi de novo, parado na porta, olhando sem ver pro breu da noite, ele. O da voz. Aquilo já estava me perturbando. Que coisa! Que tanto um chá verde me causava tamanho algaravio, inquietação, desassossego de hormônios?
O estranho entrou no ônibus. Também entrei. E, sei lá o que me deu, talvez um despautério de estrogênio, um ressuscitamento adolescente, quando cruzei com o banco dele, um desaforo antigo que eu nem sabia que ainda sabia me fez olhar bem fundo nos seus olhos por um tempo curto que parecia um não-tempo, aquele minuto de 180 segundos, como quem escolhe agulha no palheiro, como quem elege a fruta mais doce, como quem aponta o dedo sem apontar, só com a força do querer.
Ele sustentou o olhar, mais pela curiosidade ou por educação, não sei bem, que por interesse de macho. Quase no ultimo segundo, ao perceber que eu não baixava o olho, hipnotizada, ele inclinou levemente a cabeça ao modo que se cumprimenta alguém quando a memória trai e não se recorda nome nem pessoa.
Fui para o meu lugar, no ônibus, dois bancos atrás do dele, à esquerda, na diagonal, de onde eu podia enxergá-lo de costas, já totalmente off, autista high-tech enfiado em um par de fones de ouvido, certamente a navegar por outros mundos.
Um gordo gentil, ao meu lado, que ocupava banco e meio com sua largura desabusada, nem piava, tímido, desacertado com seu tamanho, o que, aliás, tanto se me fazia, pois meu coração tinha desembestado a bater na veia do pescoço, esquisito, farejando novas taquicardias.
E viagem que te viagem. E o dono da voz mudo e com fones. E eu lá, desinquieta, atabalhoada, nem dormir conseguia.
Chegando a Porto Alegre, esperei todo mundo descer do ônibus, para me aproximar do homem que me imã. Ele também parecia não ter a menor pressa de apear. Quando ficamos ilhados no corredor, dei dois passos em direção à porta, parei em frente dele e, num arroubo de independência afetiva, minha mão se foi, sozinha, sem me avisar, até o seu rosto e acariciou sua barba, numa doce carícia improvisada.
-" Te conheço de algum lugar", falei, sorrindo, enleada, meu olho carregado de promessas e entregações do meu avesso enfeitiçado. Ele sorriu de volta, suavemente surpreso.
Meio encabulada com meu gesto intempestivo, desci.Fora do ônibus, entrevero de malas, gente se atropelando em frente ao bagageiro e eu, de longe, cuidava os passos do homem do chá verde.
O homem da voz e do chá já se havia dirigido ao ponto de taxi. As idéias se atropelavam em minha cabeça. Parada na calçada, eu o enxergava colocando a valise no banco de trás de um carro laranja. Só me vinha um pensamento: - " Nunca mais vou ver esse cara na minha vida!" Eu o filmava fechando a porta traseira do taxi e abrindo a da frente, pra entrar. Nunca mais! - eu me agoniava. Quando ele ia se sentar no banco do passageiro, deu por mim ali, na calçada, talvez o anzol dos meus olhos puxando os seus. Ao perceber que ele tinha, enfim, me visto, minha voz saiu de um golpe só, gritada, ambulância, emergência, tudo ou nada: - "Eu quero o teu telefone!"
Silêncio.
O mundo parou. Como se voltasse a cena de um filme, ele saiu do taxi e veio caminhando em slow-motion até onde eu estava e segurou minha mão, com extrema doçura e voz quase cochichada: - " é 9951..."
Nervosa, interrompi, remexendo na bolsa atrás de caneta e papel:-" Não vou lembrar! Eu sei que não vou lembrar!" Quanto mais ele me via ansiosa, mais baixo falava, naquele tom de amansa-louco, como quem trata com uma criança, acalmando-a: - " É fácil...Tu não vais esquecer. 99...todo celular é 99... 51....o código de Porto Alegre. Zero, zero e... "
Consegui anotar. Ele sorriu e, já no caminho de volta ao taxi, convidou:" - Me liga! Meu nome é Carlos." Era a noite de 16 para 17 de outubro de 2005. E começava ali uma inexplicável e duradoura história de amor. (Graça Craidy)
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Um blog à beira de um prozac. Reflexões sobre pós-modernidade, criadores publicitários, artigos acadêmicos, vida real, memórias, xingamentos, declarações de amor e desaforos em geral.
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Adriana Gragnani escreveu:
ResponderExcluirLeio e releio, é lindo!
Diki Schertel escreveu:
ResponderExcluirGraça querida,
puta quiospariu, tu tá escrevendo maravilhas.
Bjs.
Diki
Carlos Souza escreveu:
ResponderExcluirH, lindo demais, confesso que llorei. bj.
Que coisa mais linda Gracinha!
ResponderExcluirSuzy Craidy escreveu:
ResponderExcluirMuito lindo.
O homem do chá é mesmo um lorde.
Beijos da cunha Suzy
Lucila escreveu:
ResponderExcluirOi Graça um prazer em te conhecer. Me chamo Lucila, sou filha do Alberto Djinishian e trabalho atualmente com o Ivan, quem me indicou seu blog.
Gostei muito do Chá Verde!!! Parabéns !!!
Abs
Lucila Djinishian
Assistente de Atendimento
Focco SP
Marta Angélica L. Schertel escreveu:
ResponderExcluirGraça querida,
Tive que te escrever! Uau!! que texto maravilhoso Cha verde faz bem ao coracao!!
Sabe, cheguei a conclusão que teus textos atingem direto nossa alma. É verdade, porque ele entranha na gente sem saberes ou conheceres, simplesmente se aquerencia. Como tu disseste em um texto: "...riu pra dentro...", a gente lê pra dentro.
MARAVILHOSO!!! Quero um livro!!!
Coloca meu endereço em teu mailing pra eu não depender do mister Diki, ok?
Beijos querida
Marta Angélica L. Schertel
Liz Mercadante escreveu:
ResponderExcluirahhhhhhhh, eu tava esperando a história do chá verde faz tempoooooooooooooooo!!! Oba!
Oi, Graça.
ResponderExcluirSou amiga da sua maninha Teresa, de Ribeirão Preto, e cheguei aqui pelo comentário que você deixou no blog dela.
Eu já gostei do texto desde o título. Minha mãe uma vez passou quase um ano tomando chá verde. Eu perguntava o porquê. Ela: "É pra emagrecer". Agora sei que ele faz bem também ao coração. Risos.
Você usa algo que eu adoro, que são neologismos. Eles dão vida nova ao texto.
A gente nunca sabe qual colher de chá dará início a uma história de amor.
Beijos.
Graça tenho curtido teus textos São magistrais. Bjs Vera
ResponderExcluirLizete Mercadante Machado escreveu:
ResponderExcluiradooooooooooorooooooooo o chá verde!!! Inesquecível momento de ter ouvido o relato ao vivo, mais inesquecível pelo próprio chá ouvindo atento, ihihihi. Parabéns, querida escrivinhadora contadora de histórias.
Alice Winckler escreveu:
ResponderExcluirAlém do onibus Ouro e Prata.....ser da cidade vizinha....
Alice Winckler escreveu:
ResponderExcluirGraço, tu continua escrevendo maravilhosamente bom.Quando passar pelo Italians com certeza vou lembrar. Bjs
Jaime Leme escreveu:
ResponderExcluirGraça! Casar comigo nem pensar? Adorei o texto,,,libere para outras midias...bjs
Muito, muito.
ResponderExcluirPaulo SS Vilela
Madá Oliveira escreveu:
ResponderExcluirAdorei, Graça ! Assim como a Sara , vi as imagens e até senti seu coração batendo mais rápido, parecendo que sairia pela boca com o pedido do telefone. Já compartilhei. Parabéns !
Sara Seadi escreveu:
ResponderExcluirAssisti não li! As imagens passaram nítidamente pela minha cabeça!
Delicioso conto, Graça...
ResponderExcluirObrigado!
Beijos,
G
A D O R E I, Cumadi!!!Que sorte esse Carlos teve!!rs
ResponderExcluirIvan Caires escreveu:
ResponderExcluirParabéns, Graça Craidy! Você merece tudo que a vida tem de bom!!!
Míriam Baibich escreveu:
ResponderExcluirAdoreiiiiiii! bj bj
Nikão Duarte escreveu:
ResponderExcluirQue espetáculo (de história e de texto)! Tim-tim à dupla!
Helena Stainer escreveu:
ResponderExcluirLinda estória Gracita !!! Parabéns !!! Mereces essa felicidade !!!
Claiton Martins-Ferreira escreveu:
ResponderExcluirMas tu hein? Ousada e destemida! Adorei! Quero conhecer o cara do chá verde! :D
Marly Revuelta escreveu:
ResponderExcluironze anos??? uau!! Bravo Gracinha e que continuem juntos muitos anos, com muito amor.
Deyse Dias Leite escreveu:
ResponderExcluirlindo texto, guria!
Sara Seadi escreveu:
ResponderExcluirjá tinha lido, mas sempre me encanta as tuas histórias queridona- <3
Heloisa Salgado escreveu:
ResponderExcluirCoitadinho do Carlinhos, foi enredado na teia com um carinho no rosto! Só podia acontecer contigo um causo assim, Gracim! E ainda por cima em Soledade que o tal causo começou!
Rosele Antunes escreveu:
ResponderExcluirEscrito com o coração!! Adorei. Bjs
Magali Radziuk escreveu:
ResponderExcluirAdoro tuas histórias. Parabéns pelos 11 anos!
Letícia Carvalho de Souza escreveu:
ResponderExcluirAmeiii, que continuem por muitos e muitos anos!!!
Noili Demaman escreveu:
ResponderExcluirAdorei, Graça Craidy. Além de artista plástica, és excelente contista ou cronista ou...
Ana Lucia Allebrandt escreveu:
ResponderExcluirAdorei saber como conheçeu teu amor. E teu Carlos é lindo!!! Bjs
Bernadete Kopf Oppermann escreveu:
ResponderExcluirSempre q vejo vcs , relembro esta tua crônica e sua feliz continuidade... Parabéns aos dois.
Luiza Fontes escreveu:
ResponderExcluirQue delicia! Ele teve muita sorte! Bjs
Bibiana Craidy Bührer escreveu:
ResponderExcluirQueridos! História linda!
Maria Helena Lupi escreveu:
ResponderExcluirGraça que texto lindo . Qdo a gente lê parece que estamos na cena. Bjos amiga.
Ciloé Maria Burmann escreveu:
ResponderExcluirQue espetáculo de chá verde!! Adorei!!
Miriam Tolpolar escreveu:
ResponderExcluirAdorei 😊
Náira Michel escreveu:
ResponderExcluirAdorei tua crônica! Graça: você é mesmo uma graça! As palavras que vertes de forma tão encantadoramente divertidas... O teu Carlos tem ideia do quanto é sortudo?! Queria eu ter tido essa ousadia... fico imaginando teu consorte lendo o que escreveste... genial heim?!
Cau Saccol escreveu:
ResponderExcluirque linda história <3
ResponderExcluirMilene Craidy Koeche escreveu:
Graça me deliciei agora lendo a história do encontro de vocês no teu blog. Sou tua fã e vibro por saber que essa linda história de amor perdura. Que seja infinito enquanto dure! E que dure muito! Bjs e Parabéns ao casal
Carolina Tarantino Neuenfeldt escreveu:
ResponderExcluirGraça!!! Amei a tua história de amor, a história de vcs!!! E achei o máximo a tua determinação!!! <3 <3
Suzane Wonghon escreveu:
ResponderExcluirTu, hein! Então aquele cara bacana que nos fotografou na expo dos chapéus toma chá-verde? Que legal! Abração
Elisangela Lisboa escreveu:
ResponderExcluirArrasou - a descrição do ambiente rodoviário é fenomenal!!! Parabéns ao casal e vivas ao chá verde 😂😉
Kika Herrmann escreveu:
ResponderExcluirA fluidez do teu texto é uma delícia! Muitos brindes de chás verdes ao casal!
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