Um blog à beira de um prozac. Reflexões sobre pós-modernidade, criadores publicitários, artigos acadêmicos, vida real, memórias, xingamentos, declarações de amor e desaforos em geral.
Doa-se criança. Sobra de inseminação.
Fiquei horrorizada com o recente episódio Escolha de Sofia tupiniquim. Deu no jornal que em uma maternidade de Curitiba um casal paranaense - segundo consta, de classe média alta -, decidiu rejeitar já na hora do parto uma de suas filhas trigêmeas recém-nascidas de gravidez por inseminação artificial, tentando abandoná-la no hospital para adoção. A escolhida para o sacrifício havia sido a menina mais fraquinha, com problemas no pulmão. Conforme depoimento dos funcionários do hospital, o pai teria justificado a decisão: não a levaria porque "só queria quem estivesse saudável" e, no seu entender, aquela criança ia dar muito trabalho.
Como assim, não a levaria? Quer dizer então que, como ele ejaculou num potinho de plástico, inspirado em enodoadas revistas de sacanagem, e como foi daquele recipiente sobejado de líquido leitoso que tiraram o espermatozóide para fertilizar o óvulo da sua mulher, é que as crianças nascidas dali passaram a valer como um saco de farinha, de batata, de feijão? Viraram mercadoria? E, como tal, tiveram automaticamente seu valor de mercado determinado pela lei da oferta e da procura, que reza: quanto mais houver a oferta de uma dada mercadoria, menor será o seu valor de compra e venda, menor será a demanda por sua aquisição. A família Adams curitibana queria no máximo dois filhos, a clínica de inseminação exagerou na dose e vieram três, qual o raciocínio do pensamento tecnológico funcionalista? Descarta o descarte. O que sobrar, lixo.
Como assim, dar muito trabalho? O que é que passa pela cabeça de um ogro desses, casado com uma ogra dessas, que pensa que pode mandar na vida e na morte, porque um dia mandou bem na manipulação utilitária do seu pênis técnico? Pensa que pode baixar o polegar como no coliseu romano só porque gastou uma fortuna na clínica de inseminação? Pensa que porque colocou dinheiro na intermediação, o produto é seu?
Eles que decerto partiram para a inseminação não movidos pela idéia de dividir o seu amor, o seu cuidado, a sua proteção. Mas, porque em seu egoísmo doentio, em sua vaidade vulgar acharam edificante contar com um mini-self, um espelhinho de si, continuação da sua existência medíocre, brinquedinho igual ao dos vizinhos, dos primos, dos irmãos. Todo mundo tem, eu também quero!
Tudo isso me horroriza e ao mesmo tempo não me admira, pois outro dia mesmo, aqui no blog, esbravejei contra uma clínica de inseminação que anunciava bebês no jornal como se fossem produtos, a tal de Insemine, de Porto Alegre. Elas, as clínicas de inseminação, aliás, são as primeiras dessa cadeia produtiva podre a tratar crianças como mercadorias. Deveriam ser punidas como cúmplices. Elas que, pra aumentar a produtividade, pra fazer valer o custo-benefício dos investimentos dos seus clientes, derramam embriões útero adentro como se fossem confeitos. Daí a explosão de gêmeos, trigêmeos, quádruplos, quíntuplos. Um crescei e multiplicai-vos desenfreado, carriado principalmente pelo crescei e multiplicai vossos dinheiros no banco.
As pessoas realmente estão ficando loucas, fetichizadas, tomadas pelo espírito da onipotência tecnológica, hipnotizadas com o falso poder do dinheiro e do consumo.
Bem que no capítulo 9 do livro Tela Total ( 2002), o filósofo francês Jean Baudrillard nos adverte que a violência biológica artificial acabaria gerando crianças inimigos dos adultos e adultos inimigos das crianças. Baudrillard profetizou um bizarro cenário familiar formado não mais por filhos e pais, mas por estranhos que não se sentem solidários tampouco descendentes.
Para o filósofo francês, a consequência dessa dessacralização do que ele chama de gênese familial sexuada, é a criança se transformar em um ser meramente " operacional, performance técnica e projeção identitária - mais prótese em miniatura do que verdadeiro Outro", ele ressalta, pessimista.
Parece, mesmo, que o monstro do espermatozóide e a monstra do óvulo não se sentiram nem solidários nem antecedentes das bebês que colocaram no mundo. Muito mais, se arvoraram a donos, proprietários, senhores, deuses com poder de vida e de morte sobre as infelizes que brotaram de seus desejos mesquinhos.
A notícia conta que a direção do hospital onde nasceram as meninas denunciou os pais-padrastos ao Conselho Tutelar, o qual os proibiu de levar quaisquer das meninas, tomando-as sob a sua proteção. Consta ainda que uma suposta advogada do casal já teria ido ao juizado para representar os seus clientes que agora - mais de dois meses depois - alegavam arrependimento e desejo de levar pra casa todas as três garotinhas, sem restrições.
Se eu sou juiz, não permitia. Nem a pau. Gentalha como esses dois não devia nem ter nascido. Quanto mais dado à luz. ( Graça Craidy)
SE VOCÊ GOSTOU DESTE POST, TALVEZ SE INTERESSE POR ESTE.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
DESTAQUE
Washington Olivetto, redator: o golden boy " Publicidade é a coisa mais divertida que se pode fazer vestido." Wash...
MAIS LIDAS
-
- 'Bora, Bob? - convidava Neil, neto do turco Haddad, dito Ferreira. Era pra já. Rabo abanando, o incondicional Bob - de r...
-
Até os anos 60, ser da Criação em qualquer agência de propaganda no Brasil significava ser menosprezado pelo Atendimento, ignorado...
-
Devastador. Todo mundo sai do filme Para sempre Alice com uma terrível certeza: sim, eu vou ter Alzheimer! ...
-
No meio do caminho tem um celular . Sartre que me perdoe o uso fútil de sua famosa frase, mas nada é mais representativo do inferno e...
-
Os criadores publicitários, o capitalismo e o imaginário da ditadura militar Ressaca. Naquele janeiro de 1969, ainda vigorava fresca no...
-
E ntão, você acha, mesmo, que a Gisele Bündchen lava o cabelo com o shampoo Pantene e assina a TV a cabo Sky? Ou que a Ana Maria Br...
-
Eu trabalhava na criação da J. Walter Thompson, em São Paulo, e o pessoal descolado da agência que vivia metido em boemias e aventuras gas...
-
Dissertação de Mestrado 2007 PUCRS Em 1968, o redator publicitário Roberto Duailibi e os diretores de arte Francesc Petit e J...
-
O impagável Tom Wolfe, eterno mestre do New Journalism, em seu livro A PALAVRA PINTADA (Rocco, 1975), descreve com ironia e fatos e nomes a...
-
Breu. Estamos todos destinados à eterna incompreensão. Aceite. Ou continue aí se torturando ondefoiqueuerrei. Cada um de nós é uma caixa pr...
Adriana Gragnani escreveu: "
ResponderExcluirParece que a técnica descortinou mistérios da vida e esta deixou de ser importante. Contradição esquisita, parte-se para a inseminação - e não para a adoção - para se ter (leia-se possuir) crianças biológicas.
Roberto Tadeu escreveu:
ResponderExcluirA natureza agredida duas vezes... Ela não perdoa agressões, arderão nas profundezas das próprias consciências. Este fardo vai pesar muito.
Pô, Graça! Os ogros e monstros vão se chatear de os teres comparado com esses dois... esses dois... o que seriam mesmo?
ResponderExcluirReges Schwaab escreveu:
ResponderExcluirOlá, Graça
Fiquei abismado com a história. Bem colocado no teu post. Um grande abraço
Reges