Na Vila Isabel de agora, a pressa maldita de ganhar o pão. |
Na folclórica Vila Isabel de agora, porém, o nervosismo urbano já havia contagiado cada pedaço da via pública com a pressa maldita de ganhar o pão, os velhos bondes transformados em troncudos ônibus acachapados de novos cariocas com menos pendor para a boemia.
A única lembrança efetiva do feiticeiro da Vila que acenava um olhar para trás tinha virado estátua, metáfora moderna da mulher de Lot: em uma mesa de boteco de metal, a figura de bronze do velho Noel ainda tomava um gole, sentada solitária, decerto a remoer ciúmes de algum gerente impertinente, ou quem sabe a sonhar outro último desejo, talvez elocubrando respostas desaforadas a mais um palpite infeliz do seu desafeto musical. Soube até que volta e meia um bêbado de carne e osso sentava na cadeira vazia e levantava brindes rememorando sambas sem garçons-faça-o-favor para lhe trazer nada, nem depressa tampouco média nenhuma.
Pois, naquele retrato desbotado de poesia da Vila Isabel de agora, em meio a carradas de lanchonetes com bancos de fórmica e cadeiras de plástico, gentes sem rima e ondas de fumaças, ainda resistia, como que congelada no tempo, uma pequena loja de miudezas, tecidos e confecções para toda a família, o quixotesco armarinho Ao Galardão d’Ouro.
A vitrine era larga, ampla. Em L, saía da calçada e formava um corredor, ante-sala da porta de entrada. Apaixonada que sou por armarinhos e velharias, mal olhei ao que se expunha no interior daqueles vidros antigos e me enfiei com sofreguidão loja adentro, pensando encontrar ali tesouros, lembranças, quem sabe minha infância escondida a brincar de dedal e retrós de todas as cores, naqueles pequenos móveis cheios de magras gavetinhas?
Como manequins pálidos, as balconistas jaziam inertes. |
Como manequins pálidos, uma ou duas balconistas com a idade da casa jaziam inertes encostadas aos balcões, os olhos sem o brilho da venda, desistidos de seduzir para novos feitios, laços, cortes, enfestados e drapées, nos lábios finos, sorrisos sem cor, nem um gentil “às suas ordens”.
Lavei o olho mil vezes nas cartelas fascinantes dos botões de todas as cores, formatos e tamanhos. Viajei nos delicados buracos das tiras de bordado inglês, lambi mentalmente as nuances douradas das gregas e passamanarias, o carrossel das linhas de bordar, amaciei o coração nas entretelas, me enlanguesci no failete dos forros, nos novelos de lãs, sempre me encanta imaginar quanto amor cabe no tricotado de cada ponto, penélopes multiplicadas, motocontínuas de afeto.
Supri minha alma nostálgica da pequena loja, mas não encontrei nada que levar comigo, evitando constrangida o olhar ansioso e opaco da velhinha no Caixa, provavelmente a dona.
Minto. Na saída, lancei um último olhar perscrutando a vitrine e suas relíquias e nunca vou esquecer do poema que vi ali construído e ainda carrego dentro. No canto mais nobre do envidraçado, atrás de uma quinquilharia empoeirada, sem boniteza nem valor, escrito à mão com a letra trêmula e antiga de alguém que certamente aprendeu a escrever em cadernos de caligrafia, lia-se o ingênuo reclame: no-vi-da-de!
(Graça Craidy)
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Muza Clara escreveu:
ResponderExcluirÉ, Gracinha,
estava , mesmo, faltando um lugar das tuas letras.
Beijos, todos,
Muza.
Lilia Chaves escreveu:
ResponderExcluirGostei muito!
Suely Basso escreveu:
ResponderExcluirLindo, simplesmente!
Fernando Trachtenberg escreveu:
ResponderExcluirSaudades do Rio antigo que eu não conheci.
Mas que delicada nostalgia. Amei. Lembrei da loja Ghressler em Ijuí, (se é assim que se escreve.)
ResponderExcluirSim, Clô querida, as lojas da nossa infância ofereciam esse mundo mágico. E tinha também a Casa Olga, a Casa Sabo, a Casa Queruz Craidy, A Boa Compra, a Casa Hoenisch...Lindas lembranças.
ExcluirAntonio Carlos Santiago escreveu:
ResponderExcluirBoa de caneta e pincel.
Rick Jardim escreveu:
ResponderExcluirlindo texto!