Sinto muito. Volte na outra encarnação.

Um dia, eu me dei conta:
- " Eu sou um número infinitamente ímpar,
na órbita dos pares, dos dias e dos bares..."

Ficou aquele pasmo rabiscado ali, num guardanapo de bar, a tinta da caneta borrando melancólica o branco do papel, choro azul.

Na verdade, essa constatação agora traduzida em palavras, já de há muito tinha me ocorrido, eu criança ainda, uns cinco anos, a querer alcançar o propósito da minha personagem naquele microuniverso chamado família, mimetismo da vida grande lá fora: pai, mãe, avó, irmãos, irmã.

Cedo compreendi os espaços de cada um. Meu pai, o poder e a provisão. Minha mãe, o fiar e o afeto. Minha vó, reza e silêncio. Meu irmão mais velho, a continuação do sonho do patriarca. Minha irmã menor, boniteza e fragilidade. Meu caçula, mimo e rebeldia. E a mim, segunda de quatro filhos, o que sobrou? Inteligência e riso. Tudo temperado por uma velada competição, exercício prévio da dura guerra que se travaria lá fora, mais tarde.


Eu bem que queria ser linda. Ou, quem sabe - como boa Electra - continuação do sonho de Laio? Mimada e medrosa certamente garantiria bom retorno. Mas, no julgamento do ao redor, me pareceu mais prudente e produtivo ser solitária precoce e conquistar minha independência à custa de ler, rir, surpreender e observar.

Caminho difícil, o da solidão escolhida. Você sabe que precisa se fortalecer de valentias inimagináveis pra superar medos de lobisomens e desamores. Logo, logo você percebe que escolher um papel é quase um grilhão consentido.

Em família, cada um é cobaia de suas próprias decisões e feitor das escolhas alheias.

- Você quis ser inteligente e corajosa? Ah, não combina com beleza e temores. Sinto muito, volte na outra encarnação...

Não tinha, mesmo, como andar para trás e desarrepender da trilha eleita. Era quase como um caminho só de ida. De modo que vesti a fantasia e segui, juntando pedras pela estrada, imaginando um dia, como João e Maria, poder voltar, Maria que sempre fui.


Por mais que risse, brincasse, social e cheia de dentes, meu caminho foi todo tempo solitário. A todos olhava como se estivessem do outro lado da rede, em um jogo onde os pongs de lá encontravam sempre resolutos e defensivos pings daqui.

A solidão é uma escola doce e cruel. Ao mesmo tempo que fortalece você e desperta uma certa inveja nos gregários, eternos dependentes uns dos outros, faz também você correr o risco de enrijar demais, como um carvalho antigo, candidato a cair de um só golpe e com forte estrondo, no dia em que o destino irônico o apanha distraído, sem sua velha fantasia de super-homem.

Durante muito tempo, menti. Pros outros e pra mim mesma. Eu era a guerreira solitária que a tudo enfrentava e nada temia.

Percebia no olhar do meu pai uma desconfiança soslaiada com meu comportamento autônomo um tanto masculino, para a época. Constatava nos olhos da minha mãe a admiração incontida que só uma fêmea submissa dos anos 30 entenderia o por quê.


Manipulava minha irmã bonita com a força da minha coragem forjada e a bagagem colorida dos meus livros, em vinganças diuturnas pela inveja de não poder ser também encantadora como ela.

Grudava em meu irmão mais velho pensando poder ganhar por osmose o salvo-conduto para o mundo que só os machos faziam jus, eles, os nascidos X com X.

Ai de mim, que escolhi ser gauche na vida! Uma gaúcha gauche pode soar eufônico e drummondiano, mas tem seu preço.

Você garante o seu direito universal de ir e vir, porém sente uma falta inexplicável de cumprir o trajeto de mãos dadas.

Você adora dizer ninguém-me-manda, no entanto anseia por súplicas de cafunés e cúmplices de quefazeres.

Você compra uma cama enorme, alcatifa de travesseiros, depois dorme num cantinho, encolhida pelo frio de tão improdutivo latifúndio.

Como todo pobre ser humano, carregava no meu alforje a dor e a delícia de conviver com a incoerência dos meus desejos, setas invertidas que me atraiçoavam, desmentindo volta e meia meu arrebatado discurso libertário.


Aprendi a viver sozinha, a ir a cinema, teatro, feira e restaurante comigo mesma, a pessoa que mais me ama. Como ironizo: minha melhor companhia.

Desenvolvi uma técnica de sustentar o olhar dos outros, em público, com altivez e lisura, feito quem diz se-você-pensa-que-está-me-olhando-preste-atenção-porque-eu-é-que-estou-olhando-pra-você. Técnica perfeita: o interlocutor abelhudo sempre recua, intimidado.

Aprendi, também, a me levar passear e a atender aos meus quereres. Me pergunto: o que é que tu queres, menina Graça? E ela responde. E eu a mimo com tudo o que tiver vontade. E ela ri, ri, ri. Depois de mulher feita, aliás, me transformei em uma grande garota mimada. Me sagrei princesa, eu mesma minha própria primogênita e caçula.

Descobri que o bom da maturidade é saber que na vida sempre tem Plano B, Plano C, D, tantos quantos a criatividade construir e o coração ousar. Daí, o nunca desespero.
Viver é consequência do que se escolhe e, infinitas vezes, do que não se escolhe.

Viajei mundos sozinha. Taj-Mahal, só. Grécia, só. Esfinge, só. É muita beleza junta pra tanta sozinhez, diria o velho Rosa.

Mas, não me queixo. Ainda que hoje tenha entendido - embasbacada - que é possível ser inteligente e bonita, sei que no mais das vezes, não se pode ter tudo.


Por isso, sou geralmente feliz. Minhas janelas estão sempre abertas e deixam entrever a dança brejeira do voil das cortinas se entregando ao vento, como uma bandeira branca à vida e convite gentil aos possíveis companheiros de viagem que queiram me acompanhar em minha muito mais doce que amarga solidão.

" Sozinho? Mas eu não moro sozinho", respondeu à repórter enxerida o sábio poeta Quintana. E arrematou: "... Eu moro comigo!" ( Graça Craidy, 2003)

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5 comentários:

  1. Yara Carvalho escreveu:

    Vou já já compartilhar ;- 0)

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  2. Doris Hegedus Grossman escreveu:

    seremos muitas gauches elas tem um encanto muito especial com ou sem prozac

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  3. Doris Hegedus Grossman escreveu:

    teu blogue quanta verdade . quanta vida solidao sempre e' nossa maior companheira. quanta coragem e, tambem softimento, mas sofrimento ajuda a crecer. Goetei de te conhecer depois de tantos anos em que a gente se nao conhecia

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  4. Hermes Aquino escreveu:

    Que texto inspirado que tu escreveste em 2003, guria. Teu blog está ficando simplesmente avassalador. Bj. H.

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