O jenesequá de Dárcy Toledô.

Em frente à esteira de bagagens do aeroporto de Congonhas, aborrecida diante daquelas malas todas girando em câmera lenta, me passou pela cabeça a chispa de uma idéia pândega:- e se eu pegasse uma mala qualquer e saísse daqui e aproveitasse pra mudar de vida, de identidade, de gostos, de tudo?

Não sei se por entediada, não sei se por insatisfeita com minha vidinha sem emoções, foi pensar e fazer. De esguelha, escolhi uma maleta preta entre o desparrame de malas pretas que habitam esteiras de aeroportos, nem olhei a etiqueta e me dirigi com meu novo RG rumo à saída, cara armada de proprietária da bagagem, tomara que não me pedissem o canhoto.

Aproveitando o empurra-empurra do povo querendo se alforriar daquele último brete pós-viagem, fiz que não vi a pobre mocinha catadora de etiquetas, meu olhar entre o vago e o zureta-atormentado das gentes que transitam em aeroportos.
Coração na goela, abismada com o meu atrevimento, cruzei sem problema as portas automáticas do saguão, vontade insana de gargalhar bem alto, decerto já o espírito folgazão da nova personagem querendo se ajeitar pra caber dentro de mim, sua nova dona.

Nova ou novo? Eu nem sabia se a mala era de homem ou mulher. Meu Deus, e se eu tiver que virar homem? Sapatão? Diadorim?

Pé apoiado na mala, fumei um cigarro bem fumado, pra postergar o próximo passo. Táxi ou buzum? Seria minha nova personagem pessoa de fino trato e posses razoáveis ou meu destino agora viria com o rumo indicado no vidro dianteiro de um Mercedão?

Espiei com o canto do olho a etiqueta da mala: Darcy Toledo, dizia, em letra de forma, escrito num papel acartonado, com caneta azul. Caceta! Darcy tanto pode ser homem como mulher. Tinha um Darcy homem lá em Ijuí, lembro bem. E tinha, também, a mulher do Getúlio Vargas, Dona Darcy. Mulher, claro!

Baixei os olhos pra catar o endereço. Nem rua, nem bairro, nada. Só a cidade: Santa Rita do Passa Quatro. Deus do céu, agora sim, só vai passar três, porque não sei nem pra que lado fica isso…

Resolvi pegar uma lotação, a primeira que aparecesse no ponto de ônibus. E descer no fim da linha. Praça 14 Bis era o meu destino, informou o motorista cheirando a desodorante Avanço. (Antes Avanço que nenhum, pensei, fungando discretamente pra devolver ao ar viciado da perua o desagradável perfume barato de macho popular ostentado pelo jovem negro que dirigia a Besta como um idem.)

Dentro da lotação, só ele, eu, minha mala incógnita e um sujeito meio alcoolizado que resmungava entredentes algo do tipo “ é só alegria! é só alegria!”, o que me fez sorrir. Gosto de bêbados alegres. Ficam meio anjos, os bêbados alegres, como se se ameninassem de novo, permitidos de bobajar pelas ruas, sem medo dos perigos de gente grande.

Na curva da 9 de julho lá embaixo, fim da linha, desce o só-alegria e eu, dupla insólita na noite paulistana que recém havia tingido o céu.
Entonces que eu, Darcy, de sexo ainda ignorado, vivo no Bixiga? - me perguntei, entre divertida e intrigada. Aquelas bandas por ali eu já conhecia, de quando mudei pra Sampa. Tinha morado um ano na Major Diogo, boca brabíssima, mas que nunca me tirou pedaço, provavelmente porque sempre circulo pelos lugares de guarda baixa, mais pro curiosa que pro encagaçada.

Até que eu estava gostando de ser Darcy…Dar-cy, meu nome é Darcy! Será que eu deveria falar Darrrrrcy, com aquele erre enrolado de caipira paulista, ou Darrrcy, com o erre de mineiro, aquele com um leve corcoveio na língua, que se finge de carioca, mas na última hora retoma a compostura? Ou, quem sabe eu devesse assumir um quê meio estrangeirado, eu que falo línguas, poderia muito bem pronunciar paroxítona: Dár-cy, com ênfase no a, Dárcy Toledô. Belo nome, não? Com esse nome, eu poderia ser até uma crooner: - e com vocês, o charme, o aplomb, o jenesequá de Dárcy Toledô!
Taí: se eu abrir a mala e dentro só tiver vestido meio aputanado de mulher-dama, vou virar cantora de cabaré e fazer aquela japonesada punheteira babar no meu decote. Yen-yen-yen, míster!

Enquanto o bêbado feliz sumia num boteco de esquina da rua Rocha, eu subi a ladeira, decidida a me hospedar de novo no mesmo apart-hotel da Major Diogo que um dia me abrigou, nos idos de 84. Uns olhares compridos daqui, outros distraídos dali, outros apressados dacolá, acabei chegando ao São Paulo Suite Service, toda lampeira com minha maleta preta de Dárcy. A decadência do lugar era típica de filme B, quiçá C. Faltava um botão no uniforme do concierge, meu olho grudou no espaço solitário de sua túnica azul-marinho, construindo a ironia da metáfora: eu e o botão da sua roupa, dois sem-casa.

-Apartamento 604, Dona Darcy! – falou o sem-botão. E lá me fui arrastando as rodinhas da maleta, dispensando o carregador e seu olho pedincheiro de gorjeta. Nada de excessos, pensei. Sei lá o que essa Dárcy vai me aprontar de despesas…

No 6º andar, o corredor era um sumidouro de almas penadas. O carpete fedia a mofo misturado com perfumes variados. À medida em que ia arrastando minha maleta e passando pelas portas, eu podia catalogar os hóspedes pelo cheiro: Pinho, Mister N, Axe, Rexona, Pinho, de novo, Dove, Palmolive, Alfazema. Até chegar ao meu 604. Eca! Fedor de cândida, que - todo mundo sabe - é igual a olor de porra! Espero que seja só cândida, mesmo.
Janelas escancaradas. Arreda, desuruca, sai que este quarto não te pertence! - exortei, antes de me jogar na cama meio guenza, com sua suspeita colcha de chenile rosa desbotado. Quantos antes de mim teriam ali enroscado seus pés por frio ou solidão? Graça tinha virado Dárcy, mas as mil e uma perguntas da antiga cabeça continuavam iguais. Aposto que a Dárcy ia se lixar pra pés solitários em colchas de cheniles, ara!

Era chegada a hora do acareamento do crime da maleta. Isqueiro aceso, derreti o lacre de plástico laranja colocado pela companhia aérea nas alças do zíper da mala. Com as duas mãos, corri uma alça para cada lado e, finalmente, levantei a tampa dos tesouros misteriosos de Madame ou Messiê Dárcy Toledô de Santa Rita do Passa Quatro.

Passados três segundos de puro pasmo, o tempo do neurônio realizar sua sinapse e sair de cena, comecei a rir primeiro baixinho, depois em gargalhadas que me faziam dobrar a barriga e perder o ar, feito cachoeiras histéricas encadeadas umas nas outras. E me joguei de costas na cama, braços e pernas abertos, desacreditando do que tinha inventado pra mim.
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(FINAL 1)
Dona Dárcy, a Toledô, devia ser um sigiloso vendedor ambulante de sex-shop. Dentro da sua delicada maleta preta, dezenas de consolos de borracha, de todas as cores, formatos e tamanhos, jaziam inocentes e virginianamente arrumados, separados com critério uns dos outros por mimosas flanelas cor-de-rosa, onde se lia a marca do fabricante: Lovizol. Bem assim, escrito com zê. E tudo junto. (Graça Craidy)
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(FINAL 2)
E encontrei um terço. Ao lado do terço, um consolo de viúva, ao lado deste um recado: em caso de extravio desta mala, despache-a para o primeiro rio que encontrares. (Adriana Gragnani)
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(FINAL 3)
E saí correndo de lá, sem mala e sem nada, e fui retomar a Graça e a mala deixada no aeroporto. ( Águida Kopf)
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( FINAL 4)
Vazia. Abri, fechei, abri, fechei. Vazia. Aquele riso frouxo deu lugar à certo desespero. Procurei algo escondido nas laterais... nem um alfinete. Dar vida à Darcy Toledo era agora uma questão de honra. Abri gavetas da velha cômoda, esvaziei cabides do tosco armário, roubei todas as memórias largadas no 604. Foi duro fechar aquela mala tão cheia. No caminho de volta ao aeroporto lembrei que ainda não sabia quem eu carregava. ( Muza Clara)
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10 comentários:

  1. Paulo Boa Nova escreveu:
    Gracinha:
    A filha do Dr. Getúlio chamava-se Alzira (ou Alzirinha, para a família). Ela não era tão horrível (como mulher). Era inteligente. Escreveu, inclusive, o famoso livro "Getúlio Vargas, Meu Pai". Dona Darcy era a véia, mãe da Alzirinha e esposa do Getúlio.
    Beijos do

    Paulo Boa Nova

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  2. Putz! Obrigada pela observação, Paulo. Já corrigi.

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  3. Águida Kopf escreveu:

    Eu ia sair correndo de lá, sem mala e sem nada, e ia retomar a Graça e a mala deixada no aeroporto.

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  4. E encontrei um terço. Ao lado do terço, um consolo de viúva, ao lado deste um recado: em caso de extravio desta mala, despache-a para o primeiro rio que encontrares.

    Eta vidinha divertida, a minha!

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  5. Vazia. Abri, fechei, abri, fechei.Vazia.
    Aquele riso frouxo deu lugar à certo desespero. Procurei algo escondido nas laterais... nem um alfinete. Dar vida à Darcy Toledo era agora uma questão de honra. Abri gavetas da velha cômoda,esvaziei cabides do tosco armário, roubei todas as memórias largadas no 604. Foi duro fechar aquela mala tão cheia. No caminho de volta ao aeroporto lembrei que ainda não sabia quem eu carregava.

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  6. Aiiiiiii, pena que cheguei tardeeeeeeee, tb querereria escrever, mas fica pra próxima. Meu voto vai paaaaaaaaaaaaaara Musa Clara, que encheu essa mala muito bem!!!
    Graquinha, tu tá danada de boa pra escrever, hein! Tá juntando em livro?
    Grandes beijos a todos e todas.

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  7. opis, aqui é a red, tá? Sem querer revelei minha identidade secreta, uahhhhhh uahhhhhh!

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  8. Graça,tua criatividade literária me encanta e me faz rir muito.Falando no Darcy, ontem vi sua foto no jornal da manhã,mas em relaçaõ à mala não consegui me imaginar abrindo a mala alheia e sim a minha mala sendo observada por pessoas alheias.Adorei

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