Crônica: Pequenos gestos, big almas.


A arte de vender carne

O corpo era disforme. Baixo, atarracado, gordo, queixo projetado para fora, nariz de batata, os olhos muito grandes boiando nas cavidades, barriga saliente, pernas curtas, andar acelerado e bamboleante de botijão com rodinhas, e aquela touca ridícula de perfex branco protegendo sabe-se lá que cabelo.

Ele parecia, mesmo, o protótipo do açougueiro. Não faltavam nem as manchas vermelhas enodoadas de carne no tradicional avental branco ensebado.

Mas, as mãos…As mãos e a voz, pura seda.

Quando o conheci, atrás do balcão de carnes do supermercado, ele explicava a um atento senhor muito bem-vestido - feito o mais sofisticado dos gourmets - a melhor maneira de assar uma carne na grelha, inclusive em que ordem servi-la e, como se não bastasse, com interpretações comportamentais:
- …E por último, a picanha, que, o senhor sabe, é a carne mais esperada por todos.

O açougueiro tinha uma doçura no olho e uma alegria suave na voz que só quem tira extremo prazer do que faz, tem.

Apaixonado, ele tratava do assunto carne como se falasse da coisa mais importante do mundo, como se da sua orientação dependesse a felicidade do interlocutor, como se entendesse profundamente do sagrado da comida e do quão divino se torna o homem quando trata dos prazeres da mesa com a delicadeza de um ritual de elevação.

Perguntei se tinha pernil de cordeiro.

Gentilmente e com insuspeitada brandura vocal, ele me explicou que recém havia chegado um caminhão de congelados de uma carne muito boa do Uruguai e que provavelmente havia o que eu procurava. Que eu aguardasse um instante, ele iria até o veículo.

E sumiu lá pra dentro do açougue, me deixando a imaginá-lo subindo com dificuldade os degrauzinhos do baú do caminhão, a se enfiar prestativo e diligente entre os ganchos e praleteiras enevoadas de gelo e cortes de carne, atrás do meu cordeiro.

Nada que nada do homem voltar, mas, àquelas alturas, com tamanha obsequiosidade, quem teria a coragem de arredar o pé dali?

Eu que não ia tirar a alegria da criatura de me servir, coisa que - se me afigurava - tecia seus dias com linha de nylon de durar, sua carreira de acougueiro, em vez de cortes e fatiados, um grande patchwork de dias costurados em serventias prazerosas de forno e fogão.

Perscrutando o cenário de fundo dos bastidores do açougue, onde vultos iguais a ele laboriavam em brancos e vermelhos e facas, descobri, afinal, sua presença azafamada em enrolar uma carne no filme transparente e pesá-la, seus dedos rápidos a digitar números de kg e reais.

E lá veio ele triunfante, em cada mão um pernil de rosado cordeiro,
duas alternativas escolhidas certamente com o mais apurado dos apalpares e miradas.

Não era assim, simplesmente, um pernil em cada mão. Ele segurava aqueles pequenos pernis com a palma da mão delicadamente virada para cima, como que protegendo de indesejável queda um objeto de inestimável valor, como se carregasse ali uma mercadoria sem preço, que eu soubesse da sua valia pelo tanto de zelo e esmero com que a sustentava incólume.

Perguntado sobre a melhor maneira de temperar um cordeiro, ele invocou o método da maior especialista que conhecia: - Minha esposa põe uma gotinha de limão para suavizar o cheiro forte da carne.

Ah, aquele “ minha esposa” …Que orgulho, que ternura , que refinamento!

Quando vi o preço do pernil, dei pra trás. Mas, não reclamei, não disse um a, não me atrevi a ser tão pequena diante da grandeza daquele homem.

O momento não era de geme-gemes. Agradeci, comovida, e optei por outra carne, quase com remorso por decepcionar o meu herói.

Afinal, um cavalheiro galante ali havia vencido quixotescamente um caminhão-dragão para servir a uma frágil dama o seu delicado desejo de cristal. ( Graça Craidy)

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3 comentários:

  1. Patrizia Streparava Bateman escreveu:
    Yes, minha amiga Graca fazendo seu milagrinho de palavras. Amei. So to danada que queria ser a primeira a seguir, cliquei la e nada, da error na page, misterio que ate o presente momento desconheco a explicacao.
    Minha cara, vc esta melhorando com a classe dos bons vinhos. Comecou otima, esta ficando sublime. E para ser degustada devagarinho, solitaria ou em companhia, sabendo, como o acogueiro, a perfeicao de seu craft...quase choro com a historia...me lembrou um velho acoqueiro la em Taubate, com a familia recem chegada da italia...e o homem superou todas as barreiras de lingua e costumes para entender minha mae e servi-la com o que ele considerava perfeicoes da carne. Obrigada. Um belo inicio de domingo que vc me proporcionou.

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  2. Ayrton Cordova Konze escreveu:
    Bom Dia Graça. A moça que ainda vai muito pano pra manga. a costura as vezes se dá por caminhos diferentes. Um grande beijo do eterno admirador e espectador Ayrton Cordova konze,vulgo Kaytano. Graçinha minha semana iniciou de forma gratificante,maravilha,um beijo fraterno,um beijo eterno nesta que pensa e procurar suas costuras nos muitos panos.

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  3. Adriana Gragnani escreveu:

    Graça, aprendi a apreciar um pernil de cordeiro que nunca comprei. É assim, quando a pessoa se envolve nos conhecimentos de suas artes, é carinho que brota, muito além do gostei.
    Abraço
    Adriana, a BrouBrou.

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