Criador publicitário ou Zelig?

Esquizofrênica ironia. Os criadores publicitários, olhados geralmente como ególatras sem limites que não enxergam um palmo além dos seus umbigos, semideuses insuportáveis, gênios forjados no Éden, se você reparar bem, se analisar com cuidado, se deixar o preconceito de fora, vai se dar conta: são os que mais sabem se colocar no lugar do Outro, abandonar-se no exercício de irreprensível alteridade, sentindo as dores do Outro, gemendo com seus prazeres, tremendo com seus medos, rasgando a bandeira dos seus desejos de ousadia e ruptura, compreendendo a humanidade densa dos seus segredos.

Não importa que Outro é esse. O Outro é aquele que no briefing vem travestido de Mr. Target, de público-alvo ou de consumidor. E, quanto mais o Outro é diferente do criador, tanto mais o criador vira Zelig de Woody Allen, se transmuta, se adapta, encarna a fantasia, veste trajes alheios, vira amigo desde criancinha e vai lá dançar pagode, mesmo que ele próprio curta rock; vai lá lamber os beiços num martelinho de pinga com mortadela e ovo roxo de compota, no boteco da esquina, mesmo que ele próprio prefira um Bala 12 ou uma Veuve Clicqot com caviar; vai lá ver a rainha da Flauta Mágica se esganipar na ópera mozartiana, mesmo que ele próprio se enleve é com a suavidade da bossa-nova; vai lá vestir terno e gravata e portar-se como um executivo conservador, mesmo que ele, provavelmente, deteste gravata. Qualquer gravata. Do pescoço ou da cabeça.

O bom criador publicitário - e o Brasil tem grandes criadores - pode ser o sujeito mais autocentrado do mundo, mas na hora de criar precisa ser um sem-umbigo, um assumido bellyless. Aliás, a melhor ferramenta do bom criador é entender tudo do umbigo do Outro, de como ele vive, do que ele gosta, por que ele age assim, assado, frito, cozido, que língua ele fala, de que ele ri e o que acha das segundas-feiras chuvosas, por exemplo, para penetrar nos seus valores, seu mundo, seu universo e poder juntar esses ditos valores com os valores do seu produto ou serviço, falando uma língua que o Outro entenda e onde ele se reconheça. E mais que entender e se reconhecer, se encante. E, mais que se encantar, seja movido a querer. E mais que querer, levante da cadeira e vá comprar, assinar, clicar, telefonar, aderir, etc, qualquer coisa que mostre que a comunicação funcionou. Simples, assim.

Se não, como diz o redator de memoráveis campanhas, Ercílio Tranjan, pode ser muito interessante, mas " erra na mosca".

Não existe a possibilidade de um criador ser bom se ele não se interessar pelo Outro, se sentar para criar pensando apenas em si, em como é inteligente, engraçado, criativo, bonito e bem dotado. Nem o mais assumido dos criadores egocêntricos - o golden boy Washington Olivetto - do alto da sua meia centena de Leões, abre mão de criar propaganda " roubada da vida", como ele diz, isto é, buscada sem pejo lá no mundo do Outro.

Imagine um criador homem escrevendo um texto para a campanha de um absorvente higiênico, por exemplo, que, exige com certeza um exercício não só de desprendimento - quase que de ectoplasma, eu diria -, mas de suprema imaginação e alta sensibilidade para entender o maior dos mistérios aos olhos masculinos: a menstruação. Pois, caso você não saiba, os textos de lançamento do absorvente higiênico OB, no Brasil, por exemplo, foram escritos por homens que, óbvio, jamais ficaram menstruados em suas vidas. E são de uma delicadeza, de uma compreensão, de um à vontade tão comovente que a nossa querida Outra poderia jurar: a autora é uma mulher igualzinha a ela. Quer ver?




Eu queria ter nascido homem. Era uma vez uma menininha que morria de inveja do irmão e dos meninos da vizinhança. Como eles são livres, pensava ela. O seu sonho secreto era poder jogar bola, subir em árvores, brincar de mocinho e bandido com os meninos. Mas quem disse que a mãe deixava? O tempo foi passando e a menininha cresceu. Virou mulher. Mas a inveja continuava. Só que agora, por um motivo muito mais forte: os 5 dias por mês em que ela ficava menstruada. Como ela invejava os meninos toda vez que chegavam aqueles dias e ela precisava usar os absorventes enormes que a mãe comprava. Ela sempre tinha a impressão de que os absorventes marcavam e que todas as pessoas percebiam que ela estava menstruada.(...)

( Anúncio de revista para OB, Johnson & Johnson, texto do redator João Augusto Palhares Neto e direção de arte de José Zaragoza. Anos 70. Agência DPZ)



“Bom gosto é o parecido com o meu.”, brincava o criador Murilo Felisberto, da DPZ, ensinando em outras palavras que quem quer fazer sucesso na profissão precisa entender que para o Outro, o gosto dele é sem dúvida nenhuma o melhor que existe. Tão bom, aliás, que ele - o Outro - compra entre tantos exatamente o produto - de bom gosto - que você anuncia.

Ironicamente, o primeiro Grand Prix em propaganda do Brasil em Cannes, conquistado pelos criadores Marcelo Serpa e Nizan Guanaes ( DM9, 1993) para o lançamento do Guaraná Diet Antarctica, estampa nada mais nada menos que um belo e redondo umbigo, em analogia com a tampa da guaraná diet.



Mas, isso, são outros umbigos.

(Graça Craidy)



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5 comentários:

  1. Fiquei tão lisonjeado, que até errei a consoante rsrsrsrs...

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  2. Roberto Duailibi escreveu:
    Graça,
    Texto maravilhoso!
    Vou usar trechos na abertura da Semana Internacional de Criação (e dar o crédito!)

    Abraços
    Roberto

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  3. Yara Carvalho escreveu:

    "Moça de todas as graças, não resisti e trouxe para meu facebook o excelente texto do seu blog."

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  4. Que maravilha! Graças a Deus que conheci e Graça.

    Ivan Caires

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