Carlos Fico e 64: Pou! na esquerda. Pou! na direita

Golpe? Contragolpe? Revolução? No artigo Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura, o historiador da UFRJ Carlos Fico (2004) percorre os olhares de vários autores sobre o tema e varre tudo com o seu próprio grande olhar colhendo o que considera meritório e esclarecedor.

Com essa visão panorâmica, Fico lista o que ele chama de "velhos mitos e estereótipos superados", dando relevância a pelo menos uma dúzia de aspectos que coletou na leitura dos seus pares.

Um deles se refere ao desapreço pela democracia que Fico entende haver sido bastante claro, tanto por parte da direita, a qual preferia pragmaticamente usar o autoritarismo e a força repressiva para atingir as suas metas, quanto pela esquerda, que lançou mão não só da luta armada como de crimes comuns (sequestros, assaltos) para alcançar os seus fins. Fins esses que obviamente se distanciavam à direita e à esquerda.

Enquanto a direita - via militares, mídia e burguesia empresarial - buscava a implantação de um capitalismo forte que mantivesse afastado o perigo do comunismo e ao mesmo tempo fortalecesse a moral e os bons costumes, guindando o Brasil à modernidade e à grandeza a que (acreditavam) estava fadado, a esquerda - esfacelada e fragilizada em quase 30 dissidências - lutava muito mais contra o capitalismo do que contra a ditadura.

Segundo Fico, doíam mais fortes na esquerda as dores antiburguesas e marxistas que as antidemocráticas e anti direitos humanos, pois o que essa facção visava era prioritariamente implantar um socialismo legitimado pelo campesinato unido ao proletariado.

Quer dizer, a suposta "resistência democrática" da esquerda, conforme Fico, não havia sido exatamente democrática, além de - outra constatação também destacada pelo autor - sua inépcia e desarticulação.

Consta, inclusive, que a esquerda cometia a imprudência de se reunir no mesmo prédio onde aconteciam as - essas, sim, articuladas e conspiratórias - reuniões do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), órgão civil-militar encarregado de desmoralizar ideologicamente a ação de Jango Goulart e dos seus supostos apoiadores, instituto treinador de empresários para ocupação de futuros cargos no governo, mas principalmente alertador da classe média sobre os perigos do comunismo disfarçado de trabalhismo.

Seus alertas escritos no capricho para convencer as famílias brasileiras chegavam a elas através da criação e divulgação de sedutores documentários roteirizados pelo secretário do IPES - o hoje famoso escritor José Rubem Fonseca - e dirigidos e fotografados pelo francês Jean Manzon, filmes que se espalhavam nos cinemas do Brasil, de norte a sul.

Fico destaca também a queda de mitos bastante alimentados até então de que só houve tortura após o AI-5, de que seria "coisa de subalterno" à revelia dos generais, de que só houvesse uma repressão e uma censura, de que os militares só se dividiam entre "duros e moderados", de que Castelo Branco fosse moderado ou de que Geisel não estivesse ciente dos subterrâneos ensangüentados.

Para Fico, interpretando seus pares, a tortura e a censura entraram em vigência junto com o próprio golpe, embora tenham sido de certa forma "oficializadas" mais tarde com a ampliação da abrangência do SNI (1967) e a implantação do sistema CODI-DOI que unia todas as polícias, inclusive bombeiros e polícia feminina.

No caso específico da polícia ligada à censura, Fico ressalta que, na verdade, a censura eram duas: uma, a da moral e bons costumes, que atuava sobre as diversões públicas desde muito antes dos militares (1945, na era Getúlio), e outra - essa, sim, mais recente -, a censura política, que passou a agir dentro das mídias e também de forma prévia, ambas de cargo público ao qual acorriam candidatos de todos os credos, via concurso oficial.

Castelo Branco, diz Fico, de moderado, legalista e brando só tinha a fama - construída por seus biógrafos -, pois ninguém senão ele havia co-redigido e assinado a Lei de Segurança Nacional, fechado o Congresso nacional, decretado a Lei de Imprensa e sido, sem dúvida nenhuma, conivente com a tortura desde o começo, considerada por ele e pelos outros militares como apenas "um mal menor".

Como declarou Geisel a Elio Gaspary, em A ditadura derrotada (2003:324):
"esse negócio de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser".

O que Fico traz à tona sobre Castelo é que ele teria sucumbido à forte pressão de um grupo militar ainda mais conservador do que ele próprio, mais tarde exitoso em seus esforços com Costa e Silva e Médici, e calcado no projeto de uma dita "utopia autoritária": a crença de que seria possível eliminar (leia-se eliminar no sentido literal da palavra) qualquer dissenso (comunismo, subversão, corrupção), para colocar o Brasil na "democracia ocidental cristã". Isto é: sumariamente suprimir tudo o que impedisse o Brasil de virar potência mundial.

Segundo Fico, essa "utopia autoritária" teria sido o "cimento ideológico" amalgamador das tantas diferenças entre os que apoiaram o Golpe e os que o implantaram e mantiveram, após 64. Utopia baseada em algumas "crenças": a da superioridade militar sobre os civis, vistos como " despreparados, manipuláveis, impatrióticos e - principalmente os políticos - venais"; a de se acharem capazes de "curar o organismo social", extirpando o "câncer do comunismo" pela via física (através da repressão saneadora), pela via pedagógica (através da educação do povo e defesa da moral e bons costumes) e pela via tecnológica (através dos meios de comunicação).

Fico aborda ainda outros aspectos, referindo-se, por exemplo à mudança de padrão no modo de agir dos militares, cujos passaram de meros "moderadores" históricos em mudanças de chefes de Estado - depondo e transferindo o governo a outro grupo, sem assumir o poder - para, em 1964, quebrar o modelo.

Supostamente capacitados pela ESG - Escola Superior de Guerra, dessa vez os militares se supunham aptos ao exercício do poder, espicaçados também pelo evento da quebra de disciplina dentro das próprias Forças Armadas, o que os fez pressupor que a julgar pelo caos até " dentro de casa", a situação realmente estava grave e exigia que se atuasse com mais rigor.

Junte-se a isso uma suposta imobilidade e fragilidade de Jango, a rotatividade alarmante de ministros, a paralisia do legislativo, a falta de consenso entre as partes - do Congresso aos partidos - além de outras razões de estrutura, ressalta Fico: o modelo de capitalismo brasileiro agora em um estágio mais avançado de industrialização e capitalização multinacional pedia por novos modos de gestão pública, modos que não incluíam as ditas reformas de base trabalhistas propostas pelo Presidente da República.

No entanto, diz Fico na página 55, derrubando um derradeiro mito, é preciso distinguir a atuação desestabilizadora do IPES da conspiração golpista civil-militar, que, segundo o autor, foi mais "retórica radical" e só se firmou na véspera do 31 de março.

Ou seja, a desestabilização civil promovida pelo IPES teria sido muito bem articulada, ao contrário da intempestiva ação militar, versão confirmada pelas entrevistas de militares participantes do Golpe ao CPDOC, que teriam dito dar pouca importância ao apoio americano e simplesmente focado na questão para eles imediata: tirar Jango e "limpar" as instituições.

Em suma, a principal causa do Golpe, no entender de Fico, foi uma conjunção de fatores: as transformações estruturais do capitalismo brasileiro, a fragilidade institucional do país com as incertezas do Governo Jango Goulart, a propaganda política do IPES e a índole golpista dos conspiradores, principalmente dos militares.

"Que uma tal conjunção de fatores adversos - esperamos - jamais se repita", preceitua Fico.

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Referência:

FICO, Carlos. "Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar", in Do ensaio ao golpe (1954-1964), Revista Brasileira de História, vol. 24, nº 47, Julho de 2004:19-60.
(Graça Craidy)

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