- E tudo o que você disser será usado contra você, pleiba! Melhor calar essa boquinha cheia de dentes….- encerrou o policial mal-encarado me empurrando pra dentro da cela, prevalecido do seu poderzinho de merda.
Encaixou a tranca, passou a chave na porta de grades e se foi, rebolando aquela bunda gorda apertada no brim cáqui, parceria repugnante para sua rotunda barriga de cerveja e torresmo adquirida certamente em pútridas padarias de subúrbio.
Tremendo de frio e de medo, dei de cara com dez pares de olhos fixados em mim. Todos castanho-escuros, brilhando na luz tênue daquele cubículo 3X4. Todos enfiados em órbitas de peles escuras, pardas, mulatas, retintas. Um por um me medindo de cima a baixo, misto de desprezo, curiosidade e regozijo.
A riquinha tava fodida, devem ter pensado. Até que enfim uma danoninha pega com a boca na botija, só pra variar um pouco nesse mundo injusto de bosta.
Aqueles mulheres curtidas pela solidão coletiva da prisão tinham agora em mim um novo divertimento para o tédio desesperado das suas mortes em vida.
- Pisou na bola, é, branquela?
- Um amigo pediu pra guardar a bolsa dele no meu carro: 20 papelotes…Eu nem sonhava...
- Amigão!...
- Ih, ferrou!...Vais morgar por aqui um bom tempo, ô, desbotada…
- E já que a madame vai se estabelecer no recinto, vamos deixar bem desclarecido umas coisa: aqui tu não é merda nenhuma, tá claro?
- Como é teu nome?
- Graça.
- Desgraça, tu quer dizer, né? Hahahaha!...Pois de agora em diante teu nome é Branquela. Branquela Desbotada, valeu?
Pra começar, elas me delegaram como cama o canto ao lado do banheiro. Banheiro... Um buraco fétido no chão de cimento, encimado por uma velha ducha corona pinga-pinga que me atormentava dia e noite na repetição da sua contagem acusatória: otária, otária, otária.
Naqueles 12 metros quadrados entre mim e elas cabiam três oceanos. Os dias eram longos, as noites, mais ainda.
Não poder sair daquele cochicholo apertado me diminuía a existência em séculos. Tudo tinha perdido a cor. No cinza do concreto sujo o tom dominante enferrujava minha alma, me embrutecendo as veias, alerdando o gesto, me transformando em uma ratazana bípede.
Depois do primeiro dia em que se assenhorearam do meu drama, minhas companheiras de cela resolveram em surdo uníssono não me conceder palavra. Desprezo total. Só os olhares diziam mais que qualquer livro de sociologia.
Nem sei se eu queria, também, me aproximar. Talvez, não. Tudo fedia. Eu fedia, a comida fedia, o colchão, o pensamento fedia, existir fedia. Naquele covil de fêmeas, o cheiro acre de menstruação velha se mesclava à aca pestilenta de sovacos cabeludos e roupas úmidas de secar na sombra.
O que mais se entranhava no meu nariz, no entanto, era o agudo olor do poderoso líquido de desenroscar crespos de cabelos pichaim. No ócio forçado da prisão, todas elas, negras, ou meio-negras, buscavam se libertar vaidosas de seus gens alisando fio por fio suas carapinhas.
Encolhida no meu canto de dejetos comuns, eu emagrecia dia após dia, muda e defensiva, oca de pensamentos outros que não o ódio gelado por meu pretenso amigo que tinha me metido naquilo e que hoje certamente flanava lá fora, impune e sem remorso.
Quantos anos vou ficar aqui? Que dia é hoje? Quem sou eu? Por que a gente nasce? Por que não acabam comigo de uma vez? Eu sou um deserto. A vida é nada. É tudo. Tudo é estar lá fora. E esta porta que não abre? E esta porta, que só abre pra dentro do inferno?
Aqui jaz uma boceta inútil. Uma branquela desbotada no meio de negrelas coloridas. Elas resistem porque, cá ou lá, mesma miséria. Cá, pelo menos, teto e comida garantidos. Eu, pobre de mim. Rata branca sem melanina e sem razão. Crime e castigo, dostoiévski barato. Nenhum romantismo na cadeia. Paixão é literatura.
No vazio do calendário, você fica pior que os piores, você desexiste. Existe maldição maior do que ser varrida do universo? Morrer deve ser melhor.
Junto minhas forças num canto sujo da unha e decido, último desalento humano: hoje à noite vou desembranquelar e abrir esta porta de um jeito ou de outro. Ou abro pro céu. Ou pro inferno. Quiçá pro maldito purgatório. (Graça Craidy)
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Um blog à beira de um prozac. Reflexões sobre pós-modernidade, criadores publicitários, artigos acadêmicos, vida real, memórias, xingamentos, declarações de amor e desaforos em geral.
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ResponderExcluirZbigniew Campioni escreveu:
ResponderExcluirMUITO BOM!!!
Lilian Honda escreveu:
ResponderExcluirMuito bom, musguinha...
Sérgio Mudado escreveu:
ResponderExcluirPungente. A cor da liberdade. O conto permanece suspenso como uma espada de Dâmocles sobre a consciência.
Adriana Gragnani escreveu:
ResponderExcluirA branquela criativa.
Muito legal esse conto da linha branca, digo,linda Branquela.
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