O assassinato do autor.

Como um saco de gatos.
Olhe bem o anúncio abaixo criado pela DM9Sul para a RBS em homenagem ao Dia do Jornalista. E repare nas aspas que iniciam cada parágrafo. Agora, procure o nome do jornalista homenageado, autor da citação. Não sabe quem disse coisa tão interessante?

Nunca saberá.

O Grupo RBS e a DM9Sul parecem ser muito mais apaixonados pelo jornalismo que pelos jornalistas. E a homenagem, no fundo, não é bem uma homenagem.


Anúncio página dupla publicado na ZH em 07.04.2013, p. 20 e 21.
O único que você vai encontrar é, no final do anúncio, abaixo da assinatura, em uma letrinha menor que a das citações, tipo nota de pé de página, a explicação: Contribuíram para este anúncio os jornalistas do Grupo RBS, dois pontos. 

E ali, sim, os nomes dos autores das frases - todos eles grandes jornalistas, aliás - enfileiradinhos como numa esteira de fábrica, como gado que vai pro brete, como fruta que vai pra caixa, como num saco de gatos de todas as pelagens, sem que o leitor tenha como saber quem disse o que quando como onde por que.

Como se a função fosse mais importante que o sujeito que a faz funcionar. Como se o motor do jornalismo fosse o próprio jornalismo - entidade coisificada e não conceitual - em vez de o jornalista, o cabeça, a inteligência, a origem.


Homenagem ou pseudo homenagem?
Um horror! Um horror!

Das coisas que mais têm me chocado nessa esquisita pós-modernidade do vale-tudo é perceber que a autoria cada dia mais parece que foi pras cucuias.

Dia após dia, percebo que as pessoas jogam com a autoria das frases como se fosse um lego que você troca ao belprazer montando e remontando os pensamentos alheios ao sabor da vontade de cada um.

Nesses tempos de hiperindividualismo lipovetskyano onde cada um desse imenso bando de mimados só deve explicações ao próprio umbigo, o conceito de autoria muda cada vez mais de ser propriedade intelectual daquele que cria, deu origem, deu luz, para ser a propriedade de quem se apropria, recria, copia.


A volta ao breu medieval.
Ou pior, a autoria não tem mais importância nenhuma e portanto todas as coisas serão de autoria anônima. A escuridão total. O breu medieval. O grande nada onde você pergunta quem foi que fez e a resposta é: não interessa.

Volta e meia você se depara hoje com textos que ninguém sabe de onde saíram, assinados na marra por autores que você sabe muito bem de onde saíram, mas que jamé-de-la-vi escreveriam aquilo, ou que claramente não têm aquele estilo ou - filme de terror! - jamais tiveram contato com aquelas coisas citadas, por uma simples razão. Já estavam mortos quando elas foram inventadas.

Outro dia até o Luís Fernando Veríssimo escreveu uma crônica sobre isso. Que as pessoas vem elogiar um texto pretensamente dele e que quando ele agradece mas diz que não foi ele que o escreveu, o interlocutor reage quase agressivamente:- foi, sim!

Plasil! Plasil!

E essa praga se alastra para todas as áreas da autoria. Das letras às artes visuais. Das colcheias às descobertas científicas e tecnológicas.


O espírito do samplear.
Uma amiga que acaba de entrar como aluna no Instituto de Artes da UFRGS me conta que no IA é proibido assinar as pinturas e desenhos e qualquer trabalho de artes plásticas na frente da tela ou do papel ou seja lá de que suporte for. Assinar, somente atrás, modestamente. Decerto para auxiliar algum organizador bibliotecário no futuro ou para responder a alguém mais insistente, gente antiga do século XX, quem sabe, sobre - só por curiosidade, mesmo! - quem é o autor daquela obra.

Há algumas semanas, também, o vencedor de um importante prêmio de Porto Alegre, o Prêmio Açorianos de Música, foi desclassificado pela melancólica revelação de que sua música era na verdade um plágio descarado de outra música estrangeira, que ele apenas se deu ao trabalho de traduzir e fazer pequenas mudanças aqui e ali.

E, diante do cancelamento da sua premiação que qualquer um com vergonha na cara sumiria do mapa por uns tempos, sem nada comentar, o autor do plágio ainda desafiou a decisão dos jurados, questionando arrogantemente: - Mas o que é, afinal, criação? Eu apenas me inspirei na música do outro autor. Isso. Ou algo assim. Mas o espírito foi esse. O tal espírito de samplear, tão comum também no mundo rap, hip hop e dos DJs. 
Caradura ou sem noção?

Será caradurismo, falta de noção ou noção equivocada de autoria?

Me pergunto: a quem serve essa desvalorização da autoria como algo que torna a obra preciosa, reconhecível, valorosa, referencial, necessária para a evolução do homem, e em última instância, por isso mais vendável?

A quem interessa transformar tudo em um grande balaio de gatos sem autoria? Certamente, a quem leva vantagens com isso. Financeiras e intelectuais.

Os medíocres estão feitos. Basta sentar ao lado de um brilhante. Os marqueteiros estão feitos. Basta arrematar os trabalhos de gente criativa a preço de banana. Aliás, em certos casos, até a banana é mais bem paga que boas ideias.


Banana a preço de idéia.
Lembro de um artigo que li no final dos anos 90, na revista Esquire, sobre as diferenças do gosto pela arte das gerações de milionários, comparando três gerações: a dos milionários dos anos 50, os baby-pignataris, a dos milionários dos anos 80, os yuppies, e a dos milionários dos anos 90, os filhotes de bill-gates.

No que tangia às artes, a geração dos anos 50 reverenciava os grandes pintores, de Da Vinci a Van Gogh. Os novos ricos dos anos 80 preferiam Kandinski, Andy Warhol. Mas a resposta mais supreendente vinha da total indiferença à arte da geração bill-gates, posicionando-se muito mais interessada em adquirir os direitos intelectuais para a internet tanto sobre Da Vinci e Van Gogh quanto sobre Kandinski e Warhol.

Ou seja: a arte só tinha importância pelo valor de revenda ou, no caso, por sua multiplicação à exaustão na rede, na medida do que se podia ganhar dinheiro com ela. E ainda que eles entendessem que ter um Van Gogh fosse importante nesse sentido, tanto lhes fazia, de fato, a obra em si, como criação do Van Gogh ou do pai do badanha.

Lamento muito tudo isso e não consigo projetar um mundo cultural onde as coisas não tenham autores, onde tudo seja anônimo, mercantilizado, transformado inapelavelmente em commodities, genéricos.


Autor, o novo genérico.
O estudioso da cultura, especificamente da cultura da mídia, Douglas Kellner, no livro A Cultura da Mídia (2001) alerta para o fato de que a mídia fornece material para construção de identidade pela qual o indivíduo se insere na sociedade tecnológica capitalista contemporânea. E que é preciso examinar com atenção como a mídia provê recursos para formaçao dessa identidade, como promove reacionarismo ou progresso.

Por isso, quando vejo um dos maiores grupos de comunicação do país, servido por uma agência de publicidade integrante do 18º maior grupo de comunicações do mundo - a DM9Sul, do Grupo ABC -  publicarem um anúncio pretensamente elogiando os jornalistas, mas de fato capando-lhes a autoria, fico pasma e não posso fazer de conta que não vejo.

Agora é oficial? Será o autor, mesmo, uma espécie destinada à extinção?

(Graça Craidy)

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23 comentários:

  1. Teresa Valadao escreveu:

    Graça, nem mesmo de óculos consegui ler a homenagem aos jornalistas, mas o seu texto de repudia consegui ler muito bem. Perfeito, parabéns! Como sempre escrevendo muito bem!

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  2. Regina Cury escreveu;

    Não leve publicitários a sério.

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  3. Angelica Moraes escreveu:

    Ótimo texto no teu blog sobre a questão de autoria. Bem pensado e bem escrito, como sempre. Reaaaaalmente, a RBS e sua agência de publicidade cometeram o que o velho Freud chamava de ato falho. E minha manin notou e botou a boca no trombone. Sintomático, meu caro Watson. Rsrsrs. Gostei muito de ler. Sensação de desentalar um sapo boi da garganta.

    Só um pequeno adendo sobre a seara das artes visuais: a assinatura no verso do trabalho não tem a ver com autoria e sim com interferência visual. Muitas vezes (já vi tanto!) a pintura ou ou desenho estão lindos mas...quando o artista coloca a assinatura, ela funciona como um elemento estranho na composição. Funciona como um ruido.

    A prática de não assinar em destaque ou sequer assinar na superfície do trabalho tem, portanto, outras origens do que o assunto em pauta. É uma questão estética e não uma questão ética. Observa que desde as vanguardas do início do século passado isso está valendo. Mondrian não assinava na frente da tela. A assinatura, algo gestual, iria interferir na harmonia geométrica de planos e cores.

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  4. que bom q gostaste da minha rabugice sobre autoralidades. :-)

    quanto à questao da assinatura, sorry, mas nao concordo. podem dizer o que quiserem sobre a interferencia estetica, o diabo a quatro, mas pra mim nunca soou mal nem desafinou coisa nenhuma. ja ouvi argumentos de uma professora, ah, o importante é a obra, nao o autor. nao acho.
    acho que a obra só é importante por causa do autor. enfim....

    acho uma delicia descobrir onde o autor escolheu assinar, tipo um selo
    de qualidade, um tenho-dito.

    pq mondrian resolveu nao por nenhum redondinho nos quadradinhos dele, o resto do mundo ficou proibido de assinar?

    mondrian devia ter assinado com regua pra ficar bem quadradinho
    e deixado o resto do mundo assinar em paz. :-)))

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    1. Angelica Moraes escreveu:

      Rarárá! Lepô querida, estás hoje uma insurgente de marca maior. Essa coisa de assinatura é algo que o artista mesmo decide, não tem regra nem imposição. Se achas que tua assinatura não interfere nos teus desenhos, continua assinando e pronto. Simples assim. Aliá, no teu caso, nunca interferem mesmo. Porque teu desenho é gestual, de traços amplos, mesma gestualidade da tua assinatura. Esquece essas tecnicalidades da seara das visuais porque elas dizem respeito a famílias de trabalhos de outro DNA. Tu és uma apaixonada, irmã dileta dos expressionistas alemães todos. Para vocês, não há o que estanque a hemorragia. Adoro.

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    2. Ui, como adorei isso de não-há-o-que-estanque-a-hemorragia! Ainda bem, ainda bem...

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  5. Nilson Souza, da ZH, respondeu ao meu email sobre o assunto:

    Graça, vou encaminhar tuas observações aos produtores do anúncio, para que deem a resposta adequada às tuas dúvidas. Acredito que o único propósito do anonimato foi transformar depoimentos individuais em homenagem coletiva, como se representassem o pensamento de todos os jornalistas. Tanto que no Blog do Editor (http://wp.clicrbs.com.br/editor/?topo=13,1,1,,,13),
    que é o espaço online onde os processos editoriais são repassados ao público, todos os autores estão devidamente identificados. Mas prefiro que o pessoal do marketing te dê uma explicação mais técnica. Aguarde, por favor. E obrigado pela mensagem. Nìlson

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    1. Minha resposta ao Nilson Souza:

      Obrigada por responder, Nilson.

      Olhei o Blog do Editor. De fato, la estao os nomes, com todas as letras. Fico mais contente.

      De qualquer forma, no meu entender é um equívoco primário depreender que por estarem la os nomes,
      ca no jornal nao precisam estar. As audiencias nem se comparam. Eu, mesma, nunca entrei lá antes...

      E acho também que isso de representar o coletivo poderia ser relevante, mais ainda,
      com as assinaturas. O particular representando o geral. Muito mais crível.

      Me surpreendi porque nao faz duas semanas que a mesma ZH
      publicou uma grande materia justamente sobre isso, a questao
      da autoria.

      Abs,
      Graca Craidy

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  6. Ivan Caires escreveu:

    Ótimo, Graça!!!

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  7. Rick Jardim escreveu:

    maravilhoso texto!!! guardei!!!

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  8. Clotilde Maso escreveu:

    Gracinha querida, li tudinho no e adorei as tua "rabugices maravilhosas", Belo texto, palavras na medida certa da reclamação e assino embaixo. Olha a minha pretensão. Beijos

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  9. Beto Soares escreveu:

    Bato palmas pro texto e pra lucidez, Graça.

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  10. Rick Jardim escreveu:

    tem textos que a gente, pretensiosamente, gostaria de ter escrito: esse é um deles!!!

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  11. Margit Melchiors escreveu:

    Nada se cria, nada se perde, tudo se copia!
    Parabéns pelo justificado raivoso, belo texto!

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  12. Neil Ferreira escreveu:

    L´Auteur ! L´Auteur !

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  13. Ah! E para mim tua assinatura é parte integrante da tua obra. Ainda vou ter um Graça Craidy na minha parede e exibir a autoria cheia de orgulho. Adorei o texto, embora me desalente. Essa questão da autoria me toca pessoalmente. Ansiosa pela resposta "mais técnica" do pessoal do marketing. Beijos

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    1. querida unknown, que pena que não assinaste a msg, assim não sei a quem estou respondendo...:-) Obrigada por querer um Graça Craidy na tua parede...Vou ficar feliz de me pendurar por lá. beijo!

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  14. Marino Boeira escreveu:

    Muito bom, Graça. Foi você mesmo quem escreveu este texto?

    Falando sério: a propaganda nunca primou muito pela originalidade. Acho até que está no DNA dela o plágio...

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  15. Moisés Mendes escreveu:

    Gracinha
    que texto maravilhoso. te confesso que não me incomodei com o formato do anúncio, porque tudo passa batido. mas lendo teu texto agora não há como não perceber que as coisas estão ficando estranhas em relação à autoria. e o pior é essa coisa de, mesmo com autoria identificada, um leminsky e um caio abreu virarem agora autores de auto-ajuda. aí é pra matar. mas, como sempre, tu matou a pau. tu tem densidade e sustância... no alegrete, diriam que tu tem tutano.
    bj
    moisés

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  16. Ana Coiro escreveu:

    "O assassinato do autor", excelente texto da minha amiga Graça Craidy, publicitária que não gostou da homenagem da RBS aos jornalistas. Vale a leitura!

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  17. Christa Berger escreveu:

    Que bom amiga saber de ti e, pelo texto, lucidamente maravilhosa.

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  18. Hermes Aquino escreveu:

    Que pauleira, Gaki! É a tua cara, mete bronca. Tem um jingle do gás (do cachorrinho) que eu não fiz, mas eles dizem na minha cara que é meu. E pouco importa que eu desminta.
    Bj.
    HA

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