Até os anos 60, ser da Criação em qualquer agência de propaganda no Brasil significava ser menosprezado pelo Atendimento, ignorado pelos clientes e desvalorizado pelos
empresários do setor.
Como foi possível uma mudança de identidade profissional tão forte a ponto de em poucas décadas a Criação passar a comandar o processo de muitas agências, - principalmente das agências lideradas por profissionais advindos dessa área como Roberto Duailibi, Francesc Petit, José Zaragoza, Nizan Guanaes, Washington Olivetto, e Marcelo Serpa, entre outros - invertida a posição com seus antigos comandantes do Atendimento, que se tornaram, se não caudatários das recomendações e estratégias dos criadores, no máximo, seus parceiros coadjuvantes?
Primeiro de tudo, ruptura. Conforme o crítico cultural Kobena Mercer, citado
por Stuart Hall (2004:9), a identidade só se apresenta como questão quando está em crise, quando algo que se supõe fixo, coerente
e estável é deslocado.
Foi o que aconteceu com a identidade profissional dos
criadores publicitários, entre os anos 60 e 70: um deslocamento gradual da posição de
desimportantes para importantes no processo da agência, fruto da crise de uma identidade que não
mais lhes servia.
José Ruy Gandra.
Oprimidos pela cultura da prática
profissional da época e por quem detinha o poder econômico - os donos das
agências de propaganda nacionais ou os executivos de agências multinacionais
americanas aqui instaladas, que seguiam o modelo norte-americano das agências
fundadoras do setor - os criadores eram vistos apenas como burocratas de um
processo maior onde se valorizava a quantidade dos trabalhos e não a sua
qualidade criativa, recorda José Ruy Gandra.
[nos anos 60] As agências ainda ostentavam um perfil bem
careta. Eram enormes. Fiéis ao modelo implantado pelo empresário James Walter
Thompson, em 1871, ao fundar a primeira agência americana, elas ainda
alimentavam a presunção de oferecer todos os serviços de marketing a seus
clientes. Essa oferta implicava desde a criação de um boné ou de uma nova
embalagem para uma caixa de fósforos a uma campanha em cadeia nacional de rádio
e TV para vender um novo carro. (GANDRA,1995: 46)
Com esse modelo conhecido como full-service, presume-se que
não havia espaço para a predominância do valor de apenas um departamento dentro
das agências, à exceção, claro, do departamento que gerenciava todo o processo,
ou seja, o Departamento de Atendimento, fiel representante do poder patronal -
obviamente interessado no faturamento - e que não apenas comandava, em última
instância, o trabalho das equipes ( de prazos a preços) como também recebia os
salários mais altos da hierarquia, dada a sua evidente importância no negócio
final. Pelo menos naquele formato. E gerando, naturalmente, um mudo e
ressentido enfrentamento entre o Departamento de Criação e o de Atendimento,
com nítidas vantagens para o último.
Malucos, poetas e esquisitos.
Enquanto o verbo do atendimento era, concretamente, faturar,
o da criação não passava de abstratos redigir e leiautar. Enquanto um
apresentava resultados substantivos, que sonavam na caixa registradora, o outro
oferecia a matéria-prima menos tangível de todas, em uma era essencialmente
positivista: meros adjetivos superlativados.
Até a década de 60, conforme a história, era precária a
situação dos profissionais que atuavam em criação nessas agências de perfil
repartição pública privada, produzindo anúncios engravatados e num contexto
onde criatividade não era o foco do negócio:
A criação era apenas um desses serviços prestados pelas
agências, uma das baias de seu labirinto burocrático - quase nunca a mais
importante. Os anúncios, em geral, eram empolados, uma lista de elogios ao
produto sem o menor compromisso com a realidade.(GANDRA,1995: 46)
Segundo relato do jornalista Gandra (1995:48) as agências
tinham rotinas "de causar inveja nos personagens do escritor Franz
Kafka", e o processo de criação era costurado por idas e vindas do boy do
tráfego - uma espécie de mandalete de operações, que pegava o texto
datilografado na mesa do redator, levava para o estúdio, no outro andar, onde
ficavam os layoutmen, que criavam o layout e produziam a arte-final. Redatores
e layoutmen não só não trocavam idéias, como os autores do texto só viam o
anúncio depois de publicado.
Sérgio Graciotti.
Criação conversar com o cliente, como hoje é comum em
agências de propaganda? Nem pensar! "Nós mal víamos a cara deles",
afirma o redator da época Sérgio Graciotti (1995:48), contando que tanto
redatores quanto layoutmen recebiam baixos salários, e, principalmente os das
letras, com origens diversas - jornalistas, advogados, escritores - faziam da
propaganda um bico à espera do "momento certo de escrever o seu grande
romance ou livro de poemas", recorda Graciotti (1995:49), confidenciando que
tanto redatores quanto layoutmen eram considerados "os malucos, os poetas,
os esquisitos da agência" (1995:48).
"Eram como párias nesse mercado", conclui Gandra,
baseado nos relatos dos criadores de então (1995:49). Contrastando com os de
atendimento, que desde o terno conservador ao cabelo bem cortado faziam jus a
claras tarefas e aos maiores salários, coerentes com a posição que ocupavam, de
executivos de negócios. Contraste sobre o que bem alerta Kathryn Woodward ( 2000):
a identidade está vinculada também a condições sociais e
materiais. Se um grupo é simbolicamente marcado como o inimigo ou como o tabu,
isso terá efeitos reais porque o grupo será socialmente excluído e terá
desvantagens materiais (WOODWARD, 2000:14).
Kathryn Woodward.
Em outro momento do capítulo Identidade e Diferença,
Woodward (2000) observa que é preciso explicar porque as pessoas investem nas
posições que os discursos da identidade lhes oferecem. No caso dos redatores do
momento histórico acima, fica transparente a razão de serem tratados como párias
e esquisitos, pois investiam negativamente em sua posição. Afinal, como
respeitar o trabalho de alguém que o encara como um mero bico?
Muita gente de criação, aliás, conforme relata Julio Cosi Jr
(1995:49), " sonhava em mudar para o atendimento e assim melhorar o seu
contracheque".
O outro clube, foco na criatividade.
Bill Bernbach.
Nos Estados Unidos, no entanto, um criador publicitário
americano chamado Bill Bernbach, o B da agência DDB, já havia deflagrado,
no final dos anos 40, o que se chamou depois de Revolução Criativa na propaganda.
Redator, pleno de idéias, mas, por ser judeu, impedido de
trabalhar no fechado círculo do chamado The Club, dos WASPs (
white-anglo-saxon-protestant) das grandes agências da Madison Avenue - a avenida
das griffes de propaganda em Nova York - ele havia criado seu próprio negócio,
com mais dois sócios também judeus. Apostava em um novo modelo de agência
"enxuta, compacta e com foco na propaganda como um negócio eminentemente
criativo" (GANDRA, 1995:46), fundando um outro jeito de pensar e fazer a
propaganda, que acabou conhecido como The Other Club, irônicamente apontadas
suas flechas ao já citado The Club.
Embora a maioria dos criadores publicitários brasileiros
ainda não soubesse, estava lançada a base téorico-pragmática do que Woodward (2000:14), aponta como requisito básico para determinação da
identidade: um sistema classificatório que mostre como as relações sociais são
organizadas e divididas. Uma clara separação entre nós e eles, eu e o outro, a
identidade como algo relacional, que só existe a partir de um diferente de mim,
evidenciando "a negação de que não existem quaisquer similaridades entre
dois grupos", como ela exemplifica, usando o caso dos inimigos sérvios e
croatas:
A identidade sérvia depende, para existir, de algo fora
dela: a saber, de outra identidade (croata), de uma identidade que ela não é,
que difere da identidade sérvia, mas que, entretanto, fornece as condições para
que ela exista. (...) Ser um sérvio é ser um "não-croata". A
identidade é, assim, marcada pela diferença (WOODWARD, 2000:9).
No final dos anos 50, a Revolução Criativa americana ainda
não havia chegado ao Brasil, a não ser aos olhos e ouvidos de uns poucos
bem-informados, via anuários, revistas e jornais estrangeiros. A diferença, de
fato, de ser um não-atendimento, no caso dos criadores publicitários
brasileiros, foi buscada pessoalmente em Nova York, em 1960, a bordo de um
avião da Pan Air, levando, em meses diferentes, dois publicitários paulistas
que, apaixonados pelo novo credo de Bill Bernbach, haviam solicitado estágios
em sua DDB: Julio Cosi Jr., redator na Standard, uma das poucas agências
nacionais no mercado, e Alex Periscinoto, jovem layoutman de cartazes e
ilustrações na antiga loja paulista de departamentos Mappin.

Alex Periscinotto.
Eles queriam ficar a par de tudo sobre aquele criador que
tinha derrubado as hierarquias na agência, que havia juntado redator e
layoutman em duplas de criação, fundando inclusive o democratizante hábito de
discutir idéias em mesas redondas com suas equipes, como na lenda do Rei
Arthur, para evitar que apenas um fosse visto como o cabeça do encontro.
Bill Bernbach (...) virou a cultura publicitária americana
de pernas para o ar no decorrer dos anos 50. Seus anúncios bem-humorados e
freqüentemente irônicos tinham um poder de comunicação incrível. Eles
conversavam com o consumidor em vez de adulá-lo. A forma dos anúncios foi
totalmente revista. Fotografias substituíram as ilustrações e os textos
adquiriram um tom charmosamente direto, num interessante mix de objetividade,
sedução, bom-humor e poesia. Amarrando tudo isso, uma única matéria-prima que
Bill Bernbach soube valorizar como ninguém: as boas idéias (GANDRA, 1995:47) .
Bill no Brasil.
Júlio Cosi Jr.
Quando voltaram de Nova York, em 1960, os dois emissários
brasileiros da Revolução Criativa de Bernbach contagiaram pouco a pouco o
espírito dos criadores publicitários locais, conquistando muitos novos fiéis
para suas fileiras, entre os quais o mais tarde diretor de criação da Norton
Publicidade, o redator Neil Ferreira e os criadores da sua equipe Jarbas de
Souza, José Fontoura, Aníbal Gustavino, Carlos Wagner de Moares, e também
Roberto Duailibi, um redator de sucesso, colega de Cosi Jr na agência Standard,
que trazia em seu currículo anos de experiência na tradicional J.W.Thompson de
São Paulo, onde havia convivido com dois talentosos diretores de arte catalães
- Francesc Petit e José Zaragoza, agora donos de um estúdio de arte chamado
Metro 3, a quem Duailibi prestava serviços de free-lance.
Enquanto Cosi Jr voltava para suas lides criativas na
Standard, Alex Periscinotto, ainda contaminado pela genialidade do famoso
anúncio "Think Small" da DDB para a Volkswagen dos Estados Unidos,
acaba criando, também ele, uma campanha revolucionária para a agência nacional
Alcântara Machado, detentora da conta da Volkswagen do Brasil, o que lhe valeu,
mais tarde, convite para virar sócio dos irmãos Alcântara Machado (ambos de
atendimento), cuja letra final P daria novo significado à sigla Almap, antes
abreviatura de Alcântara Machado Propaganda, agora Alcântara Machado
Periscinotto.
De outro lado, tome-se dois catalães secularmente rebeldes
por origem histórica e junte-se a um jovem mato-grossense de origem imigrante
libanesa repleto de ideais e dá-se o quê? A primeira agência de propaganda
brasileira fundada estritamente por profissionais de criação que acreditavam
firmemente no valor da criatividade: a DPZ - Duailibi, Petit e Zaragoza.
DPZ, o espírito de 68 na propaganda brasileira.
Zaragoza, Duailibi e Petit.
O ano era 1968. Com a DPZ, estava lançada a pedra
fundamental concreta da diferença na criação publicitária brasileira. A partir
daí, ser de criação passou cada vez mais a significar não ser de atendimento,
invertendo-se então o valor anterior. Ser de criação queria dizer ser o mais
valorizado: nova illusio - para usar o termo de Bourdieu - do mercado.
Em seu capítulo A Centralidade da Cultura, Stuart Hall
(1997) esclarece os meandros percorridos na formação da identidade, mais por
representações oferecidas a nós pelos discursos de uma cultura - diz ele - e
pelo nosso desejo como envolvidos, que propriamente pela emergência de um eu
verdadeiro e único. O que parece acontecer é que respondemos aos apelos feitos
por esses significados:
O que denominamos "nossas identidades" poderia
provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas
diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos
"viver" como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são
ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias
e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas
identidades são, em resumo, formadas culturalmente (HALL, 1997:26).
Washington Olivetto e Francesc Petit.
Na nova DPZ, que representava o desejo exposto de resgate
histórico de toda uma classe específica de trabalhadores, os três criadores
assumem papéis diversos: Duailibi, por sua alma de atendimento - segundo Gandra
(1995:66), de postura mais discreta, diplomática e articuladora, faz às vezes
de atendimento criativo, hibridando o melhor dos dois mundos em favor da
proposta criativa de sua agência - criatividade como business - enquanto Petit
e Zaragoza, reconhecidamente, as vertentes criativas da agência (1995:67),
principalmente na vanguarda do visual, excêntricos no discurso e nos modos
europeus, bipartem-se em duas alas criativas, sólidas fornecedoras da mais
supreendente matéria-prima para as campanhas de seus novos clientes.
Roberto Duailibi.
Petit, trabalhando em dupla com um jovem redator irreverente
dito por Marcondes (2002:125) " o mais importante profissional de criação
da propaganda brasileira de todos os tempos", que costumava vestir terno
acompanhado de tênis e gravatas extravagantes, por nome Washington Olivetto,
com quem faria campanhas memoráveis como a do Garoto Bombril (1978).
Zaragoza,
primeiro fazendo dupla com Duailibi e com o redator Palhares Neto e depois (1977) em parceria com um dos poucos redatores que havia conseguido romper a
inércia paquidérmica das agências de então, Neil Ferreira, conhecido por sua
contundência, irônico, ex-jornalista e antigo integrante, na brasileira Norton
Publicidade, de um incipiente time bernbachiano de criadores autointitulado Os Subversivos (1969), roubando da história da época o significado que, para
muitos militantes da esquerda de então, conduziria direto aos porões do DOPS,
onde desapareceriam misteriosamente em meio a horrores, torturas e inomináveis
infrações dos direitos humanos.
José Zaragoza e Neil Ferreira.
Na propaganda, no entanto, ser subversivo levou-o direto à
privilegiada, sofisticada e divertida companhia de José Zaragoza, um artista
plástico com formação na Escola de Belas Artes Las Lonjas de Barcelona.

A explosão da publicidade brasileira.
O momento era de ditadura militar no Brasil. Os dirigentes
precisavam contar ao povo que a Revolução " Redentora" de 64 tinha
valido a pena. Para isso, escolheram a mídia mais moderna da época: a TV.
Sergio Capparelli e Venicio de Lima, em Comunicação & Televisão (2004)
relatam a estratégia completa dessa network do país pelos generais, em dois
momentos específicos: primeiro, concedendo emissoras de TV de norte a sul, para
garantir a cobertura comunicacional de todo o Brasil; depois, estimulando a
fabricação de televisores, para que os brasileiros, em cada lar, pudessem
conhecer todas as benesses de um modo de gerir progressista chamado milagre
brasileiro.
Uma coisa levava à outra. Quanto mais televisores, mais
televisores anunciados. E liquidificadores, e batedeiras, e fogões, e tudo o
mais que a nova sociedade de consumo quisesse e pudesse adquirir, com uma
novidade confortante em matéria de acesso ao consumo: o crédito direto ao
consumidor, as famosas suaves prestações mensais.
Havendo demanda de um lado, a oferta, do outro, precisava se
profissionalizar, principalmente na comunicação. E é aí que entra a
publicidade. E os criadores de publicidade, como soldados da vez. Convidados
também a se aliar ao Governo na prestação de contas da sua atuação usufruíam de
polpudas verbas governamentais, o que deve ter sido a justificativa para, em
1971, os colunistas publicitários organizadores do IV Prêmio Colunistas terem
concedido, entre os chamados Destaques de 1971, o seguinte agradecimento
público a um coronel:
À Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da
República, na pessoa do Cel. Otávio Costa, pelo excelente trabalho
desenvolvido. (Ata do IV Prêmio Colunistas 1971)
Os verdes anos: militares e dólares.
A partir das facilidades desse momento histórico, favorecido
por uma reserva de mercado que proibia agências que não fossem nacionais de
atender a contas de governo, algumas agências cresceram em cima das verbas
públicas, como a antiga MPM de origem gaúcha ou a paulista Salles, do proeminente Mauro Salles,
como relata Santos (2003), em sua tese sobre o percurso da mundialização da publicidade.
Outras, progrediram amparadas na enorme oferta de novos produtos que precisavam
encontrar o seu lugar no mercado.
Anúncio MPM.
A DPZ, embora contasse também com verbas públicas como a da
Receita Federal e da TELESP, conquistou seu espaço da mesma forma com contas do
mundo privado pelo manejo de uma comunicação dita criativa, ousada, coloquial,
irreverente e bem-humorada. São de sua criação as personagens antológicas do
Frango da Sadia (72), do Leão do Imposto de Renda (79), do Garoto Bombril (78)
e, mais tarde, do Baixinho da Kaiser ( 1984).
Os criadores da DPZ lavavam a alma dos que ainda eram
obrigados, por circunstância, a exercer papéis limitados às velhas regras
importadas das agências de perfil de atendimento, tão zelosas de suas
corporações que, na ficha técnica dos prêmios, em vez de divulgarem o nome dos
autores de cada trabalho inscrito, colocavam Equipe Agência Tal como comprova,
por ex., a ata do Prêmio Colunistas de 1969:
CATEGORIA: Melhor comercial de TV
TÍTULO: Série Ford Corcel
CLIENTE: Ford
AGÊNCIA: Mauro Salles/ Inter-americana
CRIAÇÃO: Equipe da Mauro Salles/ Inter-Americana
PRODUTORA: Lynxfilm (Disponível em: www.colunistas.com/
propaganda/prbro2ata1969.html)
Hans Dammann.
Mas, já havia, então, ostensivamente, o vírus da diferença
caracterizador de identidade, feito um clube metafórico. Embora desorganizados
como categoria e " tropeçando em dilemas éticos", pelo relato de
Gandra (1995:26), "dedicando o dia à direita e a noite à esquerda",
ilustra o redator Hans Dammann (1995:76), e vivendo atormentados por um certo
sentimento de culpa de servir ao capitalismo e de brilhar em duros tempos de
ditadura militar, os criadores publicitários já tinham muita coisa em comum. Só
faltava fundar um clube concreto, tangível, que evidenciasse oficialmente o que Woodward ( 2000) chama de social e simbólico:
(...) dois processos diferentes, mas cada um deles é
necessário para a construção e a manutenção das identidades. A marcação
simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais,
definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. É por meio da
diferenciação social que essas classificações da diferença são
"vividas" nas relações sociais (WOODWARD, 2000:14).
Z de Zara.
A oportunidade surgiu de duas vertentes, conta Gandra
(1995:27): uma, proporcionada pelos estudiosos de marketing All Ries e Jack
Trout, americanos, que começavam a conquistar prosélitos no Brasil com seu
discurso em defesa do valor do posicionamento da marca como muito mais
eficiente que o da criatividade, na propaganda, o que, segundo José Ruy Gandra,
"deixou nossos publicitários de cabelo em pé" (1995:28); outra,
oferecida por uma espécie de certame de peças publicitárias - o Prêmio
Colunistas de Propaganda, autointitulado O grande prêmio da publicidade
brasileira, criado em 1965 por jornalistas do setor, cujo júri era formado, não
por especialistas em criação, mas pelos próprios jornalistas, premiação
considerada pelos criadores da época sem critérios, ou, por outra, com escusos
critérios - como relata o redator Palhares Neto: "dizia-se que eles
tratavam as premiações como um negócio" (1995:27).
Mas, segundo Zaragoza (2005), havia ainda um terceiro
motivo: os criadores brasileiros achavam absolutamente desrespeitosas as
campanhas traduzidas globais que algumas multis insistiam em veicular no
Brasil. Zara - como é chamado em seu meio - recorda a construção da
independência dos criativos brasileiros:
A propaganda era completamente americanizada. Tudo vinha dos
Estados Unidos e era traduzido, adaptado. (...) Era uma propaganda dublada.
Muitas vezes os redatores tinham que seguir a campanha da Ford que nos Estados
Unidos dizia: "Ford in action". Aqui o redator era obrigado a
colocar: " Ford em ação". Os layoutmen mudavam apenas as cores.
Traduzir, sem criar.(...) Um dia fizemos uma convocação e apareceram mais de
trinta pessoas, um belo número. Ali estavam os expoentes. A pauta, vamos usar o
termo, era buscar a nossa linguagem, pois somos divertidos, alegres, amáveis,
bem-humorados, e não estamos passando isso para a propaganda. Sem isso, ela não
é autêntica, não tem a nossa cara. ( ZARAGOZA, in BRANDÃO, 2005, s/nº)
João Augusto Palhares Neto.
Nas ruas, falava-se a palavra democracia em voz muito baixa.
Nas eletrolas, Chico Buarque cantava Apesar de você. O momento, recorda
Palhares Neto (1995:27), era muito politizado: " seria muita alienação
achar que num momento como aquele o CCSP só lutaria por causas específicas da
sua categoria", ele enfatiza.
Nesse contexto de motivação política, irritados com os
Colunistas, indignados com o dito posicionamento e insatisfeitos com a
ingerência da propaganda traduzida, que ameaçava de novo mandá-los de volta ao
ostracismo das antigas baias kafkianas ( e, portanto, a uma nova crise de
identidade), os criadores publicitários resolveram se unir em torno de duas
bandeiras: a da democracia ( apoiando mais tarde o Diretas-Já), e a da
autonomia e valor da criatividade como um bem insubstituível na propaganda.
The brazilian other club.
Em 1975, sete anos depois da divulgação do I Prêmio
Colunistas oficial ( que não deixa de existir, mas perde o seu antigo poder de
legitimação), nasce The Other Club brasileiro, o CCSP - Clube de Criação de São
Paulo, com a proposta principal de produzir o seu próprio critério de
premiação, aquilo que criadores publicitários - avalizados por suas práticas -
entendiam como o melhor em criação publicitária, legitimando sua identidade e
diferença, e demarcando o terreno conquistado, ano após ano, até os dias de
hoje, com seus célebres Anuários que acabaram virando a bíblia da excelência
criativa publicitária no Brasil, consultados cotidianamente pelos profissionais
brasileiros, de estagiários aos já consagrados. Cumprindo o que Woodward (2000)
prevê como legitimador de identidade:
os discursos e os sistemas de representação constróem os
lugares a partir dos quais podem se posicionar e a partir dos quais podem
falar. (WOODWARD, 2000:17)
José Zaragoza.
Primeiro presidente do CCSP: o Z da DPZ, José Zaragoza. Atente-se para o detalhe: onde havia demarcação de
diferença, havia DPZ. Não surpreende, assim, que todos os acontecimentos
posteriores a 1968, ligados à conquista de espaço nacional e internacional,
seja em prêmios do Clube de Criação de São Paulo, dos Colunistas, ou em prêmios
mais cobiçados ainda, como os Leões do Festival Internacional de Publicidade de
Cannes ou as medalhas do anuário do Clube dos Diretores de Arte de Nova York,
entre outros., estejam conectados, direta ou indiretamente à DPZ. E, claro, à
herança conceitual de Bill Bernbach.
Por Bill Bernbach, o Brasil globalizado de hoje é tão
premiado em concursos internacionais que acabou reconhecido, na década de 90,
pelo volume e qualidade dos seus trabalhos, como o terceiro país mais criativo
do mundo em publicidade, junto com Inglaterra e Estados Unidos, e inclusive, em
2004, o relatório americano Gunn Report (2004), que compila as premiações mais
importantes do mundo, no setor publicitário, aponta uma agência brasileira ( e
multinacional) como a mais premiada do mundo, segundo notícia do site Brazzil
Magazine, que reporta news em inglês sobre o Brasil, datada de 16 de novembro
de 2004:
Marcelo Serpa, da Almap.
Almap BBDO, no Brasil, uma agência do BBDO Worlsdwide foi
nomeada a " mais premiada agência do mundo" em 2004, de acordo com
The Gunn Report. Agora em seu sexto ano, The Gunn Report combina a lista dos
vencedores dos mais importantes prêmios do mundo ( 32 concursos de TV, 20
competições de peças gráficas) para determinar um ranking geral. Almap BBDO foi
posicionada entre as 50 agências top do mundo, todo ano, desde 1999, quando
nasceu The Gunn Report. No entanto, este [ The Gunn Report] marca a primeira
vez que a Almap BBDO - ou qualquer outra agência da América Latina - conquistou
o prêmio mais alto.
A cadeia produtiva criativa.
Nizan Guanaes, da DM9.
Mas, não é só pela cultura que somos constrangidos, diz
Woodward (2000), ampliando a origem das nossas identidades não apenas pela
" variedade de representações simbólicas, mas também pelas relações
sociais" (2000:19).
Perceba-se aqui, com delicada lupa, como a maioria das
relações sociais dos envolvidos na construção da identidade do criador
publicitário se cruzam e entrecruzam por uma única e grande estrada
socializadora. De certa maneira, como se constata a seguir, praticamente todos
os novos líderes do segmento publicitário criativo tiveram passagens
profissionais pela DPZ, em um mercado que hoje conta com centenas de potenciais
agências empregadoras.
Washington Olivetto, da W/GGK.
Quando Washington Olivetto resolve sair da DPZ, em 1986, e
associar-se a uma agência suíça chamada GGK, fundando a W/GGK, ali havia um
replay de DPZ . Quando Nizan Guanaes (ex-DPZ) resolve sair da W/GGK (depois
W/Brasil), em 1989, e fundar a sua DM9, ali havia também um replay da DPZ.
Quando Marcelo Serpa (ex-DPZ) e Alexandre Gama resolvem sair da DM9 ( 1993) e
associar-se à Almap, ali havia também um replay da DPZ etc.
1968. DPZ⇒
1986.W/GGK⇒ 1989. DM9⇒ 1993.ALMAP.
Em tudo dessa surpreendente cadeia produtiva, na verdade,
costura-se também um grande replay do maestro Bill Bernbach. A criatividade
como matéria-prima mais importante no negócio da propaganda continuou
imbatível, no Brasil, década após década, cada um dos novos representantes do
poder da criação publicitária desenhando, à sua maneira, um modo peculiar de
convencer clientes, mídia e consumidores do seu inestimável valor.
Stalimir Vieira.
Todos, porém, lastreados pela mesma e grande diferença
fundadora - uma mentalidade criativa de propaganda - como observa o redator
Stalimir Vieira:
mentalidade que ajudou a transformar a profissão de
publicitário numa das mais ambicionadas. Mérito que não é grande por formar
tantos publicitários, mas, antes de tudo, por fazer pessoas procurarem na
publicidade uma oportunidade de serem originais (VIEIRA, in GANDRA, 1995:16).
Ou, como conclui, dramaturgicamente, o relator da saga dos criadores, no Brasil, José Ruy Gandra: "os profissionais de
criação deixaram de ser coadjuvantes e se tornaram protagonistas" (1995:
93).
____________________________________________
Resumo: Esta reflexão busca entender como se construiu a
identidade do criador publicitário brasileiro, entre as décadas de 60 e 70,
quando importantes profissionais de Criação - em um passado não muito distante
considerados malucos - se transformaram em presidentes de suas próprias
agências, respaldados no valor da criatividade que acabou conduzindo o Brasil
ao reconhecimento internacional, nos anos 90, como um dos três países mais
criativos do mundo em publicidade, junto com Inglaterra e Estados Unidos.
Palavras-chave: criação publicitária; poder; criatividade;
identidade; diferença.
Referências bibliográficas:
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Paulo: CCSP, 2005
- CAPPARELLI, Sérgio, LIMA, Venicio A. de - Comunicação e
Televisão: Desafios da Pós-Globalização. São Paulo: Hacker, 2004.
- ESCOSTEGUY, Ana Carolina - Cartografias dos Estudos
Culturais, Uma versão latino-americana. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
- GANDRA, José Ruy - História da Propaganda Criativa no
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- HALL, Stuart - A identidade cultural na pós-modernidade.
Rio de Janeiro: DP&A, 2004
- ___________ - "A centralidade da cultura", in
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- WOODWARD, Kathryn - "Identidade e diferença: uma
introdução teórica e conceitual", in SILVA, Tomas Tadeu da (org) - Identidade & diferença, a
perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.
( Graça Craidy)
SE VOCE GOSTOU DESTE POST, TALVEZ SE INTERESSE POR ESTE.