Um Mamounia, um violão, nosso amor, uma canção.

Eu me embriagava de Marrakesh.

Aquela cidade inteirinha cor de telha com suas tecelagens coloridas ao vento, seu mercado a céu aberto, seu formigueiro de gentes encapuzadas e enveuzadas, as ruelas da cidade velha Medina, o cântico lamentoso das torres que avisam várias vezes ao dia o vezo de orações, tudo me mantinha em um estado onírico imaginário único, mesclado de hortelã com canela e pimenta.

Hortelã, do chá doce e ritualizado que eles bebem compulsivamente, 24 horas por dia, num transe que - imagino - busca apagar da lembrança a milenar proibição islâmica que abomina bebida alcoólica.

Canela e pimenta, da comida perfumada que inebria os sentidos em promessas de paraíso. De todos os prazeres, o da mesa, entre os maiores e o mais permitido.

Em meio àquela sociedade de machos vestidos até os pés e de fêmeas escondidas atrás de panos e tatuagens no rosto que deduram seus estados civis, uma brasileira e sua gargalhada alta e desaforada destoam, com certeza,do submisso silêncio feminino local.

Os homens da cidade, quando querem ser galantes com as turistas estrangeiras pensando talvez arrumar ali uma noite livre de amor, falam francês e fazem floreios com as mãos e enchem o ar com suas mangas kaftanianas, em danças de acasalamento fortuito, fazendo crer às desavisadas ocidentais que eles são doces, mansos, sensuais e divertidos.

Watch your step! Quando eles falam com as suas mulheres, irmãs, mães, esposas ou empregadas, porém, mudam da água para o vinho. Titanic! Da luz para o breu absoluto. E se tornam ásperos e guturais e agressivos em um frasar árabe que pode até não ser mas que soa, soa como se fosse costurado brutalmente a gritos e insultos. Toda delicadeza se esvai. Ali jaz um ex-habib, desvendada a sua persona.

Eles têm certeza que todas as mulheres ocidentais são fáceis - em outras palavras, putas -,  que não sabem se comportar, que riem alto demais, que são despudoradas, vagabundas e, principalmente, que vivem em febres internas e eternas pelas alcovas deles .

Nessa mesma viagem, em Fez - a primeira das chamadas Cidades Imperiais, olhando de quem vem da Espanha -, fui obrigada fazer um escândalo com um conciergezinho de metro e meio do hotel em que me hospedava, porque numa noite em que voltei tarde de um jantar o mísero criaturo me seguiu pé por pé na hora em que subi para o apartamento e já ia se enfiando junto comigo no quarto, quando me dei conta daquele encosto e perguntei aos gritos aonde ele pensava que ia.

O rato teve a petulância de me responder: - dormir com você. Quê?!  Desatei um encordoado de impropérios em várias línguas, mandando ele sumir dali já agora imediatamente, antes que eu quebrasse tudo o que tinha no quarto, em cima dele.

E o gnomo saiu rapidinho, garanto que sem entender o porque de tanto dendéu, pois, afinal de contas, segundo seu entendimento, se eu praticava sexo grátis com todo mundo, por que não com ele, um exemplar, mesmo que em tamanho PP, do admirável macho marroquino?
La Mamounia Hotel

Eu estava ali no Marrocos em um grupo turistico com gentes de todos os cantos do mundo e, junto com duas amigas de viagem - uma australiana e uma argentina - resolvemos certa noite conhecer o hotel mais famoso, tradicional e chique do Marrocos, em cujo piano bar o primeiro ministro inglês Winston Churchill costumava ficar baforando seus indefectíveis charutos.

O nome do hotel: Mamounia. E lá nos fomos as três super chiques, salto alto e tudo, três gatinhas borralheiras que iam se intrometer no maravilhoso mundo das celebridades do jet set internacional, em sua noite de cinderelas marrocãs.

Só de entrar no hotel, você já se sente em um mundo de cinema, de mistério, de história. Muito mármore, muitas colunas, pé direito lá no céu, as pessoas deslizando naqueles pisos quadriculados com as pedras mais nobres, um luxo! Me sentia a Ingrid Bergman no bar do Rick em Casablanca. E tinha também um Sam pra gente pedir Play-it again! Só que era um Sam branco, francês, puro charme e talento.

Entramos no bar direto ao piano de cauda que ficava feito uma ilha com um balcão ao redor rodeado de bancos altos, onde os mais ávidos por música sentavam e ficavam por ali bebericando e curtindo o som do Sam francês.

O bar estava bombando, lotado, mas tivemos sorte. Três banquinhos altos para três  tréjolis, bebidas, glamour, nós extasiadas com tudo, eis que o Sam puxa um microfone com um fio comprido de debaixo do piano e nos aborda, perguntando de onde éramos. Argentina. Austrália. Brasil. Respondemos.

Sam pediu então que cada uma de nós cantasse uma música do seu país. Escolhi Corcovado, do Tom Jobim. O pianista sorriu pra mim, cúmplice, enquanto eu cantava Um cantinho, um violão, nosso amor, uma canção, olho grudado no olho dele, pra não errar.

Quando terminei, aplausos! Uau! E eu vi que o Sam me aprovou.

Na sequência, minha amiga argentina, tonta, em vez de cantar um tango, um bolero ou uma milonga, inventou de interpretar La Vie en Rose para o agradar o francês. Só que em espanhol! Diós, pela cara do Sam, percebi que ele achou a escolha dela uma reverenda bobagem. Francamente, la bida en rosa? Minha amiga australiana cantou não lembro bem o quê, mas não fez feio, não. Sam aprovou. E continuou a roda, pedindo aos outros clientes do balcão que cantassem também.

Estávamos as três felicíssimas na nossa noite mamouniana, sentadas no melhor lugar do bar, vendo tudo de cima e de perto, quando Sam, que já tinha até guardado o microfone debaixo do banco, requisita-o de novo do seu esconderijo e apontando-o mais uma vez para mim, me diz a frase mais linda, mais encantadora, mais surpreendente de toda aquela aventura arabesca:
- Sing it again, chérie?

Quase caí do banco. Como num filme, peguei o microfone, fechei os olhos e escorreguei suavemente pra dentro dos braços de Antonio Carlos Brasileiro Jobim e me enleei no cantinho, no violão, no amor, na canção, pra fazer feliz a quem se ama.

E eu que era triste, descrente daquele mundo, só abri os olhos quando o bar veio abaixo dos aplausos dos presentes. E eles assobiavam, e davam gritinhos, e me apupavam. E sorrindo, triunfante, Sam também aplaudiu. Seu olhar, prenhe de eu-sabias.

Sorry, Churchill, mas naquela noite, a maior celebridade do Mamounia foi moi. Moizinha aqui.
( Graça Craidy)

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3 comentários:

  1. Adriana Gragnani escreveu:

    Fiuuuuuuuuuuuuu fiuuuuuuuuuuuuuuuuu!

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  2. Amo tuas histórias E teus textos! Já aquarelou o Sam? Ou o bar do Mamouna? Beijos queridos.

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  3. Sara Seadi escreveu:

    Olhem, gente, mais uma aventura da
    queridona Graça Craidy,ela faz e acontece!!!

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