O dia em que Hagar, o Horrível invadiu a minha boca.

Ele era um verdadeiro urso. Peludo. Barrigudo. Sobrancelhudo. Goeludo. Italianudo, enfim. Sabe aquelas criaturas que ocupam os espaços com tamanha exuberância e naturalidade e desaforamento que todo o resto do mundo se encolhe e se rende e se aperta nas paredes para elas existirem? Bem assim.

Eu tratava meus dentes com a mulher dele, uma lady chiquérrima delicada e doce que se vestia de linho puro, usava perfume francês, falava mansamente e adorava uma prosinha cult logo após a consulta, prosinha que ela temperava luxuriosamente com um bom cigarrinho e um café, duplo pecado para ortodoxos odontólogos.

Pois, como tudo na vida hoje em dia, os saberes ficando apartados uns dos outros, a ciência acaba nos rifando entre uma variada gama de profissionais tão tão tão especializados que a gente se sente em um açougue, com as partes penduradas na sala de espera, aguardando nos ganchos que um pedaço da gente vá ser atendido pelo especialista enquanto o resto de nós continua ali, dependurado, como se não pertencesse ao universo do corpo inteiro.

Um despautério, no meu humilde e leigo entender. Penso que os profissionais ficaram meio burros, se a palavra não soar pesada demais para as suscetibilidades phisicians. Como assim, só entendem daquele centímetrozinho quadrado ali? Se passar um milímetro pro lado de lá, já olham pra gente com olho branco avisando: - isso não é minha especialidade, você precisa consultar um especialista em xptoite.

Voltando ao urso, minha linda dentista sua esposa não atendia aquela especialidade de tratamento de prótese e disse que ia me passar então para o marido, um expert na área.

Acatei. No dia do primeiro tratamento, estou eu lá na cadeira de dentista aguardando o tal doutor - que eu nunca tinha visto mais gordo, diga-se - já com aquela correntinha ridícula no pescoço prendendo um babador mais ridículo ainda - e me adentra a sala o dito cujo urso, esbaforido, resfolegante feito um Scania em ladeira.

Espichei o olho meio de canto me preparando psicologicamente para o momento Hagar em que um sujeito enfia a mão na boca da pessoa sem a menor cerimônia e inspeciona, futuca, espia, se esgueira pelas gengivas afora e a pessoa tem que ficar ali, bege, fazendo de conta que nada está acontecendo, apenas aquela curra socialmente permitida e - digo mais! - não apenas permitida como encorajada a ser praticada no mínimo uma vez ao ano. Isso sem falar na tortura que todos, rigorosamente todos os dentistas fazem com seus pacientes que é falar sem parar e perguntar coisas que os coitados só podem responder grunhindo ou, quem sabe até, em Libras.

Tudo de delicado, fino, requintado e suave que sua mulher representava, o urso contrariava. A começar pelo espaço que ocupava no exíguo consultório. Com certeza, havia ali um sujeito com três dígitos de peso. Em vez da cara harmoniosa da esposa, um rosto que era uma lua - cheia, claro! - arrodeado de pelos por todos os lados, de modo que o que surgia para o indefeso paciente era um par de olhos afogados debaixo de duas hirsutas sobrancelhas e um nariz meio rosado fazendo vento pra dentro e pra fora. Vento norte, por sinal.

Em vez do elegante tailleur de linho, um jaleco de poliester desabotoado e por baixo uma camisa mal enjambrada com um big tufo de pelos exuberantes se salientando pra fora da gola, em tudo revelando o ser quase das cavernas com quem minha querida dentista tinha se casado.

Ele entrou no consultório esbaforido, largou suas coisas num balcão, lavou as mãos, calçou as luvas de borracha e a primeira coisa que fez foi apertar um botão que deitou a minha cadeira 100% na horizontal, talqualzinho uma cama, ops! eu pensei. Quando vi, o Baluzão colocou com a maior sem-cerimônia do mundo os dois cotovelos em cima dos meus seios, abriu aquele bocarrão escondido debaixo dos pelos do bigodebarba e, sem dizer oxalámeupai, recebeu um Pavarotti.

Não. Não foi assim um pavarottizinho inocente qualquer, tipo O sole mio. Nada! O que Balu mandou ver foi a fina flor erotizada de um samba-canção do compositor carioca Bororó chamado nada mais nada menos que Da Cor do Pecado: -Esse corpo moreno, Cheiroso e gostoso, Que você tem!...Pode imaginar a cena? Você ali deitado, o cara deita meio corpo em cima do seu peito e manda ver no gogó que o seu corpo moreno é cheiroso e gostoso? Puta susto. Meu Deus, alguém me tire daqui, este cara deve ser um celerado! 

Indiferente ao meu pavor, ele continuou, escarafunchando lá no fundo dos meus molares. Escarafunchando e cantando: É um corpo delgado, Da cor do pecado, Que faz tão bem! 

Transida de susto e com dificuldade até de respirar pela pressão que o hulk fazia em cima do meu diafragma, espiei como podia para o fundo do consultório e, aliviada, enxerguei no lado oposto da cadeira-cama a assistente da minha dentista, com a cara estranhamente normal, como quem não está vendo nada de mais. Me injuriei: - Mas que pouca vergonha desse homem, se engraçar desse jeito pra uma paciente da mulher dele e ainda por cima, na frente da secretária! Será que são cúmplices?- cogitei, horrorizada.

Com sua potente voz de Barbeiro de Sevilha e cavaleiro rusticaníssimo,  ele nem tchum aos meus calados ais. E continuava: Esse beijo molhado Escandalizado que você me deu Tem sabor diferente Que a boca da gente Jamais esqueceu! 

Àquelas alturas eu já tinha morrido dez vezes e a minha boca, como na música, também jamais ia esquecer, quando afinal ele parou de cantar e, pela primeira vez em quinze minutos que pareceram quinze dias, falou com voz de gente normal:  - Muito bem, agora vamos fazer um molde pra recompor a capa deste molar aqui. Ahhhhh, bom, um  molde! - pensei, louca pra dar um empurrão nele e sair pela Augusta Colômbia Europa Cidade Jardim Faria Lima Marginal Pinheiros afora gritando: - Tira os cotovelos daí, seu Scania Vabis dos infernos!

( Graça Craidy) 

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2 comentários:

  1. Lilita Figueiredo escreveu:

    Mas a história não acaba! E pós molde, dimódi o que?

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    1. ah, pós molde eu fiz o tratamento e fiquei amiga dele, ele era super engraçado. mas aí já não tem mais graça de contar aqui...

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