

Naquela noite, resolvi aportar no Vinha D'Alho. No minúsculo palco meio escuro, o contrabaixista Tenison Ramos arriscava a voz em um Jorge Ben quase inédito: Rita Jeep, Rita você é um barato, tremendamente feminina, por você eu faço um trato, um trato de comunhão de bens. Sentei. Um bom cálice de cabernet. Um gole. E apertei os olhos pra enxergar melhor na meia-luz.

Enxerida, como sempre, que quem anda por aí sozinha não pode se dar ao luxo de não puxar assunto com desconhecidos, puxei. - Compondo? O cabeludo se vira pra trás e confirma. -Ahã! Um jingle que criei pra calça Lee. Ah, pensei, um jinglista? Não é bem um músico. Tá mais pra publicitário, como eu, eu pensei. Não é que jinglista não seja músico. É. Mas um músico assim meio escravo de jó, de encomenda*.

O tal cabeludo tinha os dentes da frente meio separados e por ali gorgolejavam rajadas de histórias compridas e fascinantes, que percorriam trilhas andinas na troupe do famoso teatro experimental andante Living Theatre, saindo de São Paulo de um primeiro lugar no Festival Internacional da

Naquela longa madrugada, recebi os ventos novos e únicos de um viajeiro que me trazia notícias do lado de lá, eu que tinha o secreto desejo de virar para sempre cidadã do mundo, que já havia estudado um mês na Inglaterra e passado outro mês viajando pela França, Espanha e Itália, adivinhava no cabeludo o emissário de um universo aventureiro que me atraía desde os tempos em

Infelizmente para mim, no entanto, a recíproca não foi verdadeira. Eu certamente não tinha nem a metade das histórias pra contar, nós dois éramos como aquele samba do Nelson Cavaquinho, ele a lua, eu o sol. Tudo o que nele sobejava mistério, sombra, escuridão, entranha, em mim se rasgava desbragado, luz, vidro lavado, palavra dita. A maldição de uma furiosa atração por aquele diablo negro me paralisou o sangue e não teve santo que me desviasse do mau caminho. A mim só me restava segui-lo. Ou pior, persegui-lo.

Não sei o que aconteceu direito, só sei que conquistei a família dele. E a ele nada mais restou senão obedecer à sua mãe e dar uma chance à essa menina de família - sim, por mais que eu louqueasse, nunca perdi esse ar ijuiense de filha da dona Sybilla - tão boazinha, trabalhadeira e que a gente vê que é sincera e gosta de ti, guri, larga de ser bobo, vive enfiado com essas hippies por aí!


Nós nos amávamos como amam os amantes de shakespeare, os desesperados de gardel, os ensandecidos de agustin lara, os trágicos de lupicínio. Nossa vida era um tango, um drama, um bolero, nossas noches, de ronda, nossos besos nostalgias de borrar los besos de otras bocas. E de nada adiantou a mãe dele aconselhar, contemporizadora: - casa duma vez com a Sofia Loren (imagina, ela me chamava de Sofia Loren!) e enche essa casa de narigudinho, meu filho! No final, nem o amor nos salvou.

Sim, era eu. Aquela. A namorada analisada por sobre o divã. (Graça Craidy)
*Como se até o grande Mozart não houvesse composto por encomenda, aliás, mais certo dizer que o normal em sua época era compor por encomenda. O sociólogo alemão Norbert Elias inclusive, no livro que escreveu sobre Mozart - Mozart: sociologia de um gênio ( Zahar: 1994) - conta que naquela época músico só trabalhava por encomenda. E mais: que era um mero empregado assalariado da nobreza, integrante do corpo de funcionários dos castelos no mesmo nível dos cozinheiros, copeiros, motoristas, camareiras etc. Zero de privilégio. Mozart aliás tentou romper com isso e morreu na miséria. Já Beethoven, por sua vez, viveu muito bem de vender suas partituras num momento histórico propício em que a burguesia alemã se estabelecia e, com uma certa autonomia financeira advinda do trabalho, comprava seu acesso à boa música da elite.
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Maria Cristina Barriquello Wayhs escreveu:
ResponderExcluirAdorei !!!!
Henrique Mendel escreveu:
ResponderExcluirQuerida Graça vc é uma caixinha de surpresas sempre! :D
Duas novidades para mim hoje: achei que essa canção era da dupla Kleiton & Kledir; a outra que vc era "o sujeito" do refrão... hehehe
Bjs
Patrizia Donatella Streparava escreveu:
ResponderExcluirAi que lindeza!Conheço e adoro a música e nem com reza brava lembro do nome do cantante! mas vou já descobrir no you tube.
Hermes Aquino, Patrizia. Quem fim levou, conte Gracinha? Desistiu da música?
ResponderExcluirpelo contrário, conte...este ano ele voltou com tudo, fazendo shows no Santander Cultural, no Ocidente etc e acaba de relançar os dois primeiros discos dele. continua ótimo! ;-)
ExcluirCirce Burmann Viecili escreveu:
ResponderExcluirLembrei desse namoro. Se não me falha a memória eu os vi em Ijuí.Beijinhos Graça.
Tati Ch escreveu:
ResponderExcluirGostei imenso Graca!!! justo li agora , nesta noite de "lua azul" , lua cheia pela segunda vez no mês. Que viagem...
Jussara Moura escreveu:
ResponderExcluirSENSACIONAL ESTE ROMANCE , Graça !!! Marcou época e deixou um saldo significativo. Quem não lembra da "nuvem passageira..??? Estou até cantarolando. Valeu a pena ser Musa inspiradora. O texto está altamente inspirado !Parabéns !!!
JFinatto escreveu:
ResponderExcluirAlém de tudo, musa!
Que moral!
Abraço.
JF
Jose Carlos Piedade escreveu:
ResponderExcluirGraça querida, muito bom!
Obrigado,
JCP.
Gracinha! Muito linda a sua história.
ResponderExcluirSemana passada, uma ex namorada ( hoje casada) descobriu meu telefone e na ausência do oficial, ficou de assunto interminável, invadindo a madrugada. No meio da conversa, ela pergunta pra mim: Ivan, você lembra qual era a música que marcou nosso relacionamento? Branco total. Eu disse que lembrava de várias (mas nenhuma específica.) E ela disse: Nuvem passageira. kkkk...
Beijão.
Ivan Caires
Paulo BN escreveu:
ResponderExcluirGraça:
Achei sensacional o texto sobre o teu namoro com o Hermes Aquino.Teu texto está cada vez melhor: estilo solto, original, distanciamente crítico, uma beleza.
Bjs e parabéns.
Paulo BN
Christa Berger escreveu:
ResponderExcluirgraça querida, que lembranças mais lindas saem da tua cabeça e vão parar no blog. Adoro e nem te digo nesta vida louca que me puxa prá tudo que é lado.
Marly Revuelta escreveu:
ResponderExcluirFui procurar no Google quem era o autor da "Nuvem passageira" pois me lembrava apenas da musica. é verdade tudo isso Gracinha?? Se for verdade, vc nunca me contou esta passagem da tua vida boemia. Eu nunca sei até onde é verdade o que vc conta e até onde é ficçao. Mas sejalaoquefor, adorei!!
Se vc me permite une pequena correçao, pas de problème e nao problem.
Grande beijo querida e continue escrevendo. Adoro te ler!
Nao vi ainda os teus desenhos. Vou ja voltar para o teu blog modi xeretar um pouco mais tuas artes...
E eu conheci essa Graça. Saudades.
ResponderExcluirTu conheceste, sim, Aldinho! Trabalhamos juntos acho que mais de 5 anos, nao? E ríamos muito, lembra? Saudades.
ExcluirTu, Kundry, Narinha, Maninha, Fachel, Cirano, Marino, Ibis(!!!) era uma festa....-)
ExcluirGuilherme Carvalho escreveu:
ResponderExcluirgraça, muito bom os textos do teu blog, nunca tinha lido, uma aula
Hermes Aquino escreveu:
ResponderExcluirGaki querida. Estou chegando do Rio onde me apresentei em dois lugares diferentes: quiosque da Globo, em Copacabana e Teatro do SESI, no Centro da city. Me saí muito bem, os cariocas cantaram comigo, de peito aberto. Que coisa, Nuvem Passageira está intacta, novíssima e mais amada que nunca.
Que luxo minha linda! Texto beleza pura. Alguns pormenores trocados não deslustram em nada a pureza e a beleza do teu escrito. Obrigado por lembrar com tanto afeto (e distanciamento lúcido) nossa vivência juntos.
Coincidência sobre música de encomenda: comentávamos, lá, sobre a imensa obra contra a ditadura que, de alguma forma, também soava de encomenda. Quem encomendou a Nuvem? (risos).
Beijo
Hermes
Moisés Mendes escreveu:
ResponderExcluirmuiiiiiito bommmmmmmmmmmmmm.