Eu tinha 24 anos e era a maior boêmia da madrugada porto-alegrense. Se me batesse um vento norte de sair tarde da noite, mesmo que já estivesse deitada na cama pra dormir, de pijamão e dente escovado, pas de problème, monsieur! Levantava, vestia uma roupa bacana, dava tchau pro meu grande irmão caçula - que não falava um A, acostumado com minhas esquisitices impulsivas - pegava a minha super Brasília azul e lá me ia bem bela João Pessoa afora, rumo aos meus barzinhos favoritos, na Cidade Baixa: ou ao Big Som ou ao Vinha D'Alho. Ambos com música ao vivo, que sem música ao vivo minha alma se desidratava. Daí a urgência.
Sim, sim, sozinha. Principalmente nessas noites assim em que eu resolvia sair a la loca. O ritual de chegar era sempre o mesmo. Oi,oi, uma garrafa de vinho tinto seco e ficava ali, curtindo, cantando junto, dando uma canja no palco ou, muitas e muitas vezes, me dilacerando em poesias inevitavelmente derramadas nos guardanapos, sangrando desamores, pasmos e fugidias epifanias.
Naquela noite, resolvi aportar no Vinha D'Alho. No minúsculo palco meio escuro, o contrabaixista Tenison Ramos arriscava a voz em um Jorge Ben quase inédito: Rita Jeep, Rita você é um barato, tremendamente feminina, por você eu faço um trato, um trato de comunhão de bens. Sentei. Um bom cálice de cabernet. Um gole. E apertei os olhos pra enxergar melhor na meia-luz.
Na mesa da frente, um moreno alto magrão, cabeludo, bigode, um tipo bonito meio hippie, ao redor de 27 anos, conversava animado com um negro elegante mais velho, jeitão de mestre. O cabeludo elétrico mostrava ao outro partituras de músicas. Me interessei. Músicos! Adoro essa raça. Me representava que ele, o cabeludo, queria saber do mestre se o arranjo da música estava certo, se podia ficar melhor, se. Coisas assim de semibreves fusas e confusas, imaginei.
Enxerida, como sempre, que quem anda por aí sozinha não pode se dar ao luxo de não puxar assunto com desconhecidos, puxei. - Compondo? O cabeludo se vira pra trás e confirma. -Ahã! Um jingle que criei pra calça Lee. Ah, pensei, um jinglista? Não é bem um músico. Tá mais pra publicitário, como eu, eu pensei. Não é que jinglista não seja músico. É. Mas um músico assim meio escravo de jó, de encomenda*.
Aquela noite não escrevi poema nenhum, encantada com a sua prosa apaixonante. Ele falava e gesticulava e ria ria ria um riso de gato de alice relampejando na noite, os olhos arregalados como quem acaba de descobrir a vida. Ele parecia um pirata, um mosqueteiro, ele não era desse mundo. Eu tinha que trabalhar no outro dia - era redatora no Marketing da RBS - mas nem via a hora passar.
O tal cabeludo tinha os dentes da frente meio separados e por ali gorgolejavam rajadas de histórias compridas e fascinantes, que percorriam trilhas andinas na troupe do famoso teatro experimental andante Living Theatre, saindo de São Paulo de um primeiro lugar no Festival Internacional da Canção com uma música que eu não conhecia chamada Flash, em parceria com uma Laís, antes porém tocando num grupo gaúcho cover dos Beatles com Chaminé, Claudio Vera Cruz e o baterista que esqueci o nome e acabando por dormir, na volta de todas aquelas peripécias, em cima de uma porta tornada cama no apartamento da sua família na folclórica rua André da Rocha - para horror de sua amorosíssima mãe dona Maria, que não se conformava com aquela hippiezice besta do filho. Pra que isso de dormir em porta dura, onde já se viu?
Naquela longa madrugada, recebi os ventos novos e únicos de um viajeiro que me trazia notícias do lado de lá, eu que tinha o secreto desejo de virar para sempre cidadã do mundo, que já havia estudado um mês na Inglaterra e passado outro mês viajando pela França, Espanha e Itália, adivinhava no cabeludo o emissário de um universo aventureiro que me atraía desde os tempos em que eu frequentava a Biblioteca Municipal de Ijuí e me deleitava com a descrição de outros mundos, mansardas, quejandos, alhures, quetais. Eu estava pregada na cadeira. Sabia que tinha que ir embora, amanhã já era hoje, mas quê. Caí de quatro e saí pastando pelo cabeludo. Uga! Buga!Uga! Buga!
Infelizmente para mim, no entanto, a recíproca não foi verdadeira. Eu certamente não tinha nem a metade das histórias pra contar, nós dois éramos como aquele samba do Nelson Cavaquinho, ele a lua, eu o sol. Tudo o que nele sobejava mistério, sombra, escuridão, entranha, em mim se rasgava desbragado, luz, vidro lavado, palavra dita. A maldição de uma furiosa atração por aquele diablo negro me paralisou o sangue e não teve santo que me desviasse do mau caminho. A mim só me restava segui-lo. Ou pior, persegui-lo.
Cansada de aguardar seu telefonema que não chegava nunca, me toquei desesperada certa noite para a rua André da Rocha e irrompi em prantos na casa da mãe dele, onde morava a irmã, ele e a mãe, e chorando feito uma ovelha desvalida confessei minha mercê, meu descontrolado afeto, minha paixão sem métrica pelo filho e irmão, me acudam, pelamordedeus! Talvez eu vislumbrasse ali a porta para uma nova percepção, bem como queria um autor da época - Castañeda - apologizando as drogas como ponte para novos mundos. Pois minha droga era o tal cabeludo.
Não sei o que aconteceu direito, só sei que conquistei a família dele. E a ele nada mais restou senão obedecer à sua mãe e dar uma chance à essa menina de família - sim, por mais que eu louqueasse, nunca perdi esse ar ijuiense de filha da dona Sybilla - tão boazinha, trabalhadeira e que a gente vê que é sincera e gosta de ti, guri, larga de ser bobo, vive enfiado com essas hippies por aí!
E assim, sob as bênçãos maternas e fraternas, começamos a namorar. Foi maravilhosamente terrível. Ou terrivelmente maravilhoso? Um dia era o paraíso, o outro o mais profundo inferno. Do mesmo jeito que era apaixonado, o cabeludo era ciumentíssimo. Daqueles que você vem caminhando de mãos dadas na rua e ele estanca, de repente, invocado com um pobre rapaz displicentemente encostado numa parede; - que foi, cara, que que tá olhando pra minha mulher? Socorro! Eu nunca tinha visto aquilo antes. Pensei que podia controlar. Mas era pura onipotência. Cheguei até a voltar para a terapia, mas foi em vão. Eu não podia. Mesmo que todas as noites, quando ele ia para a sua casa voltando da minha, na Salgado Filho, e descendo a João Pessoa em direção à André da Rocha, me ligasse do orelhão que tinha na curva da praça e me desse o último amoroso tchau antes de desaparecer no breu, eu cuidando dele na sacada. E eu fazia massa de lasanha com as mãos e colocava em prática o livro de receitas da dona Benta que ele me deu e até bordar eu bordei no bolso da jaqueta dele um colorido sweet heart. Mesmo assim.
Vivemos três anos e meio de uma intensa paixão entremeada de brigas e reatamentos, risadas loucas e ternas promessas, embates antagônicos de duas paralelas que nuncanuncanunca pareciam se encontrar, nem lá longe no fim do universo onde até as mais obscuras paralelas se encontram. E depois tinha o fuso horário, tão de pé quebrado. Quando eu tchum na cama, como canta o Chico, ele tcham no palco. Eu vivia com olheiras cada vez mais escuras de tanto não dormir.
Nós nos amávamos como amam os amantes de shakespeare, os desesperados de gardel, os ensandecidos de agustin lara, os trágicos de lupicínio. Nossa vida era um tango, um drama, um bolero, nossas noches, de ronda, nossos besos nostalgias de borrar los besos de otras bocas. E de nada adiantou a mãe dele aconselhar, contemporizadora: - casa duma vez com a Sofia Loren (imagina, ela me chamava de Sofia Loren!) e enche essa casa de narigudinho, meu filho! No final, nem o amor nos salvou.
Mas nem tudo foi só pero que no. Teve também muito pero que sí. Nosso amor foi pródigo em inspiração, fantasias, risos, guisos. E rendeu versos, rimas, rocks e até fados. E foi para mim que aquele cabeludo que um dia apareceu em minha vida compôs várias músicas mais tarde grandes sucessos, uma delas inclusive, trilha de novela da Globo, que faz bonito até hoje. Qual? Só lhe conto o refrão: - eu sou nuvem passageira que com o vento se vai, eu sou como um cristal bonito que se quebra quando cai...
Sim, era eu. Aquela. A namorada analisada por sobre o divã. (Graça Craidy)
*Como se até o grande Mozart não houvesse composto por encomenda, aliás, mais certo dizer que o normal em sua época era compor por encomenda. O sociólogo alemão Norbert Elias inclusive, no livro que escreveu sobre Mozart - Mozart: sociologia de um gênio ( Zahar: 1994) - conta que naquela época músico só trabalhava por encomenda. E mais: que era um mero empregado assalariado da nobreza, integrante do corpo de funcionários dos castelos no mesmo nível dos cozinheiros, copeiros, motoristas, camareiras etc. Zero de privilégio. Mozart aliás tentou romper com isso e morreu na miséria. Já Beethoven, por sua vez, viveu muito bem de vender suas partituras num momento histórico propício em que a burguesia alemã se estabelecia e, com uma certa autonomia financeira advinda do trabalho, comprava seu acesso à boa música da elite.
SE VOCE GOSTOU DESTE POST, TALVEZ SE INTERESSE POR ESTE.
Sim, sim, sozinha. Principalmente nessas noites assim em que eu resolvia sair a la loca. O ritual de chegar era sempre o mesmo. Oi,oi, uma garrafa de vinho tinto seco e ficava ali, curtindo, cantando junto, dando uma canja no palco ou, muitas e muitas vezes, me dilacerando em poesias inevitavelmente derramadas nos guardanapos, sangrando desamores, pasmos e fugidias epifanias.
Naquela noite, resolvi aportar no Vinha D'Alho. No minúsculo palco meio escuro, o contrabaixista Tenison Ramos arriscava a voz em um Jorge Ben quase inédito: Rita Jeep, Rita você é um barato, tremendamente feminina, por você eu faço um trato, um trato de comunhão de bens. Sentei. Um bom cálice de cabernet. Um gole. E apertei os olhos pra enxergar melhor na meia-luz.
Na mesa da frente, um moreno alto magrão, cabeludo, bigode, um tipo bonito meio hippie, ao redor de 27 anos, conversava animado com um negro elegante mais velho, jeitão de mestre. O cabeludo elétrico mostrava ao outro partituras de músicas. Me interessei. Músicos! Adoro essa raça. Me representava que ele, o cabeludo, queria saber do mestre se o arranjo da música estava certo, se podia ficar melhor, se. Coisas assim de semibreves fusas e confusas, imaginei.
Enxerida, como sempre, que quem anda por aí sozinha não pode se dar ao luxo de não puxar assunto com desconhecidos, puxei. - Compondo? O cabeludo se vira pra trás e confirma. -Ahã! Um jingle que criei pra calça Lee. Ah, pensei, um jinglista? Não é bem um músico. Tá mais pra publicitário, como eu, eu pensei. Não é que jinglista não seja músico. É. Mas um músico assim meio escravo de jó, de encomenda*.
Aquela noite não escrevi poema nenhum, encantada com a sua prosa apaixonante. Ele falava e gesticulava e ria ria ria um riso de gato de alice relampejando na noite, os olhos arregalados como quem acaba de descobrir a vida. Ele parecia um pirata, um mosqueteiro, ele não era desse mundo. Eu tinha que trabalhar no outro dia - era redatora no Marketing da RBS - mas nem via a hora passar.
O tal cabeludo tinha os dentes da frente meio separados e por ali gorgolejavam rajadas de histórias compridas e fascinantes, que percorriam trilhas andinas na troupe do famoso teatro experimental andante Living Theatre, saindo de São Paulo de um primeiro lugar no Festival Internacional da Canção com uma música que eu não conhecia chamada Flash, em parceria com uma Laís, antes porém tocando num grupo gaúcho cover dos Beatles com Chaminé, Claudio Vera Cruz e o baterista que esqueci o nome e acabando por dormir, na volta de todas aquelas peripécias, em cima de uma porta tornada cama no apartamento da sua família na folclórica rua André da Rocha - para horror de sua amorosíssima mãe dona Maria, que não se conformava com aquela hippiezice besta do filho. Pra que isso de dormir em porta dura, onde já se viu?
Naquela longa madrugada, recebi os ventos novos e únicos de um viajeiro que me trazia notícias do lado de lá, eu que tinha o secreto desejo de virar para sempre cidadã do mundo, que já havia estudado um mês na Inglaterra e passado outro mês viajando pela França, Espanha e Itália, adivinhava no cabeludo o emissário de um universo aventureiro que me atraía desde os tempos em que eu frequentava a Biblioteca Municipal de Ijuí e me deleitava com a descrição de outros mundos, mansardas, quejandos, alhures, quetais. Eu estava pregada na cadeira. Sabia que tinha que ir embora, amanhã já era hoje, mas quê. Caí de quatro e saí pastando pelo cabeludo. Uga! Buga!Uga! Buga!
Infelizmente para mim, no entanto, a recíproca não foi verdadeira. Eu certamente não tinha nem a metade das histórias pra contar, nós dois éramos como aquele samba do Nelson Cavaquinho, ele a lua, eu o sol. Tudo o que nele sobejava mistério, sombra, escuridão, entranha, em mim se rasgava desbragado, luz, vidro lavado, palavra dita. A maldição de uma furiosa atração por aquele diablo negro me paralisou o sangue e não teve santo que me desviasse do mau caminho. A mim só me restava segui-lo. Ou pior, persegui-lo.
Cansada de aguardar seu telefonema que não chegava nunca, me toquei desesperada certa noite para a rua André da Rocha e irrompi em prantos na casa da mãe dele, onde morava a irmã, ele e a mãe, e chorando feito uma ovelha desvalida confessei minha mercê, meu descontrolado afeto, minha paixão sem métrica pelo filho e irmão, me acudam, pelamordedeus! Talvez eu vislumbrasse ali a porta para uma nova percepção, bem como queria um autor da época - Castañeda - apologizando as drogas como ponte para novos mundos. Pois minha droga era o tal cabeludo.
Não sei o que aconteceu direito, só sei que conquistei a família dele. E a ele nada mais restou senão obedecer à sua mãe e dar uma chance à essa menina de família - sim, por mais que eu louqueasse, nunca perdi esse ar ijuiense de filha da dona Sybilla - tão boazinha, trabalhadeira e que a gente vê que é sincera e gosta de ti, guri, larga de ser bobo, vive enfiado com essas hippies por aí!
E assim, sob as bênçãos maternas e fraternas, começamos a namorar. Foi maravilhosamente terrível. Ou terrivelmente maravilhoso? Um dia era o paraíso, o outro o mais profundo inferno. Do mesmo jeito que era apaixonado, o cabeludo era ciumentíssimo. Daqueles que você vem caminhando de mãos dadas na rua e ele estanca, de repente, invocado com um pobre rapaz displicentemente encostado numa parede; - que foi, cara, que que tá olhando pra minha mulher? Socorro! Eu nunca tinha visto aquilo antes. Pensei que podia controlar. Mas era pura onipotência. Cheguei até a voltar para a terapia, mas foi em vão. Eu não podia. Mesmo que todas as noites, quando ele ia para a sua casa voltando da minha, na Salgado Filho, e descendo a João Pessoa em direção à André da Rocha, me ligasse do orelhão que tinha na curva da praça e me desse o último amoroso tchau antes de desaparecer no breu, eu cuidando dele na sacada. E eu fazia massa de lasanha com as mãos e colocava em prática o livro de receitas da dona Benta que ele me deu e até bordar eu bordei no bolso da jaqueta dele um colorido sweet heart. Mesmo assim.
Vivemos três anos e meio de uma intensa paixão entremeada de brigas e reatamentos, risadas loucas e ternas promessas, embates antagônicos de duas paralelas que nuncanuncanunca pareciam se encontrar, nem lá longe no fim do universo onde até as mais obscuras paralelas se encontram. E depois tinha o fuso horário, tão de pé quebrado. Quando eu tchum na cama, como canta o Chico, ele tcham no palco. Eu vivia com olheiras cada vez mais escuras de tanto não dormir.
Nós nos amávamos como amam os amantes de shakespeare, os desesperados de gardel, os ensandecidos de agustin lara, os trágicos de lupicínio. Nossa vida era um tango, um drama, um bolero, nossas noches, de ronda, nossos besos nostalgias de borrar los besos de otras bocas. E de nada adiantou a mãe dele aconselhar, contemporizadora: - casa duma vez com a Sofia Loren (imagina, ela me chamava de Sofia Loren!) e enche essa casa de narigudinho, meu filho! No final, nem o amor nos salvou.
Mas nem tudo foi só pero que no. Teve também muito pero que sí. Nosso amor foi pródigo em inspiração, fantasias, risos, guisos. E rendeu versos, rimas, rocks e até fados. E foi para mim que aquele cabeludo que um dia apareceu em minha vida compôs várias músicas mais tarde grandes sucessos, uma delas inclusive, trilha de novela da Globo, que faz bonito até hoje. Qual? Só lhe conto o refrão: - eu sou nuvem passageira que com o vento se vai, eu sou como um cristal bonito que se quebra quando cai...
Sim, era eu. Aquela. A namorada analisada por sobre o divã. (Graça Craidy)
*Como se até o grande Mozart não houvesse composto por encomenda, aliás, mais certo dizer que o normal em sua época era compor por encomenda. O sociólogo alemão Norbert Elias inclusive, no livro que escreveu sobre Mozart - Mozart: sociologia de um gênio ( Zahar: 1994) - conta que naquela época músico só trabalhava por encomenda. E mais: que era um mero empregado assalariado da nobreza, integrante do corpo de funcionários dos castelos no mesmo nível dos cozinheiros, copeiros, motoristas, camareiras etc. Zero de privilégio. Mozart aliás tentou romper com isso e morreu na miséria. Já Beethoven, por sua vez, viveu muito bem de vender suas partituras num momento histórico propício em que a burguesia alemã se estabelecia e, com uma certa autonomia financeira advinda do trabalho, comprava seu acesso à boa música da elite.
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