MEU QUERIDO DEMÔNIO DA TASMÂNIA


Ano passado, passei 40 dias em Roma, estudando pintura e frequentando museus e galerias de arte. Não me lembro em nenhum momento de o nosso mestre americano David Simon ter nos mandado evitar as salas de uma das maiores coleções de obras de Caravaggio do mundo, porque Caravaggio foi um sujeito de maus bofes, bêbado, litigante, criado nas ruas e acabou assassinando um opositor. Pelo contrário, o que lembro é ele exaltar a maestria de Caravaggio, a luz e sombra de Caravaggio, a inigualbilidade da arte de Caravaggio.
Da mesma forma, não tenho lembrança de haver colocado venda nos olhos para não enxergar a leveza e a perfeição das esculturas de Gian Lorenzo Bernini na Piazza Navona ou em outros palácios romanos, em protesto por o famoso escultor tão genial haver mandado um servo apunhalar o rosto de sua bela esposa que o havia traído com o irmão dele.
Quando fui ao Museu Rodin, em Paris, também não tive coragem de fechar os olhos e me privar da epifania com a Porta do Inferno, O Beijo, os Cidadãos de Calais, porque Rodin foi amante de sua assistente Camille Claudel que esculpia as mãos das figuras humanas do mestre e não assumiu jamais sua relação com ela, contribuindo para a sua internação em um manicômio até o fim de sua vida.
No Museu Picasso, desfilaram por mim todas as mil mulheres que Picasso seduziu e abandonou, uma por uma, ao longo de sua longeva carreira, em magníficas criações.
Confesso que tampouco consegui deixar de assistir os filmes dos velhos faunos Charles Chaplin, Polanski ou Woody Allen. E de me extasiar com a imaginação do outro velho fauno Lewis Carroll. Não consegui! Pela simples razão de que os filmes dos velhos faunos são geniais! E Alice no País das Maravilhas é uma maravilha.
Sou terrivelmente atraída também pelo texto ácido do bêbado Bukowski, pelas tragédias reveladoras do carola machista Nelson Rodrigues, pelas valquírias delirantes do antissemita Wagner.
Amo as comédias da amante de John Kennedy e rival de Jackie, Marilyn Monroe, aplaudo sem críticas os murais ciudadanos do mulherengo Diego Rivera, me rendo sem remédio às Fantasmagorias carregadas de tinta de Iberê Camargo que atirou em um desconhecido, matando-o.
Impossível não amar a guitarra chorosa de Eric Clapton, mesmo sabendo que ele casou com a mulher do seu melhor amigo George Harrison.
Como não se ajoelhar e tecer loas ao inigualável chiaroscuro do caloteiríssimo Rembrandt? E às lânguidas linhas do incomparável desenho do importunador de meninas Egon Schiele?
Como não viajar nas paisagens verdejantes de Paul Gauguin, mesmo sabendo que ele abandonou mulher e filhos à própria sorte para ir pintar no Tahiti? Ou deixar de admirar Rousseau, iluminista do Contrato Social e defensor das crianças que nascem puras mas a sociedade as corrompe, embora tenha largado num orfanato rigorosamente todos os seus 5 filhos, teúdo e manteúdo de uma rica dama da sociedade?
Talvez escape o poeta maior Drummond, embora ele tenha traído sua esposa e dedicado seus versos mais eróticos para a amante, ou Vinícius de Moraes que colecionava mulheres como quem junta figurinhas num álbum, e nos brindou com versos dos mais lindos do cancioneiro popular.
Como esquecer os gols e jogadas de gênio de dois grandes do futebol brasileiro, Pelé e Garrincha, que nos doaram taças e glórias, mesmo sabendo que um se recusou a reconhecer uma filha fora do casamento e o outro, alcoólatra, maltratava a nossa querida Elza Soares?
Julgando a obra pelo homem, a História da Arte, da Música, da Literatura, do Esporte perderia grandes criações. E a humanidade seria infinitamente mais pobre. Quem sabe, como sugere a jornalista Claire Dederer, em artigo no El País, a razão esteja com a esposa do escritor casca-de-ferida Ernest Hemingway, a correspondente de guerra americana Martha Gellhorn, que disse: "um homem precisa ser um grande gênio para compensar o fato de ser uma pessoa tão abominável.”
Para o escritor Marco Severo, autor de Os Escritores que Matei - também citado por Dederer -, a obra é sempre maior do que o seu criador pois “pode falar por toda uma comunidade, uma população. Um artista sozinho não tem esse poder. Não sem o respaldo da sua obra.”- ele conclui.
Por todas as razões que já apresentei, entendo também que é necessário separar a pessoa do artista. Depois que é parida, a obra pertence à humanidade, tem vida própria, é ampla e pública. A pessoa atrás do artista é humana, restrita e privada.
Portanto, quer os patrulheiros de plantão que me atazanaram ontem com o retrato que fiz do Pelé gostem, quer não, tirem seus apupos do caminho e não percam seu tempo tentando me pautar.
Eu sou livre, dona do meu processo, responsável por minhas escolhas e continuarei a fazer retratos e homenagens a todos que curto, quer os fiscais de obra alheia aplaudam, quer não.
Me admira que gente que me conhece há mais de 50 anos, por exemplo, tenha tido a petulância de vir me aconselhar no whats app com absurdos como “deixa o pessoal do futebol homenagear Pelé”, ou, pior, comparar Pelé a Ustra: “ É como dizer sim, Ustra foi um torturador, mas nada a ver.” Como alguém que me conhece há tanto tempo ainda não se deu conta que eu não tenho lado de montar?
Agradeço penhorada as sugestões de amigas e amigos empenhados em mais uma campanha de “ódio do bem”, mas, a não ser que eu peça a sua opinião, não venha me dizer o que você acha que é melhor para a minha vida. Vá cuidar da sua. E, por favor, seja ecológico. Não desperte o demônio da Tasmânia que mora dentro de mim. ( Graça Craidy)

Verde que não te quero verde



Que me perdoem os chimarristas militantes, chimangos e maragatos, amantes do mate herdado dos charruas que, dizem, não foram extintos, apenas se misturaram tanto com os chegantes que viraram os verdadeiro gaúchos. Mas tenham a santa paciência! Precisa mesmo levar o chimarrão a tudo que é canto como um apêndice de si, um RG miniatura, sem o qual não se sentem inteiros, capazes de existir sem ele?

Hoje, por exemplo, cruzei com dois rapazes vizinhos bem bonitinhos de máscara, todos aparatados para a lida chimarresca com térmica, bolsa e duas cuias de chimarrão - pra não se contaminarem, claro! - pegaram o carro e se foram, decerto a um parque, talvez o Germania aqui do lado, quiçá à Encol logo ali adiante. Estava eu embevecida com a cativante consciência dos rapazes, quando me veio a perguntinha fatal: - tá, duas cuias, que amor, duas máscaras, que catitos, mas e na hora de chupar a bomba, faz como? Enfia por baixo da máscara? Ou baixa a máscara só-um-pouquinho? Duvideó! A máscara deve ser só para antes e depois de cada chimarreada. Ou seja: meodeosss! Não é à-toa que entramos na bandeira vermelha, em Porto Alegre.

Uma vez fui assistir a um evento de palestras na Assembleia Legislativa e quando me dou conta, me caem os butiás do bolso: lá em cima, na mesa debatedora da chamada Casa do Povo, espaço maior das leis, nobre ágora do Estado, circulava uma cuia de chimarrão, bem bela, de mão em mão e todo mundo muito gaúcho, pelo jeito, se achando os mais charruas do planeta. E rrrrroncando a cuia, que, cá pra nós, é a coisa mais nojenta do hemisfério sul, parece aqueles velhos encatarrados à beira de de uma escarradeira prestes a se desencatarrarem. O pior é que é uma questão de honra: quanto mais roncado, mais honrado!

Outra vez, sentada em uma palestra na faculdade onde dava aula, aqui na ESPM, fiquei entre embevecida e estarrecida com o ritual de um rapazinho na minha frente que carregava aquelas malas engalanadas de chimarrão com tudo dentro. Pois o cuera não me fez um mate, montadito com erva e tudo, e morrinho e sabe-se la o que mais, em plena palestra, no de-cor-rer da palestra, enquanto o palestrante se desmilinguía lá na frente, ele se enchimarrou completo na platéia? E sem derrubar um grãozinho de erva, uma gotinha de água quente da térmica, no chão! De esvaziar o estoque de butiás! Mas não pode esperar uns minutinhos e fazer lá fora, nos bancos do pátio? Tem que ser dentro do auditório chique da ESPM, com cadeira de veludo, fina, bacana, civilizada? Taquiuspa, viu?

E não vou nem falar nos imprudentes que dirigem carro tomando chimarrão, loucos pra furar um olho com a bomba! Nem tampouco no cartazete que vi no maravilhoso e centenário teatro de Porto Alegre, o São Pedro, com seus chiquerésimos e gigantescos lustres de cristal, teto todo abobadado com pinturas artísticas e delicadas cadeiras de veludo: "proibido entrar com chimarrão e pipoca". Imagino a criatura embonitada, perfumada e maquiada, me saindo com esta: - não esquece o chimarrão, bem! Noujo!

O máximo do me-tapar-de-nojo aconteceu quando fiz uma viagem para o Egito e no grupo tinha um casal de gaúchos. Eu já morava em São Paulo há quase 20 anos, quer dizer, fazia tempo que não convivia com hábitos sulistas. A gente ali, naquele estupor das pirâmides - Quéops, Quéfren e Miquerinos, toda aquela mística atravessada por séculos de reinado - foram construídas em 2700 aC, imagina! - sem palavras para traduzir o encantamento que se apoderava de nossos corações, eis que ouço um ronco que me remeteu ao paralelo 30, sem escalas. Era o casal de gaúchos que não aguentou esperar chegar ao hotel pra tomar (e roncar!) seu chimarrão. Tinha que ser ali, bem na cara da Esfinge de Gizé! Não decifra, não, habiba. Devora logo, sem nem perguntar!

A verdadeira loira é a falsa

De falsa loira a verdadeira loira-platinada

Só ela, entre todas as loiras alemoas, austríacas, suecas ou polacas, escolhe ser loira. Não caiu do céu, não veio com o X + Y, não ganhou de mão-beijada. Plim! Nasci! Não. Ser uma falsa loira é coisa de caso pensado. Sofre-se muito para ser loira. Vendo todo aquele glamour, ninguém imagina. Apesar do imenso repertório popular que depõe contra as loiras, é preciso reconhecer. Ser loira de farmácia - como diz o povo - requer um caráter forte, uma determinação profunda, um estoicismo que só Zenão de Cítio. 

Pois há 32 anos, quando eu tinha 37 e morava em Sampa, após o final melancólico de um longo namoro, decidi que eu queria desmudar. Não mais uma reles castanha-clara, da categoria simplesinha que não fede nem cheira, a pessoa não é, nem é, não chega a ser uma morena, mas também não alcança ser loira. Quase um limbo, eu diria. 

Por isso, decidi dar um chute na genética. E optei. Eu queria ser loira. Mas não uma loira assim loirinha trigo, categoria agua oxigenada 15 volumes, misto de covardia. Já que eu ia mudar de RG, coragem, que fosse uma coisa heavy metal. Pavor de meio-termo! Mornice, eu? Jamé! Eu queria era ser loira roots, mesmo, Blondor aquele do pozinho roxo e a mais terrível das águas oxigenadas: a 30 volumes. Loiraça Belzebua, sabe como? Aliás, uma vez cruzei com uma moça loira e ela, bem simpática, murmurou cúmplice para mim: - ah, você também é loira 30 volumes? Demorei pra cair a ficha (no tempo que as fichas caíam...) Ah!!!

A primeira vez que pintei, o cabeleireiro não acreditou. Falei loira e o cara entendia loirinha. Falei loooooira e o cara entendia cenoura. Falei loira, pô, e o cara, necas! Foi um tal de pinta e repinta e repinta - tudo na mesma tarde -, que eu corri sério risco de ficar careca e o criatura de arrancar os próprios cabelos, porque cada vez que ele lavava a minha cabeça da tintura, ao ver aquele loiro colubiazol (agora eu peguei pesado, hein?) que eles adoram empurrar goela abaixo de algumas clientes - e que meu pai chamava debochando de cabelo tubiano -, eu só fazia que não e repetia: - loiro, criatura! O que mais eu posso dizer pra tu entender? Até que a criatura deu um grito jogando os braços para cima como quem entrega a alma a Deus e foi lá pro fundo se exclamando: - Minha nossa senhora, ela quer loiro pla-ti-na-do!

Simmm! Eu queria aquele loiro lindo da Kim Novak, da Marylin Monroe, até da Doris Day, vá! Deusas que povoaram os domingos de matinés da minha infância e juventude. Agora eu era heroína e o meu cavalo só falava inglês. Eu queria ser Um corpo que cai. Eu queria ser a loira que Os homens preferem. Castanha, agora, era só uma coisa que vinha do Pará. E pronto, deu, não se fala mais nisso!

Rapá, tinha dia que eu ia pintar o cabelo no salão e rezava umas ave-maria antes. Até descolorir o pobre do fio de cabelo são que nascia teimoso na indesejável cor castanho, aquilo ardia, mas ardia e ardia que até o pensamento lá pras bandas do hipotálamo coçava. Mardito Blondor! Aquilo era duma brutalidade sem par: numa tigelinha, misturava-se um saquinho do pó roxo Blondor com agua oxigenada 30 volumes e mexia-se. Era cousa do demônio preparando o fogo do inferno. Começava a borbulhar, nervoso, louco pra assassinar a cor natural do cabelo da pessoa mais louca ainda que se prestava ao satânico ritual.

Acho que segui nessa trilha da loira platinada por uma década, até o dia em que decretei - como dizia minha mãe - o meu sete de setembro e decidi voltar aos velhos tempos de mim e vestir de novo o meu casaco marrom.
Foi bom, também. A alminha imoral assossegou e segui incendiando de outros jeitos. Até o ano da suprema libertação de 2015, quando - já em Porto Alegre - decidi deixar o meu cabelo branco. Finalmente eu era de novo uma loira-platinada. Só que natural, sem Blondor e sem o menor sofrimento. 
Nada como o tempo pra gente ser feliz sem doer. Né?
( Graça Craidy)
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Arte é política












Outro dia tive um pequeno embate com alguns colegas das artes que defendem a higienização e assepsia da arte, alegando que ela deve ficar totalmente afastada da política, que arte não é de esquerda nem de direita, que política é uma coisa e arte outra e, principalmente, que devemos como grupo ficar longe da crítica das questões que envolvem a nossa realidade, seja política, econômica, cultural, sob pena de recebermos a pecha de petistas, lulistas, esquerdopatas e quetais.

Houve um momento, inclusive, que entrou em discussão a gigante mundial Greenpeace categorizada por eles como "político-partidária" - essa foi a expressão usada pelo colega - portanto, ele entende, não se deve debater nada com essa instituição, já que ela estaria comprometida com algum perigoso partido. Imaginei logo que fosse o partido das aves, das árvores, das águas, dos animais, dos biomas, enfim.

Diante do meu espanto, ouvi um indignado: Michelangelo era de esquerda? Leonardo da Vinci era de esquerda? Arte não é de esquerda nem de direita, proclamou bufando o meu litigante que aproveitou o ensejo e - cheio de razão como só os ignorantes ousam -  me mandou buscar informações para entender melhor.

E eu fui.

Pesquisando sobre o tema, encontrei um estudo primoroso sobre um texto do filósofo Adorno, como se sabe, um respeitado estudioso da cultura, que em sua chamada Teoria Estética (1969) não só  afirma que toda arte é política como identifica na esfera cultural a melhor instância da conscientização.

No artigo assinado pela filósofa Priscila Arantes, formada pela USP, a autora diz que, para Adorno, a estética é a única forma que nos resta para criticar o sistema social, uma vez que o sistema como um todo estaria dominado pela falsidade, expressão de uma pretensa harmonia que a ideologia burguesa finge existir:
- “é aqui, na obra de arte, que se preserva uma pequena área de verdade, aqui a crítica ainda é possível e é aqui que ela precisa ser feita” .

Adorno, segundo Arantes, preocupa-se com a arte deixando de ser o que é, de autônoma para se transformar em mercadoria, de cultura para se tornar valor de troca.

Na opinião adorniana,  a arte deve ser crítica, deve ser protesto contra a sociedade. E a tentativa de toda a Teoria Estética será então recuperar o caráter crítico da arte, único meio de ela continuar existindo, de passar de mera mercadoria, a ser de novo o que era antes: manifestação cultural.

Voltando aos colegas que desacreditam da relação arte-política, quero ressaltar que a História da Arte está repleta de exemplos de artistas que cederam seu talento à crítica, no passado e no presente.

O francês Delacroix e sua épica obra Liberdade entrega a vitória do povo francês contra um jugo real. O espanhol Picasso e sua deslumbrante Guernica entrega o abominável bombardeio alemão em conluio com os fascistas. O mexicano Diego Rivera entrega a opressão do invasor branco europeu sobre o povo nativo mexicano. A alemã Kathe Kollwitz entrega a fome, a viuvez e o desamparo que a guerra promove entre as mulheres e crianças. A sul-africana Marlene Dumas entrega a perseguição aos negros, na Africa. O brasileiro Cildo Meirelles entrega o real valor dos índios no Brasil: zero. O britânico Banksy entrega as barbáries da guerra sobre a humanidade. O brasileiro Portinari entrega a miséria do nordeste tupiniquim. O espanhol Goya entrega o fuzilamento de cidadãos inocentes. O chinês Weiwei entrega o descaso com refugiados. O brasileiro Gil Vicente entrega a impunidade dos poderosos. O francês Auguste Rodin entrega a rendição voluntária de seis ilustres cidadãos de Calais aos ingleses. O brasileiro Danubio Gonçalves entrega os horrores das charqueadas gaúchas e da escravidão. O holandês Hieronymus Bosch entrega os prazeres da carne a que os homens ambicionavam, impedidos pelas proibições religiosas.

Assim sendo, a próxima vez que formos discutir o assunto, sugiro que, como bons pesquisadores, partamos desse patamar, desse estado de arte, onde está provado e emoldurado que arte - como tudo, aliás - tem a ver, sim, com política.

O contrário é a alienação.

Fonte: http://revistaprincipios.com.br/artigos/40/cat/1662/arte-e-cr&iacutetica-social-em-adorno-.html

Receba as flores que te dou

Eu não sou ninguém pra falar, mas dado que volta e meia alguém me honra dizendo que quer fazer aula de aquarela comigo, vou me meter de pato a ganso e dizer umas coisinhas e outras.
Não. Aquarela não é algo que você devesse fazer se não gosta de desenhar. Porque - sim - aquarela tem a ver com mancha, mas, principalmente, tem a ver com gesto, ainda que gesto delicado. E gesto, antes de qualquer coisa, é desenho.
Não. Você não precisa se agarrar no pincel da aquarela como se fosse um lápis ou bóia salva-vidas, nem movimentá-lo tão cauteloso como se estivesse assinando uma escritura no cartório. Aliás, eu diria até que o verbo mais interessante para um pincel de aquarela é desagarrar, quase soltar, quase deixar ele seguir sozinho papel afora, comandante do seu pensamento poético visual.
Aquarelar não me parece ser pra gente guardada demais que adora transitar entre fronteirinhas muito bem demarcadas. Aquarelar é queimar a amarelinha com o pé, é transbordar de si e borrar os limites mostrando a língua para o certo, o correto e o deja vu. Ok, conheço alguns aquarelistas quase monges, mas cá pra nós, acho que a aquarela é tipo um espaço de seu alter ego onde eles se lambuzam do pecado da cor e da fluidez.
Aceite. Não é você que manda na aquarela. Ela é que manda em você. Así que, relaxe, meu bem, e entre no barquinho disposto a marolar e inclusive mergulhar se a canoa virar.
Pra mim, os aquarelistas se dividem entre os que seguram o pincel da metade pra baixo, agarraditos no más, crentes que mandam no pedaço, e os que seguram o pincel da metade pra cima, sabedores - como Paulinho da Viola - de que não é a gente que se navega, quem nos navega é o mar.
Eu, por exemplo, sou daquelas que segura o pincel da metade pra cima, mal e mal tocando no bichinho, pra ele nem notar que sou que estou ali a querer ensinar o caminho.
Não. Eu me ponho ali em cima feito passarinho no fio e fico levinha levinha esperando o vento me empurrar com a delicadeza de uma brisa de verão no mar da Bahia, empurra não empurrando, sabe como?
Quando eu aquarelo, me liquidifico. Sou água, água e deslizo suavemente pra lá e pra cá no papel, me rindo por dentro de imaginar pra onde aquilo tudo vai me levar.
E leva! Toda vez que me despreocupei com o porto de chegada, a viagem só me deu alegria. E água e água e água e desaforo de sim e de não pode, pode sim, até dar o clique
de que chegamos, afinal.
Às vezes a viagem é mais longa e mais lenta, outras é uma vertigem, quando foi, deu. Aceite que cada uma tem seu tempo. Minha mestrinha querida Ana Lovatto me domou só sussurrando uma única palavra: - sutileza, Graça!
Sei que muitos dos meus colegas e mestres vão me desdizer palavra por palavra, garantindo de pé junto que aquarelar é exatamente tudo que eu falei, só que ao contrário.
Pode ser, pode ser. Cada um deveria ter o direito de encontrar o seu próprio caminho na aquarela, assim ou assado, frito ou cozido. Só não concordo com aquarela apertada nas paredes do lápis, com pincel agarrado com força bruta, com o medo de "não ficar igual". E também não concordo que uma vez dado, o gesto da aquarela não pode voltar atrás. Pode, sim. Desde que você trabalhe sobre papeis com pelo menos 300 g. Deixa secar e começa de novo. E se não curtir, convide o senhor nanquim, o senhor pastel oleoso, o senhor lápis de cor pra participar.
Penso, como o mestre espanhol Miguel Coronado, que toda pintura tem que ir muito mais "allá de la realidad".


( Graça Craidy)

Palmas para Ana Luiza Bergmann

Neste fim-de-semana, Porto Alegre foi tomada pela poesia e pela brutalidade. 

De um lado, uma grande atriz do teatro gaúcho que se reapropria da nossa bandeira sequestrada pelos seguidores do que-diga e a desfralda em lugar sagrado - a Igreja das Dores, das nossas dores - clamando valentemente pelo expurgo da praga que assola o Brasil: o abominável bz. 

Ao mesmo tempo, em sua performance, ela fala em nome das mulheres índias abusadas, raptadas, oprimidas, personagens da peça que representou, em janeiro agora, no teatro Carlos De Carvalho, de nome Terra Adorada, onde repete a mesma cena da bandeira, denunciando o rapto e o abuso de centenas de mulheres índias pelos invasores do RS que as "laçavam" como animais e as levavam feito suas propriedades. 

Ana Luiza Bergmann é atriz teatral, professora de teatro e acaba de conquistar seu Mestrado em Artes Cênicas, pela UFRGS. 

Muita gente não entendeu, confundindo sua performace com a manifestação bolsonarista, por conta da - veja só! - bandeira. Os moralistas de cuecas torceram o nariz. As invejosas de sempre acharam feio. Os machistas de penis eretos a chamaram de baranga, tentando mais uma vez culpar a mulher pelo seu desejo e desfazer da sua capacidade de dizer e de pensar . 

Os bolsonaristas - brutos como sóem ser - foram além: tentaram bater nela e, em não conseguindo, esmurraram suas colegas e amigas, tirando sangue dos seus rostos com suas patas gigantescas, envergonhando todas as pessoas de bem. E pior: alguns a estão ameaçando de morte, um inclusive oferece recompensa! Arreda! Que o belo do bem vença essa feiúra disforme que nos ronda. 

Vade retro, capetão ! Viva Ana Luiza Bergmann!

(Graça Craidy)

Vender ou encantar?

Volta e meia - muito mais volta e meia que a minha paciência gostaria - alguém me cobra, com os olhos embaçados pela luxúria da mercadoria: - exposiçao, ok...mas, estás vendendo? Como se vender fosse a medida do sucesso de um artista. Como se vender fosse a função maior da arte. Como se vender fosse a vontade maior que movesse um artista. Depois de suspirar e respirar bemmm fundo, respondo que não. (Para a total decepção do interlocutor!) Respondo também que vender não é a minha meta. A minha grande meta, o meu desejo maior, a minha mais ambiciosa pretensão é tocar o Outro, encantar o Outro, mexer com o sentido do Outro, bolir no pensamento do Outro. Empurrar amorosamente o Outro pra dentro de si. Fazer o Outro se encontrar consigo mesmo no desvão da minha arte. Levantar questões que não estão sendo faladas. Chamar atenção para o não-dito, o não-visto, o não-mostrado. Encantar com a beleza das coisas do mundo. Encantar com a feiúra das coisas do mundo. Esse é o meu grande barato. Por isso gosto tanto de expor e por isso que exponho tanto. Só nos últimos 4 anos foram 45 exposições, das quais 20 individuais. Eu gosto de estar em contato com o Outro, gosto de fazer uma arte que é entendida por qualquer um que queira frui-la, gosto de praticar uma arte de compreensão sem pre-requisito. Venho da comunicação. Pra mim, toda mensagem emitida deveria poder ser decodificada pelo receptor, sem mistérios. Quanto a vender, bueno, de vez em quando até vendo e é bem bom. Cai que nem uma luva pra pagar algumas continhas. Só fico pensando, lá no fundão, que aquela obra vai ficar escondida, guardada, nunca mais vou ve-la, snif! Mas, enfim, também é mais dinheirinho pra comprar mais tinta, mais tela, mais material pra continuar a fazer o que amo. Tocar o Outro com a minha arte. Capice?
( Graça Craidy)

Identidade: Humana

EU SOU MULHER, NEGRA, AFRICANA, MAS A MINHA MELHOR IDENTIDADE VEM DE SER HUMANA. Assim começou o discurso da maravilhosa Graça Machel, moçambicana que inaugurou nesta segunda-feira o Fronteiras do Pensamento 2019, na Reitoria da UFRGS, e foi Ministra da Educação, na África, duas vezes: uma no governo de seu primeiro marido Machel, em Moçambique, outra no governo do seu segundo marido, Mandela, na África do Sul.
Graça Machel é uma humanista fantástica formada em Lisboa, que se vale das palavras sem metades, para dizer o que quer. É reta e direta. Falou que veio aqui para nos falar de coisas simples, porque a humanidade está precisando retomar o básico. O básico é reconhecer que somos todos iguais, independente da cor da pele, do sexo, da condição socioeconômica. E que todos merecemos o direito à dignidade contido no direito à igualdade. Que somos todos de uma grande e mesma família: a família humana. E que as nossas diferenças devem servir para nos enriquecer na troca, não para criar hierarquias.
Ela alerta para a ganância do homem que não se satisfaz com o suficiente e se mete numa empreitada desumana de acumulação que só tem trazido desigualdade e guerra e exacerbações do poder de uns sobre os outros. E que a pior das guerras é a contra a natureza, que se mostra "zangada" e nos avisa que pode acabar já já com o futuro dos nossos netos.
Graça Machel alerta ainda para a desigualdade das mulheres em rigorosamente todo o planeta, até nos países mais desenvolvidos: - "ninguém pode se gabar de haver acabado com a desigualdade das mulheres", ela lamenta, lembrando que ainda hoje - mesmo na Escandinávia - os salários homem/ mulher são diferentes, quando ambos cumprem a mesma função. "Só porque é mulher!"- ela enfatiza. E repete: "Só porque é mulher!".
Machel diz que ficou horrorizada com o corte anunciado nas nossas universidades federais, que jamais se deve podar a fonte do conhecimento, fonte também do potencial acesso à igualdade. Ela aconselha que nos juntemos em movimentos sociais e reivindiquemos e realizemos nossos anseios de igualdade e justiça. "Os donos do país somos nós, o povo, nós pagamos impostos para que nossos filhos sejam alimentados, tenham escola, saúde. Então, vamos unidos dizer para aquelas pessoas que estão lá - eleitas por nós-, que é assim que queremos, ou que não é assim que queremos. O apartheid foi derrubado com movimentos sociais," ela lembra.
Ela lamenta também a invisibilização do negro no Brasil, onde metade da população é de origem africana: "não são apenas males sociais - ela sublinha -, mas distorções profundas da igualdade que precisam mudar."
Ela fala muito em dignidade, dignidade é inviolável, indignidade é intolerável. "Quando os outros seres são tratados como coisas, privados da sua própria dignidade, é a nossa dignidade, como seres humanos, que é esmagada."
E, para finalizar, perguntada sobre o que ela aprendeu sobre poder quando partilhou os mandatos com dois grandes líderes como Machel e Mandela, Graça Machel respondeu que o verdadeiro poder deles vinha de sua humildade e de sua autoridade moral e que ambos consideravam o poder como nada mais que uma oportunidade de servir. ( Mandela, acredito, mais pacifista que Machel.)( A plateia aplaudiu Graça Machel de pé.)

Abundância



Alguns amigos meus ficam aflitos com o tanto de exposições que tenho feito, me aconselhando amorosamente a diminuir o ritmo. Então eu explico: são coleções que eu levei anos fazendo. Não foi de ontem para hoje. A coleção Livrai-nos do Mal, com 50 quadros sobre violência contra a mulher, por exemplo, levei 3 anos pintando. São mais de 1000 dias!  A coleção Ícones, venho fazendo desde 2012. São 5 anos de trabalho. Mais de 1800 dias.  Portanto, ninguém precisa se afligir. É construção cotidiana. Não é fábrica - como disse alguém. É elaboração, pesquisa, tentativa, erro, acerto. É a doce lida da arte que me fez ainda mais visceral, plural e compulsiva do que sempre fui. Sei que existe uma ala do mundo das artes que prefere se guardar e só se mostrar quando tudo estiver perfeito, nos trinques, brilhando. Acho bacana. Respeito. Mas eu sou da outra ala. Mais quântica. Passado, presente, futuro, tudo junto agora.  E também não acredito muito em perfeito-nos trinques -brilhando. Além disso, vou completar 66 anos daqui a um mês. Sinceramente, você acha, mesmo, que eu tenho tempo pra me guardar para a eternidade?
(Graça Craidy)

Bravos negros do RS

Li que, na época da escravidão no Brasil, os negros que foram mandados para o Rio Grande do Sul eram escolhidos a dedo entre os que mais fugiam, os que mais se rebelavam, os que mais desobedeciam. E que serem transferidos para cá era uma espécie de castigo, de punição por sua não conformidade com a condição de escravos.
Li também que, justamente por isso, por sua sabida valentia e espírito de luta, eram mantidos em duro controle por feitores e mandaletes e que havia nos ambientes de trabalho - como nas charqueadas, por exemplo, tão bem retratadas por Danubio Gonçalves - uma altíssima tensão entre os opressores e os oprimidos, dado que a qualquer momento poderia irromper uma revolta e os negros escravos, armados de seus instrumentos de trabalho cortantes e letais, atacar aqueles que os dominavam.
Li ainda em pesquisa sobre a mulher escrava no Rio Grande do Sul, através da análise de Boletins de Ocorrência da época, que muitas reagiram com violência aos maus tratos de seus patrões, inconformadas com tanto trabalharem para nada receber além de opressão.
Li também que só no Rio Grande do Sul existem hoje 130 quilombos, como todos sabem, as comunidades fundadas por escravos fugidos que funcionavam como pequenas aldeias autossuficientes em alimentação e protegidas dos capitães do mato.
Li , claro, sobre os Lanceiros Negros, bravo batalhão de soldados negros que lutou pelos Farrapos em troca de alforria e foi traído e dizimado por seus contratantes na Batalha dos Porongos.
Li, da mesma forma, que o chamado Dragão do Mar, escravo almirante que liderou a Revolta das Chibatas, em 1910 (21 anos depois da abolição, portanto) contra a punição dada pelos oficiais brancos da marinha aos marinheiros de baixa patente, a maioria negro ou mulato, era o gaúcho João Cândido Felisberto, nascido em Encruzilhada do Sul, imortalizado na música Mestre-Sala dos Mares, de Aldir Blanc e João Bosco.
Diante de tantas manifestações de grandeza e bravura, e conhecendo hoje muitos dos seus descendentes, na música, na arte, por onde transito - como a imortal e brava Magliani -, chego à conclusão que os negros gaúchos são muito valentes porque sua descendência foi forjada na rebeldia histórica dos seus antepassados.Seus herdeiros trazem no sangue essa inconformidade com a desigualdade e com a opressão.
E assim, lembrada pelo grande Aldir, renovo minha admiração e canto também: - Salve o navegante negro que corre no sangue de cada negro gaúcho herdeiro de sua valentia, montado na sua razão.
( Graça Craidy)

DESTAQUE

MEU QUERIDO DEMÔNIO DA TASMÂNIA

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