Arte é política












Outro dia tive um pequeno embate com alguns colegas das artes que defendem a higienização e assepsia da arte, alegando que ela deve ficar totalmente afastada da política, que arte não é de esquerda nem de direita, que política é uma coisa e arte outra e, principalmente, que devemos como grupo ficar longe da crítica das questões que envolvem a nossa realidade, seja política, econômica, cultural, sob pena de recebermos a pecha de petistas, lulistas, esquerdopatas e quetais.

Houve um momento, inclusive, que entrou em discussão a gigante mundial Greenpeace categorizada por eles como "político-partidária" - essa foi a expressão usada pelo colega - portanto, ele entende, não se deve debater nada com essa instituição, já que ela estaria comprometida com algum perigoso partido. Imaginei logo que fosse o partido das aves, das árvores, das águas, dos animais, dos biomas, enfim.

Diante do meu espanto, ouvi um indignado: Michelangelo era de esquerda? Leonardo da Vinci era de esquerda? Arte não é de esquerda nem de direita, proclamou bufando o meu litigante que aproveitou o ensejo e - cheio de razão como só os ignorantes ousam -  me mandou buscar informações para entender melhor.

E eu fui.

Pesquisando sobre o tema, encontrei um estudo primoroso sobre um texto do filósofo Adorno, como se sabe, um respeitado estudioso da cultura, que em sua chamada Teoria Estética (1969) não só  afirma que toda arte é política como identifica na esfera cultural a melhor instância da conscientização.

No artigo assinado pela filósofa Priscila Arantes, formada pela USP, a autora diz que, para Adorno, a estética é a única forma que nos resta para criticar o sistema social, uma vez que o sistema como um todo estaria dominado pela falsidade, expressão de uma pretensa harmonia que a ideologia burguesa finge existir:
- “é aqui, na obra de arte, que se preserva uma pequena área de verdade, aqui a crítica ainda é possível e é aqui que ela precisa ser feita” .

Adorno, segundo Arantes, preocupa-se com a arte deixando de ser o que é, de autônoma para se transformar em mercadoria, de cultura para se tornar valor de troca.

Na opinião adorniana,  a arte deve ser crítica, deve ser protesto contra a sociedade. E a tentativa de toda a Teoria Estética será então recuperar o caráter crítico da arte, único meio de ela continuar existindo, de passar de mera mercadoria, a ser de novo o que era antes: manifestação cultural.

Voltando aos colegas que desacreditam da relação arte-política, quero ressaltar que a História da Arte está repleta de exemplos de artistas que cederam seu talento à crítica, no passado e no presente.

O francês Delacroix e sua épica obra Liberdade entrega a vitória do povo francês contra um jugo real. O espanhol Picasso e sua deslumbrante Guernica entrega o abominável bombardeio alemão em conluio com os fascistas. O mexicano Diego Rivera entrega a opressão do invasor branco europeu sobre o povo nativo mexicano. A alemã Kathe Kollwitz entrega a fome, a viuvez e o desamparo que a guerra promove entre as mulheres e crianças. A sul-africana Marlene Dumas entrega a perseguição aos negros, na Africa. O brasileiro Cildo Meirelles entrega o real valor dos índios no Brasil: zero. O britânico Banksy entrega as barbáries da guerra sobre a humanidade. O brasileiro Portinari entrega a miséria do nordeste tupiniquim. O espanhol Goya entrega o fuzilamento de cidadãos inocentes. O chinês Weiwei entrega o descaso com refugiados. O brasileiro Gil Vicente entrega a impunidade dos poderosos. O francês Auguste Rodin entrega a rendição voluntária de seis ilustres cidadãos de Calais aos ingleses. O brasileiro Danubio Gonçalves entrega os horrores das charqueadas gaúchas e da escravidão. O holandês Hieronymus Bosch entrega os prazeres da carne a que os homens ambicionavam, impedidos pelas proibições religiosas.

Assim sendo, a próxima vez que formos discutir o assunto, sugiro que, como bons pesquisadores, partamos desse patamar, desse estado de arte, onde está provado e emoldurado que arte - como tudo, aliás - tem a ver, sim, com política.

O contrário é a alienação.

Fonte: http://revistaprincipios.com.br/artigos/40/cat/1662/arte-e-cr&iacutetica-social-em-adorno-.html

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