Receba as flores que te dou

Eu não sou ninguém pra falar, mas dado que volta e meia alguém me honra dizendo que quer fazer aula de aquarela comigo, vou me meter de pato a ganso e dizer umas coisinhas e outras.
Não. Aquarela não é algo que você devesse fazer se não gosta de desenhar. Porque - sim - aquarela tem a ver com mancha, mas, principalmente, tem a ver com gesto, ainda que gesto delicado. E gesto, antes de qualquer coisa, é desenho.
Não. Você não precisa se agarrar no pincel da aquarela como se fosse um lápis ou bóia salva-vidas, nem movimentá-lo tão cauteloso como se estivesse assinando uma escritura no cartório. Aliás, eu diria até que o verbo mais interessante para um pincel de aquarela é desagarrar, quase soltar, quase deixar ele seguir sozinho papel afora, comandante do seu pensamento poético visual.
Aquarelar não me parece ser pra gente guardada demais que adora transitar entre fronteirinhas muito bem demarcadas. Aquarelar é queimar a amarelinha com o pé, é transbordar de si e borrar os limites mostrando a língua para o certo, o correto e o deja vu. Ok, conheço alguns aquarelistas quase monges, mas cá pra nós, acho que a aquarela é tipo um espaço de seu alter ego onde eles se lambuzam do pecado da cor e da fluidez.
Aceite. Não é você que manda na aquarela. Ela é que manda em você. Así que, relaxe, meu bem, e entre no barquinho disposto a marolar e inclusive mergulhar se a canoa virar.
Pra mim, os aquarelistas se dividem entre os que seguram o pincel da metade pra baixo, agarraditos no más, crentes que mandam no pedaço, e os que seguram o pincel da metade pra cima, sabedores - como Paulinho da Viola - de que não é a gente que se navega, quem nos navega é o mar.
Eu, por exemplo, sou daquelas que segura o pincel da metade pra cima, mal e mal tocando no bichinho, pra ele nem notar que sou que estou ali a querer ensinar o caminho.
Não. Eu me ponho ali em cima feito passarinho no fio e fico levinha levinha esperando o vento me empurrar com a delicadeza de uma brisa de verão no mar da Bahia, empurra não empurrando, sabe como?
Quando eu aquarelo, me liquidifico. Sou água, água e deslizo suavemente pra lá e pra cá no papel, me rindo por dentro de imaginar pra onde aquilo tudo vai me levar.
E leva! Toda vez que me despreocupei com o porto de chegada, a viagem só me deu alegria. E água e água e água e desaforo de sim e de não pode, pode sim, até dar o clique
de que chegamos, afinal.
Às vezes a viagem é mais longa e mais lenta, outras é uma vertigem, quando foi, deu. Aceite que cada uma tem seu tempo. Minha mestrinha querida Ana Lovatto me domou só sussurrando uma única palavra: - sutileza, Graça!
Sei que muitos dos meus colegas e mestres vão me desdizer palavra por palavra, garantindo de pé junto que aquarelar é exatamente tudo que eu falei, só que ao contrário.
Pode ser, pode ser. Cada um deveria ter o direito de encontrar o seu próprio caminho na aquarela, assim ou assado, frito ou cozido. Só não concordo com aquarela apertada nas paredes do lápis, com pincel agarrado com força bruta, com o medo de "não ficar igual". E também não concordo que uma vez dado, o gesto da aquarela não pode voltar atrás. Pode, sim. Desde que você trabalhe sobre papeis com pelo menos 300 g. Deixa secar e começa de novo. E se não curtir, convide o senhor nanquim, o senhor pastel oleoso, o senhor lápis de cor pra participar.
Penso, como o mestre espanhol Miguel Coronado, que toda pintura tem que ir muito mais "allá de la realidad".


( Graça Craidy)

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