MEU QUERIDO DEMÔNIO DA TASMÂNIA


Ano passado, passei 40 dias em Roma, estudando pintura e frequentando museus e galerias de arte. Não me lembro em nenhum momento de o nosso mestre americano David Simon ter nos mandado evitar as salas de uma das maiores coleções de obras de Caravaggio do mundo, porque Caravaggio foi um sujeito de maus bofes, bêbado, litigante, criado nas ruas e acabou assassinando um opositor. Pelo contrário, o que lembro é ele exaltar a maestria de Caravaggio, a luz e sombra de Caravaggio, a inigualbilidade da arte de Caravaggio.
Da mesma forma, não tenho lembrança de haver colocado venda nos olhos para não enxergar a leveza e a perfeição das esculturas de Gian Lorenzo Bernini na Piazza Navona ou em outros palácios romanos, em protesto por o famoso escultor tão genial haver mandado um servo apunhalar o rosto de sua bela esposa que o havia traído com o irmão dele.
Quando fui ao Museu Rodin, em Paris, também não tive coragem de fechar os olhos e me privar da epifania com a Porta do Inferno, O Beijo, os Cidadãos de Calais, porque Rodin foi amante de sua assistente Camille Claudel que esculpia as mãos das figuras humanas do mestre e não assumiu jamais sua relação com ela, contribuindo para a sua internação em um manicômio até o fim de sua vida.
No Museu Picasso, desfilaram por mim todas as mil mulheres que Picasso seduziu e abandonou, uma por uma, ao longo de sua longeva carreira, em magníficas criações.
Confesso que tampouco consegui deixar de assistir os filmes dos velhos faunos Charles Chaplin, Polanski ou Woody Allen. E de me extasiar com a imaginação do outro velho fauno Lewis Carroll. Não consegui! Pela simples razão de que os filmes dos velhos faunos são geniais! E Alice no País das Maravilhas é uma maravilha.
Sou terrivelmente atraída também pelo texto ácido do bêbado Bukowski, pelas tragédias reveladoras do carola machista Nelson Rodrigues, pelas valquírias delirantes do antissemita Wagner.
Amo as comédias da amante de John Kennedy e rival de Jackie, Marilyn Monroe, aplaudo sem críticas os murais ciudadanos do mulherengo Diego Rivera, me rendo sem remédio às Fantasmagorias carregadas de tinta de Iberê Camargo que atirou em um desconhecido, matando-o.
Impossível não amar a guitarra chorosa de Eric Clapton, mesmo sabendo que ele casou com a mulher do seu melhor amigo George Harrison.
Como não se ajoelhar e tecer loas ao inigualável chiaroscuro do caloteiríssimo Rembrandt? E às lânguidas linhas do incomparável desenho do importunador de meninas Egon Schiele?
Como não viajar nas paisagens verdejantes de Paul Gauguin, mesmo sabendo que ele abandonou mulher e filhos à própria sorte para ir pintar no Tahiti? Ou deixar de admirar Rousseau, iluminista do Contrato Social e defensor das crianças que nascem puras mas a sociedade as corrompe, embora tenha largado num orfanato rigorosamente todos os seus 5 filhos, teúdo e manteúdo de uma rica dama da sociedade?
Talvez escape o poeta maior Drummond, embora ele tenha traído sua esposa e dedicado seus versos mais eróticos para a amante, ou Vinícius de Moraes que colecionava mulheres como quem junta figurinhas num álbum, e nos brindou com versos dos mais lindos do cancioneiro popular.
Como esquecer os gols e jogadas de gênio de dois grandes do futebol brasileiro, Pelé e Garrincha, que nos doaram taças e glórias, mesmo sabendo que um se recusou a reconhecer uma filha fora do casamento e o outro, alcoólatra, maltratava a nossa querida Elza Soares?
Julgando a obra pelo homem, a História da Arte, da Música, da Literatura, do Esporte perderia grandes criações. E a humanidade seria infinitamente mais pobre. Quem sabe, como sugere a jornalista Claire Dederer, em artigo no El País, a razão esteja com a esposa do escritor casca-de-ferida Ernest Hemingway, a correspondente de guerra americana Martha Gellhorn, que disse: "um homem precisa ser um grande gênio para compensar o fato de ser uma pessoa tão abominável.”
Para o escritor Marco Severo, autor de Os Escritores que Matei - também citado por Dederer -, a obra é sempre maior do que o seu criador pois “pode falar por toda uma comunidade, uma população. Um artista sozinho não tem esse poder. Não sem o respaldo da sua obra.”- ele conclui.
Por todas as razões que já apresentei, entendo também que é necessário separar a pessoa do artista. Depois que é parida, a obra pertence à humanidade, tem vida própria, é ampla e pública. A pessoa atrás do artista é humana, restrita e privada.
Portanto, quer os patrulheiros de plantão que me atazanaram ontem com o retrato que fiz do Pelé gostem, quer não, tirem seus apupos do caminho e não percam seu tempo tentando me pautar.
Eu sou livre, dona do meu processo, responsável por minhas escolhas e continuarei a fazer retratos e homenagens a todos que curto, quer os fiscais de obra alheia aplaudam, quer não.
Me admira que gente que me conhece há mais de 50 anos, por exemplo, tenha tido a petulância de vir me aconselhar no whats app com absurdos como “deixa o pessoal do futebol homenagear Pelé”, ou, pior, comparar Pelé a Ustra: “ É como dizer sim, Ustra foi um torturador, mas nada a ver.” Como alguém que me conhece há tanto tempo ainda não se deu conta que eu não tenho lado de montar?
Agradeço penhorada as sugestões de amigas e amigos empenhados em mais uma campanha de “ódio do bem”, mas, a não ser que eu peça a sua opinião, não venha me dizer o que você acha que é melhor para a minha vida. Vá cuidar da sua. E, por favor, seja ecológico. Não desperte o demônio da Tasmânia que mora dentro de mim. ( Graça Craidy)

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