Meri que não foi com as outras.

Uma tinha 78 anos. Outra, 65. Enquanto a primeira, viúva há décadas, guardava em si a menina brejeira e mimada, agora novamente casta, a outra, largada do marido, ainda mantinha acesa a fêmea aquengada dos seus extintos hormônios. Em uma boca, batom rosa-palha tênue. Vermelho-desaforo, na outra.

Prima Eulália, a mais velha, era a dona da casa. Moça fina, criada em colégio de freira, antiga professora, teve acesso a literaturas e pedagogias privilegiadas para uma mulher da sua geração. Quando casada – e foram mais de 30 anos – eu sei que ela bem que apreciava as lides da cama, diz-que quando o primo Ramón investia em ataques falópicos, prima Eulália não se negava a doces entregas madrugadeiras.

“ Uma boa esposa tem que ser uma dama na sociedade e uma charmuta na cama” – ela dizia, na época, nariz empinado e cheia de razão, valendo-se da palavra árabe para não falar “puta”, ela que adorava um eufemismo. Na falta de charmuta, diria, cochichando,“ pê-u”, não tenho a menor dúvida.

Meri, a mais moça, era uma espécie de dama de companhia da prima Eulália. Ambas prisioneiras uma da outra. Sua origem humilde se revelava estampada no gosto duvidoso das sobrancelhas feitas a lápis preto, desenho tosco que lhe embonecava o rosto cor de cuia, transitando entre feições de bruxa e princesa envelhecida.

Tudo que a prima Eulália tinha de requintada, pudica e pundonorosa, Meri tinha de vulgar, atrevida e sensual. Meri varria o pátio calçando tamancos de salto alto, as longas unhas pintadas de vermelho, como se concedesse à lida a delicadeza da sua majestosa dedicação jamais servil.

Prima Eulália, não. Parecia uma pombinha gorda rosada, arrastava suas pantufas eternas pela casa, pra lá e pra cá, em tarefas autoimpostas de pôr e tirar a mesa.

Talvez cultivando esperanças para o dia seguinte, tinha o estranho hábito de arrumar a mesa do café da manhã logo após o final do jantar, se antecipando em uma muda obsessão de pratos e xícaras e talheres ordenados religiosamente, quando não dormitava em frente à TV, no sofá da sala, o queixo caído no peito como palomita vieja, ao lado de uma Meri entediada com aquela pasmaceira que se repetia fim-de-semana após fim-de-semana, período em que vendia seu tempo à prima Eulália.

Mal ou bem, iam se suportando, as duas, uma irritando a outra com as sombras das suas almas feito espelhos, onde se enxergavam mutuamente, evidenciando justo o que cada uma não queria ver: prima Eulália, o abandono consentido do seu lado mulher, o sexo retornado à sua função meramente biológica de urinar; Meri, ao contrário, tendo que encarar a velhice assumida da patroa, quase que lhe anunciando eu-sou-você-amanhã.

Até o dia em que Meri arrumou namorado em um daqueles bailes-matinées que ela frequentava e adorava – tinha sido escolhida inclusive “ Rainha da Terceira Idade” - para desgosto da prima Eulália, que resmungava pelos cantos: “Que barbaridade! Que falta de compostura!…”

Meri estava radiante, dava pra ver a sinfonia de ais que o tal namorado devia lhe ressoar por dentro, aliás, não bastasse o desaforo de levar o homem pra casa dela, só se referia a ele como “ o meu gato”, ao que prima Eulália respondia com um muxoxo e um olhar de franca desaprovação. Era só o que faltava: uma velha de 65 anos falando “meu gato” para um ser de duas patas, sem pêlo nem rabo!

No meio das duas, eu observava, dois olhos, duplo ouvido, nenhuma boca. E não pude deixar de perceber: toda vez que prima Eulália falava de Meri para alguém, repetia a mesma invejosa e surrada frase: - sabia que a Meri arranjou um homem? É…Um macho! Imagina, botou o cara pra dentro de casa!

E lá se ia prima Eulália frase afora, no cultivo daquela pequenez tão humana e envidraçada dos que, não podendo ser felizes, se incomodam profundamente com a felicidade alheia. Cada “ meu gato” de Meri, uma bofetada na cara da prima Eulália. ( Me veio à mente uma premissa famosa em psicanálise: quando Eulália fala de Meri, diz muito mais de Eulália que de Meri.)

Até quando certa manhã Meri pegou seus mijados e foi-se embora curtir os anos que lhe restavam com o dito gato. Para a prima Eulália foi um alívio: - Onde já se viu isso? Francamente!- ela encerrou o assunto, meneando a cabeça com ar de reprovação. E nunca mais na vida tocou no nome da Meri Padilha aquela.
(Graça Craidy)
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2 comentários:

  1. Graça, li a bela estória de Meri e Eulália, ou Meri versus Eulália - gostei da pérola de psicanálise incrustada no teu texto - leve, brejeiro e agradável de ler. Lívio.

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  2. Me diverti muito lendo a historia de Meri e Eulália. Conheço um caso igual. Sou mais a Méri!!! hehehe

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