Oigalê, que era um 20 de setembro louco de especial, feriado sagrado da Revolução Farroupilha, quando todos os CTGs do planeta se alvorotam em bailantas comemorativas.
(Pra quem não sabe, CTG quer dizer Centro de Tradições Gaúchas, uma espécie de clube nativista onde se cultua a música, a dança, a comida, a vestimenta e os valores das tradiçoes gaúchas campeiras.)
Ijuí não fugia à tradição. E eu, moça faceira morando já de há muito na Capital, em visita à família na terrinha naquele começo dos anos 80, resolvi me aventurar nas lides festivas gauchescas.
Me pilchei bem como tem que ser, com um vestido de prenda emprestado cheio de babados - coisa mais linda-, me ornei bem catita com flor vermelha no cabelo, me tasquei um batom rosado bem oferecido na boca e me fui, disposta a levantar poeira da pista dançando toda a noite, se possível e se santo antônio me ajudasse, com um gaudério bem guapo.
Vanerão vai, xote vem, chimarrita vai, bugio vem, e eu ali espiando os moços pra ver quem eu ia laçar com meu olho pidão de prenda de araque, cheia de vontade de vestir a personagem de prenda-minha e rodopiar rodopiar rodopiar.
Lá pelas tantas, me passa um moreno bonito dançando empertigado, braço estendido,
postura de monarca, batendo os tacos das botas, a bombacha, comme il faut, uma fieira de casinha de abelha nas laterais, o lenço maragato lhe adornando o pescoço, guaiaca de couro engalanando o trajo e, quebrado nas costas displicentemente, como quem não vai partir tão cedo, um belo chapéu preto meio espanholado.
O tal espichou o olho pros meus lado e eu gostei. - Então vai ser tu!- decidi.
Foi terminar a música, o tempo de ele devolver a prenda pra família dela em uma mesa e arrodear os cascos pros arredores da mesa onde eu estava. Moderna ou tradicionalista, a paquera entre jovens, pelo menos naquela época, não se diferenciava muito de cidade grande pra pequena.
O rapaz se encosta no balcão das bebidas ou num canto estratégico do salão e fica ali se mosqueando um pouco, testando os olhares, testando de novo e de novo, secando a prenda com os olhos pra ver se sai faísca, pra se garantir que ela não vai dar tábua, quer dizer, largar o pobre com a cara no chão, se negando a ir dançar com ele, o que seria quase motivo pra puxar o revólver ou, no mínimo, nunca mais circular por aquelas bandas, nos próximos dez anos. Uma verdadeira desonra!
Pués, fiquemo ali, de bobagem. Eu sorrindo pra ele, ele sorrindo pra mim. Eu baixando os olhos envergonhada, ele ajeitando o lenço no pescoço se fingindo de ocupado. Aquele ritual de puxa-afrouxa (que os guascas dizem puxa-flócha) decerto aprendido dos bichos, de florear a conquista com a mistura rica de negaceios e atrevimentos.
E o nheco-nheco das cordeonas rasgando a noite farroupilha, Os Serranos liderando a parada e o povo a se botar no meio da pista sem dó de gastar sapato, numa faceirice de rodopio que dava gosto. Rodopio de tal maneira saracoteado que um casal levava menos de um minuto pra dar a volta no salão ao corcoveio dos acordes.
Meu pezinho de prenda inquieta batia impaciente no chão até que o xiru se encorajou a me tirar pra dançar uma marca. E foi um asseio! Parecíamos gêmeos de baile. Aprochegados pra dançar sem muitos grudes - que o estabelecimento era de respeito e não permitia arreganhos-, minha mão direita desaparecida na mão dele, seu braço firme atrás da minha cintura me conduzindo feito eguita bem-domada e lá nos fomos pista afora num sacolejo bem marcado, os pés mal tocando o chão que nem jaburu pulando sanga.
Me diverti a noite inteira. O rapaz se chamava talvez João Fernando, algo assim. Era engraçado, galanteador, cheio de minha prenda pra cá, minha princesa pra lá, como sóem ser os gaúchos de campanha quando querem agradar a uma chinoquinha que lhes interessa. E eu encantada com aquele mundo cetegiano quase que completamente desconhecido pra mim, tirante os ai-bota-aqui-o-teu-pezinho e maçanicos-maçanicos que aprendi no Grupo Escolar Ruy Barbosa, quando guria.
João Fernando também parecia estar contente, pois se atreveu a me apresentar à família dele, fiquei lisonjeada, imagina! quatro da manhã e eu convidada a comer galinha assada com salada de batata na copa do CTG, refestelada junto com pai, mãe, irmã dele!
Não sei direito se por ingênua ou falta de noção, fiquei ali me comprometendo, porque cá pra nós, comer galinha assada com salada de batata com a família de um rapaz do interior - ainda mais de CTG! - era quase que um pré-noivado. Não é como hoje que as gurias entram e saem não da casa ou da mesa, mas da cama dos namorados. Tudo acontecia com menos pressa quando se tratava de colocar a família no meio.
Por isso que, como diz o outro, meu peito que eu gavo! Onde é que já se viu essa gachação de intimidade com a família do moço?
Falando em "gavo", João Fernando, como boa parte dos gaúchos de fora que vivem na lida tradicionalista, volta e meia trupicava no português, adicionando uns "peguemo", uns "voltemo", uns "de vereda" que eu achei mais pro folclórico que pro linguístico. Afinal, o clima era de grossura, em Roma, como os romanos. Vai pensando!
Dia seguinte eu ia voltar pra Porto Alegre, onde morava com meu irmão e já trabalhava como redatora em uma agência de publicidade, espia o contraste... Me despedi do rapaz deixando com ele meu endereço e telefone, esperando quem sabe que me escrevesse uma cartinha apaixonada, eu missivista militante de longa data adorava aquele envelopinho de tarja verde-amarela com meu nome subscrito na capa.
Passaram-se alguns meses, nada de notícias do tal João Fernando. Nem lembrava mais dele quando um certo dia, sem mais essa nem aquela, batem na porta do nosso apartamento. Quando vi quem era, quase caí dura. Ele, o gaudério. Saltou de pára-quedas, sem avisar, direto na mira do meu olho mágico.
Fiquei meio constrangida com aquela sem-cerimônia típica do interior que as pessoas vão invadindo a casa dos outros sem bater, no máximo batem palmas no portão. Deve ter sido isso. Ele achou que não tinha mal nenhum aparecer assim, do breu, sem me avisar.
Disfarçando o mau-jeito, convidei o rapaz pra tomar um café na lancheria do chinês que havia debaixo do meu prédio, na esquina da Salgado Filho com a Dr. Flores. Ele aceitou, cordato.
Descendo de elevador, me contou que tinha deixado o carro estacionado na Dr. Flores, que sorte que achou lugar. Quando cheguei na frente da lancheria, espiei pra baixo, na direção onde ele apontou e não acreditei. Estacionado de fora a fora na Dr. Flores, ocupando quase uma quadra até praticamente a rua General Vitorino,
um garboso caminhão FNM me olhava pachorrento, com aquela cara achatada sem focinho que todo o fenemê tem.
(Graça Craidy)
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Adriana Gragnani escreveu:
ResponderExcluirSua crônica não está escrita, está cantada!!!
Muito lindo! Muito rica sua crônica, Gracinha. Deu uma saudade danada do FNM do meu pai, cuja pronúncia era Fênêmê...rsrsr
ResponderExcluirBeijão.
Ivan
Zeca Pinto escreveu:
ResponderExcluirGraça, mas quetal esse índio velho te visitando na Dr. Flores com Salgado Filho de caminhão?
Wanderley Ruivo escreveu:
ResponderExcluirOi prenda..
Estas uma graça!!!!!!
Beijão
Minina, vc escreve lindo demais. E em todas as linguas (como chama essa? rsrsrs..)
ResponderExcluirCintia Astolfi escreveu:
ResponderExcluirPrima.Sou fa do teu blog.Parabens. Beijos.
Carmen Silveira escreveu:
ResponderExcluirOlá Graça, lembra de mim? Eu sou amiga de tua irmã, Leila. Lí o nome de teus 379 amigos procurando o nome dela, mas não achei. Ando me divertindo com tuas crônicas, é bem como me lembro de ti, espontânea, atual e brilhante. (...)Beijos Graça, vou continuar te lendo.
Carmen Silveira
É adorável o seu texto em gauchês. Adorei.
ResponderExcluirFernando escreveu:
ResponderExcluiro cara foi de caminhããão
hahahahahahahahahaha
"que sorte que achou um lugar"
huihhiuahiuahiuahiuahiuaha
hauihauhauih, to rindo mto
ahiuhaeh
Fernando escreveu:
ResponderExcluirum índio grosso desses nunca vai mandar carta
vai é aparecer pra um mate
hahahaha
Águida Kopf escreveu:
ResponderExcluirQue lindo,rico e engraçado olhar dessa prenda (nem que por uma noite), de uma bailanta num CTG. Não sei se nos anos pós 2000 tem esse encanto, mas vá lá que tem ainda o cavalherismo gaúcho debaixo do que achamos, às vezes, grossura e essas ingênuas manhas nas deliciosas paqueras num delicoso cortejar que perdemos. Lembra dos encontros nos sábados e domingos à noite na fila do cinema...
Iara Soares escreveu:
ResponderExcluirTenho acompanhado o teu blog - adoro! - e sigo fã ardorosa de teus escritos.
Mas báh, e o índio velho foi de Fênêmê! Mas que cosa! eh eh eh adorei.
ResponderExcluirHehe. Adorei!
ResponderExcluirRegina Cury escreveu:
ResponderExcluirSimplesmente adorável! Ah, acho que passei no teste do vocabulário regional. Fiquei até orgulhosa!
Renee El Ammar escreveu:
ResponderExcluirGraça querida já li várias vezes e sempre dou muita risada porque eu vivenciei isto também, lembras né?Bjo
Muito bom, Graça! Caguei de rir, como talvez diria João Fernando.
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