Disseram que eu voltei americanizada/ Com o burro do dinheiro/ Que estou muito rica/ Que não suporto mais o breque do pandeiro (... )Mas pra cima de mim, pra que tanto veneno/ Eu posso lá ficar americanizada/ Eu que nasci com o samba e vivo no sereno/ Topando a noite inteira a velha batucada/ Nas rodas de malandro minhas preferidas/ Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you/ Enquanto houver Brasil/ Na hora da comida/ Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu. (Disseram que voltei americanizada, 1940)
Mais de seis décadas depois, já no terceiro milênio, as críticas à influência estrangeira na cultura adquiriram foro científico e freqüentam assiduamente a academia, que questiona estarrecida como encaixar " esta madeixa de comunicações distantes e incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos, que se nomeia como globalização", segundo palavras do filósofo e antropólogo argentino Néstor García Canclini ( 2004: 13).
Canclini, que vive no México desde 1976, é um obstinado estudioso da cultura latino-americana e dos efeitos da globalização no cotidiano pós-moderno do hemisfério sul.
Afinado com a proposta transdisciplinar dos Estudos Culturais, afirma não ser mais suficiente valer-se só da sociologia, ou só da antropologia ou, ainda, só da comunicação, para entender o fenômeno avassalador da globalização. É preciso ir além dos saberes compartimentados, questionando antigas conclusões disciplinarmente isoladas e buscando, no tempero dos vários jeitos de olhar, outras respostas, ou, melhor, outros questionamentos, como ele enfatiza, na epígrafe do seu livro Diferentes, desiguales e desconectados (2004): " Se não conheces a resposta, discute a pergunta", citando Clifford Geertz ( 2004:12).
E ele se faz perguntas intrigantes o tempo todo, para as quais nunca há só uma resposta: O que nos faz comuns? O que nos faz diferentes? O que é ser latino-americano? Globalização globaliza ou desglobaliza? Identidades são essências ou processos? Quais os paradoxos? Que conflitos movem as culturas contra as culturas? E os indivíduos contra os indivíduos? etc
No seminário Interculturalidade e Globalização que ministrou na PUCRS baseado no livro citado, Garcia Canclíni alerta para outros aspectos decorrentes da globalização que não apenas os econômicos e tecnológicos. Ele pretende uma teoria transdisciplinar ( antropologia, sociologia e comunicação, principalmente) que organize o conhecimento sobre as novas diversidades surgidas do que ele chama de desdibujamento das fronteras, da transnacionalização, das migrações e da monopolização da indústria cultural pelo capital norte-americano, sufocando as manifestações culturais locais, transformando maiorias geográficas em minorias culturais, e desglobalizando-as pela diferença, desigualdade e desconexão.
Suas propostas básicas são compreender esse fenômeno através de uma nova categoria, a interculturalidade, como a cultura que se mescla, confronta, troca e negocia, diferente da multiculturalidade, que apenas enxerga o heterogêneo estanque, o diverso separado como diverso. Ele recomenda, ainda, que se analise a globalização não somente a partir dos seus dados estatísticos - os indefectíveis datos duros canclianianos - mas também pelo imaginário, pelas narrativas dos seus atores.
Canclíni reconhece (contrariando quem achava que tudo estava perdido) o quociente inegociável de cada cultura da parcela hibridada pela globalização e sugere que se busquem acordos de co-produção cultural com capitais globalizados de culturas afins, que se reivindiquem políticas de regulação e proteção nacionais e de incentivo à produção cultural local, sob o risco de anulação e desaparecimento da diversidade cultural, em prol de uma pretensa multicultura monolíngüe construída sob o molde norte-americano.
Como receita final, ele incentiva fortemente o estudo da Economia da Cultura apontando-a como saída da opressão do mercado pelas armas do próprio mercado, fazendo lembrar claramente os estudos de George Yúdice em A Conveniência da Cultura (2004), onde a cultura extrapola o patamar tradicional de distinção apologizado por Bourdieu ou de antropologização aprofundado por Williams, e salta para a rentável plataforma de recurso, sob o argumento de que "a maior distribuição de bens simbólicos no comércio mundial (filmes, programas de televisão, música, turismo etc) deram (sic) à esfera cultural um protagonismo maior do que em qualquer outro momento da modernidade" ( 2004:26).
Ao longo do mesmo livro inspirador do seu seminário, Canclíni desconstrói algumas crenças da antropologia, da sociologia e do pensamento pós-moderno.
Da antropologia, reconhece, por exemplo, o disfarçado desejo idealizador de manter a cultura e os objetos dos seus estudos em redomas intocáveis, preservados do processo globalizador que agita o mundo, como se fosse uma Arca de Noé cuidadosamente embalsamada, cada espécie em seu escaninho cultural, "com inércias que o populismo celebra e a boa vontade etnográfica admira por sua resistência" ( 2004:21), citando inclusive Clifford Geertz que, segundo o autor, recusa-se a que se reduza a disciplina a " um saber sobre verdades caseiras" ( 2004:21).
Da sociologia, Canclíni duvida, por sua vez, que a famosa noção de campo de Bourdieu, amplamente utilizada nos meios acadêmicos como um coringa valioso para compreender a ação dos atores sociais em investigação científica sobre estrutura e poder, assim, a lo largo, como uma fórmula metodológica infalível, possa dar conta das especificidades particulares "de cada arte, da literatura, da política e das indústriais culturais" ( 2004: 97).
O estudioso argentino alerta também sobre a " indiscriminada exaltação da fragmentação e do nomadismo" de alguns estudiosos da pós-modernidade, criticando a visão tribalizadora do francês Maffesoli que, segundo Canclini, " banaliza a desintegração" (2004:22), como se todo nomadismo fosse feito apenas " pelo gozo do momento" (idem) e não, como se constata muitas vezes na prática, por sobrevivência.
Mas, afinal, a globalização é ou não o fim do mundo multicultural, a praga homogeneizadora que devorará a diversidade?
" O problema é mais de explosão e dispersão das referências culturais, que de homogeneização", responde Canclini, preocupado em estudar a interculturalidade, nova categoria criada por ele e reconhecida elogiosamente por Jesús Martin Barbero como "uma categoria com a qual nomear tanto a densidade dos conflitos e os intercâmbios que vivem as etnias, as regiões e as nações, como o lugar epistêmico desde o qual abarcá-los compreensivamente" ( revista online Pie de Pagina nº 3, abril 2005).
Para Canclini, precisamos evoluir de pensar a diversidade globalizada não mais como multicultural - o antigo caldeirão de raças e etnias catalogadas meramente por sua diferença - mas como intercultural. E explica: " interculturalidade remete à confrontação e ao entrelaçamento, ao que sucede quando os grupos entram em relações e intercâmbios". Multiculturalidade, diz ele, apenas " supõe a aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o que são em relações de negociação, conflito e préstimos recíprocos" ( 2004:15)
E, àqueles que entendem a interculturalidade como um trânsito da diferença à fusão, como se a diferença deixasse de importar, Canclíni ressalta que sua idéia é " complexificar o espectro", considerando," junto com diferença e hibridação, as maneiras em que as teorias das diferenças necessitam articular-se com outras concepções das relações interculturais: as que entendem a interação como desigualdade, conexão/desconexão, inclusão/exclusão" ( 2004:21).
Para ele, a problemática da desigualdade se manifesta sobretudo como desigualdade econômica. Já a da diferença é visível principalmente nas práticas culturais: mais que em genética, língua e costumes, nos processos históricos de configuração social.
Aliás, Canclini ressalta que as transformações não são produzidas só pela globalização contemporânea, mas já vêm de há muito, desde a colonização, passando pela modernização, hibridação com outras culturas, pelas migrações, pelo consumo de bens industrializados e até pela adesão voluntária a modos de produzir não tradicionais. ( 2004:47). Inclusive, em um momento de raro humor, ele cita os antigos inimigos do capitalismo - os ex-comunistas chineses - que hoje produzem de tudo para todos os cantos do mundo, mesclando-se inclusive no Natal ocidental, onde são facilmente identificáveis pelos enfeites natalinos de papais noéis com bizarros (para nós) traços orientais.
Budistas cristãos ex-comunistas capitalistas globalizados, que mixórdia!
A desconexão, por sua vez, é um agravante que evidencia o aspecto desglobalizador da globalização, que marginaliza maiorias geográficas transformando-as em minorias culturais, alijadas do mercado de trabalho e da informação. Ser um conectado, no entanto, afirma Canclíni, citando Boltansky e Chiapello, pode também virar "fonte de novas formas de exploração e de novas tensões existenciais" ( in 2004:78) como, por exemplo, os portadores de celular, que acabam se transformando em trabalhadores sem limite de horário, alcançáveis em qualquer lugar e momento do dia ou da noite. Em suma, diz Canclíni, "ler o mundo pela chave das conexões não elimina as distâncias geradas pelas diferenças nem as fraturas e feridas da desigualdade"( 2004:79).
Enfim, o que Néstor Garcia Canclini propõe, cientificamente, são novas políticas de valorização das diferenças e do que chama de " direitos conectivos", para que os excluídos participem da indústria cultural e das comunicações, mantendo uma parte do seu território cultural preservada, com direito à diferença, direito à conexão e direito à igualdade, forjando talvez um novo grito de guerra pós-moderno, democrático, intercultural e universal: " Egalité, differènce, conection."
Referências bibliográficas:
GARCÍA CANCLINI, Néstor - Diferentes, desiguales e y desconectados, Mapas de la interculturalidad, Barcelona: Gedisa, 2005, 1ª reimpressão.
MARTÍN BARBERO, Jesus Maria - El tercer nombre de América Latina, resenha publicada na revista on-line colombiana Pie de Pagina, nº 3, abril de 2005, http://www.piedepagina.com/numero3/html/diferentes.htm
YÚDICE, George - A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global - Coleção Humanitas, Belo Horizonte: UFMG, 2004
(Graça Craidy)
SE VOCÊ GOSTOU DESTE POST, TALVEZ SE INTERESSE POR ESTE.
Tati Ch escreveu:
ResponderExcluirExcelente CANCLINI e excelente Graça!!
Sergio Gonçalves escreveu:
ResponderExcluirMatéria de interesse maior, por enfrentar o desafio da globalização no mundo da cultura, mas com os olhos voltados para o futuro, não para o passado.