Coração de merthiolate assoprado.

Como um pássaro, ele catou folhas secas e palhas de palmas caídas, seixos, cocos desfibrados, musgos, algas desidratadas do sol, restos de madrepérola e construiu um ninho para ela.

A praia era abandonada, só um velho pescador já meio cego do sal e seu viralata, ambos também desesquecidos do continente do outro lado, onde a vista alcança mas o coração não deseja mais. Ele ia lá vezenquando, sua alma e ele cruzando a distância. A ponte, sua lancha enferrujada.

"Minha", ele dizia. Gostava de pensar que a praia era só dele. Dele e do anjo que morava ali, na primeira onda, aquela que vai, faz de conta que não volta, vem vindo, vem, explode e acaba sempre lambendo o pé, submissa à sua sina escrava.

Com o anjo ele falava tudo que do lado de lá não tinha confiança em contar. Abria o guardadouro de suas dores e despejava, craquelando conchas, espedaçado em areias de mentira. Que às vezes queria largar tudo de mão e sumir. Que toda noite olhava o céu e não enxergava dia de amanhã. Que era malvado, sim, que que tava olhando? Era mau, sem desculpa de mãe! Que trazia desperdões virados em gelos sem jeito de garrar bem-querença de novo. Que tinha uma fome que crescia pra dentro cada de-manhã, gula doente de amar desmedido. Que queria se perder por aí. Que queria se achar por aí. Mas, donde valentia?

O anjo escutava em silêncio, com aquele olhar molhado metade sal meio mel de quem entende, de quem já viu de um tudo nesse mundão de Deus, que conhece cada dor de existir, cada dorzinhazinha, até aqueluma que merthiolate assoprado cura mais pelo assoprado que pelo remédio.

Por causa desse olhar, ele gostava do anjo. Tão bom poder falar assim sem carecer de palavra dita. Só falada com o dentro do coração. No entardecer, quando encilhava a velha lancha de novo e cruzava a água de volta ao seu destino, vinha desanuviado, tinha do anjo a cumplicidade da fé na bestagem do seu sonho, trazia o olho alumiado da teimosia boba de querer ser feliz aqui no reino da terra, mesmo, que não sabia se um dia iria para o céu, mais certo talvez quasemente que não.

Por isso, naquele dia, tinha tecido como um pássaro o ninho para a sua sabiá. Queria amá-la nua à luz da lua, fazendo rimas que nunca tivessem sido escritas ainda no seu corpo branco. Tinha urgências não cumpridas de percorrer com sanha e unha cada redondo da sua carne fêmea, se desorientar curva por curva, perder o rumo, a razão.

Mil pensados antes, tinha querido o desatino fatal de esquecer quem era ele, quem era ela, o suor colando suas almas e ocos em um único respiro encordoado de ais. Todos os seus pecados e males e bens e desaforos guardados, enfim cuspidos em salivas de língua e boca, sôfregos resgates de tantos quereres guardados, tantos não-poderes proibidos.

Pela primeira vez, ele não tinha medo de - em ganhando - perder. Que seja! Que fosse! ele gargalhava pelo avesso, estranhamente feliz. Ia entranhá-la na alma, tatuar-se dela para sempre com tinta de não apagar. Ainda que ela um dia partisse, herança eterna.

Depois dela, o quebranto quebrado. Nunca mais o medo de agarrar felicidade com a mão e enfiar a boca com gula de séculos, melar a cara no suco bom daquela maçã que antes só lustrava e punha no altar do olho, sacrário sem coragem. (Sempre maçãs, as chaves do Paraíso...)

Acordou no dia seguinte com o purri-purru de um sabiá no ouvido. Tateou no ninho. Viva alma. Nem deste mundo, nem do outro. Só o escorrido salgado da sua seiva leitosa umedecendo as folhas secas. E, no debaixo do coqueiro, o viralata do velho pescador, rabo abanando, solidário.
(Graça Craidy)
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Um comentário:

  1. Adriana Gragnani escreveu:

    É delicioso entrar no facebook e encontrar uma nova crônicaconto da Graça Craidy.
    "Tinha urgências não cumpridas de percorrer com sanha e unha cada redondo da sua carne fêmea, se desorientar curva por curva, perder o rumo, a razão."

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