A espiã de calcinhas de renda e saia de vagonite.

Eu devia ter uns 10 anos e não me conformava com algumas coisas.

Por que o mundo masculino parecia ser mais interessante que o feminino?

Por que meninos podiam sair, fazer e acontecer, sem dar satisfações?

E, principalmente, que mistério era esse que os dois primos metidos de São Paulo mais meu irmão se trancavam à chave no quarto de hóspedes todos os dias depois do almoço, que ninguém podia ouvir?

Um dia, resolvi tirar a limpo. Em minha fértil cabecinha, eu havia arquitetado um plano infalível: chegar antes deles no quarto, me esconder debaixo do sofá-cama aberto e ali ficar, mudinha e com os ouvidos bem abertos.

Depois, pra me escafeder, era só esperar os misteriosos saírem do quarto, coisa que faziam lá pelas duas e pouco da tarde, pois estávamos em pleno verão e eu sabia que eles não perdiam piscina de jeito nenhum.

Arquitetado o plano e colocado em prática. Mal o almoço terminou, subi rapidinho para o andar de cima da casa, rumo ao quarto de hóspedes, me joguei debaixo do sofá-cama, nem me importando em arrastar no chão minha linda saia azul de vagonite bordada. E ali aguardei a cachorrada, inconsequente que só.

Ouvi as vozes dos guris subindo. Primeiro ato: o primo Gilberto joga seu 1,85m de esqueleto sobre o sofá, me obrigando a fechar os olhos estoicamente, pra me proteger da poeira que caía sem clemência de entre os panos do velho sofá.

No instante seguinte, prendi a respiração pra não me sufocar com o chulé que vinha do sapato 44 que o mesmo querido primo - de apelido " Furinho" porque falava fazendo biquinho - teve a brilhante idéia de jogar, bem no espaço onde eu tinha me escondido.

Aí, vieram os diálogos. Finalmente seria descoberto o 4º mistério de Lurdes: o que os homens falam quando estão sozinhos?

Que decepção!...Frases completamente bobas e sem conteúdos secretos, do tipo será-que-vai-chover, passando por grunfs sonolentos, silêncios preguiçosos. Nada que prestasse! E o tempo passando. E neca! Cambada de inúteis.

Ouvi batidas na porta: "- Nelson, telefone da Maria Inês pra ti! " O bonitão conquistador do primo mais velho - que era a cara do Cary Grant ( suspiro!) - abandona seu posto na janela do quarto, pra atender. E os outros dois, meu irmão Paulo e o primo Gilberto, saem do quarto também.

Eu, terrivelmente desapontada com a pesquisa, mas ainda curiosa, em vez de aproveitar o ensejo e dar por abortada a missão, tive a pândega iniciativa de apenas trocar de lado, no debaixo do sofá, sabe-se lá com que intuito.

A esperta esqueceu que sofás-camas abertos ficam com um lado largo e o outro estreito. Pois, lá me enfiei no lado estreito do dito cujo – justamente o lado que dava pra porta - e aguardei a volta dos garnizés.

Voltou um, voltou outro, mas nem trancaram a porta. Cáspita! Sinal que não ia mais rolar segredos inconfessáveis, mesmo.

Nisso, minha mãe pára na porta aberta do quarto e eu só escutei, lívida e gelada, a voz dela pronunciando as palavras mais aterrorizadoras daquele malfadado verão de 61: - " Ué? O que é que a saia de vagonite da Graça está fazendo aqui?"

A morte teria sido mais doce. Vergonha das vergonhas!

Ao enxergar um pedaço azul da minha saia de vagonite que tinha ficado pra fora do debaixo-do-sofá, feito bandeira, minha mãe, intrigada, levantou a colcha que cobria o sofá e deu de cara com a cara-de-pau da filha gordinha espremida embaixo.

O máximo que eu consegui justificar para aquele ato injustificável foi me valer da minha famosa sinceridade kamikaze:- " Eu só queria saber o que eles conversavam quando se trancavam aqui no quarto!"

E saí do recinto sem olhar pra trás, com meu velho andar bamboleante, jogando toda a culpa do desastre na maldita saia de vagonite.


Surpreendentemente, não houve nenhuma punição. Nem materna nem paterna.

Meu único castigo: no resto daquela temporada, nenhum dos primos ou o irmão me dirigiu uma única palavra. 1961 foi o verão do desprezo total. ( Graça Craidy)
...................


Nota: vagonite.
S. f. Bord.
1. Espécie de bordado em que se introduz a linha entre os fios de um tecido especial a fim de formar desenhos decorativos.


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14 comentários:

  1. Gilberto Craidy Cury escreveu:

    Adorei. Que delícia de recordação. Gosto muito dos teus textos.

    Obrigado pelo presente.

    Bjs e saudades

    Do teu primo Furinho.

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  2. Beka Cury escreveu:

    Oi Graça

    Me diverti... muito..... menina está sempre inventando coisa...isto até hoje. Tem certas coisas que não mudaram nas gerações.....
    Bjs
    Beka

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  3. Foguinho Grun escreveu:

    Um beijão Graça!Tu és minha "ídala"!eheheheh...

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  4. Regina Cury escreveu:

    Graça,
    Adorei a história, como todas as do seu Blog. Gente miserável esses primos hein? Viva as saias de vagonite (mesmo as que entregam sua ingenuidade!).
    Beijos queridos da prima Rê

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  5. Nelson Cury escreveu:
    Bahh,tche!A gente tinha que fugir de voce,pois era uma verdadeira
    caguetinha!!!
    Bjo
    Nelson

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  6. Adriana Gragnani escreveu:

    "Dve ter sido um ótimo 61. Vc tinha uma saia de vagonite!"

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  7. Sérgio Mudado escreveu:

    "O "gelo" no verão foi imerecido. Ter sido sufocada pelo chulé do Furinho já tinha sido castigo mais que suficiente. Muito bom!"

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  9. Andre Gagliardi escreveu:
    Cara Graça:
    Bom dia! Já havia lido o teu espetacular texto "da espia ... e saia de vagonite", pois sempre que posso dou uma espiada no teu blog. Realmente muito legal, sob o ponto de vista do que é real, para ti, pois vivenciou a questão posta, mas genial para aqueles/aquelas que leram. Porque a genialidade da descrição faz no mínimo o leitor/leitora se voltar a um tempo de fantasias, descobertas e de vivência. E bota vida nisso, onde as pessoas e o mundo tinham um certo "glamor", que já ficou para traz. E no outro sentido faz com que a gente, aguce o nosso pensamento metafórico e se utilize das representações que fazem a gente crescer em quanto gente, em quanto sujeitos desse tempo. Fiquei muito feliz em ler o teu texto, pois me fez recordar da minha história, não de saia, mas sim nos dá um indicativo para a reflexão sobre como a gente se constituiu, num outro tempo. PARABÉNS, gostei de mais.

    Um abraço.

    André Gagliardi

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  10. Tina Cury escreveu:
    Gracinha

    Li vários de seus artigos e todos, sem exceção, me encantam profundamente. Além de bem escritos, são muito gostosos e super divertidos.
    Isso me leva a sonhar em um dia vê-los publicados em um livro, por uma boa editora. Por que não???
    Parabéns, prima !!! Você tem o dom da Graça.
    Bjs. de sua prima e fanzoca
    Tina

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  11. Carlos Lessin escreveu:

    Querida Graça da Terra de Veríssimo,
    Gostei muito da crônica!
    Aqui quem vos responde é o Calunga, paulistano
    da gema e seu amigo de priscas eras.
    Quero lhe mandar um abraço caloroso, pois
    lembrei de ti e dos nossos churrascos
    naquela pobre pilha de tijolos chamuscados,
    ao som de violões, risadas e guitarras distorcidas.
    Saudades!
    1 beijo na sua alma!

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  12. Adorei a pequena espiã, metida, que com certeza não se daria bem. Morri de rir... gracinha tu és um amor...

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  13. Silvia Jeger escreveu:

    Amei a sinceriade kamikase que sempre me persegue. E a saia de vagonite.

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