De bicho-do-mato a orador da turma
Quem vê o cosmopolita Roberto Duailibi, um dos mais respeitados líderes setoriais do segmento da publicidade, no Brasil, com seus ternos elegantes, porte distinto, voz grave e conciliadora, transitando comme il faut entre intelectuais e poderosos, não imagina o molecote de calçãozinho azul de elástico, sem camisa, que habitou-lhe os dias, na infância.
Criado solto pés descalços em terra vermelha, estilingue na mão atrás de cachorro e papagaio, Duailibi cresceu com a cabeça povoada das histórias sobre aventureiros que se enfiavam mato adentro, em busca de diamante e ouro nos garimpos das águas profundas dos rios a léguas dali da Campo Grande do Mato Grosso onde nasceu, em 8 de outubro de 1935, e virou menino, ao som da rádio Belgrano de Buenos Aires, do castelhano dos soldados paraguaios-germânicos desertores, das bugras ninando menino em guarani e do enorme clã dos Duailibi bradejando em árabe e francês.
Na indômita Campo Grande da década de 30, onde os fazendeiros resolviam seus problemas à bala e todo pai de família prudente andava com um trinta-e-oito na cintura, Duailibi surpreendentemente tornou-se um poliglota com generoso capital cultural para compreender meia-dúzia de idiomas que um dia o levariam bem longe daquele cenário de bangue-bangue:
Eu cresci ouvindo o árabe, o francês, o português, o italiano no colégio de padres salesianos, o guarani que eu falava bem até, quando era criança, por causa das babás e o espanhol, que eu falo muito bem hoje, que realmente é minha segunda língua (...) Uma vez (...) vi uma camionete parar, dois rapazes descerem ( ...) e um deles disse: Olha este filho da puta, mandou matar nosso pai e está bebendo cerveja de manhã. E os dois saíram dando tiro no cara (...) (DUAILIBI, 2005)
Naquelas tardes abafadas típicas da região Centro-Oeste do Brasil cuja fronteira vizinha com o Paraguai e a Bolívia, podia-se encontrar Duailibi também atrás do balcão da vasta casa comercial A Camponesa, do tio José Duailibi, um solteirão misto de dono de loja com dono de garimpo que, a pedido dos pais do menino - Wadih Galeb Duailibi e Cecilia Fadul Duailibi - ensinava ao jovem turquinho o milenar ofício árabe da boa venda, acompanhado de um comentário risonho aqui, outro gracejo acolá, alertando-o sobre o verdadeiro segredo do sucesso: "Meu filho, se elas não estiverem sorrindo, não estarão comprando". ( DUAILIBI, 2006:26).
Nascia ali uma insuspeitada vocação para o comércio, que o menino sequer atinava pois quando crescesse, já tinha decidido: ia ser médico e agradar ao pai, farmacêutico libanês cristão formado em Paris no final dos anos 10 e imigrado a São Paulo, Brasil, em 1920, com a incumbência de fundar a fábrica de perfumes Coty.
Mais de seis décadas depois das primeiras lições do tio José, o mesmo Duailibi filho de farmacêutico que acabou não estudando Medicina, explica a um jovem cearense, na sabedoria dos seus 71 anos, o quanto considera absolutamente fascinante conhecer as técnicas de vendas, em seu livro Cartas a um jovem publicitário ( 2006), discordando do velho parceiro, o publicitário Júlio Cosi Jr e da sua zombaria de que a última emoção da criatura humana é um jogo de baralho:
...a última emoção e, provavelmente, a mais intensa, é o fechamento de uma venda (...) Sempre considerei o ato de vender, o aprendizado sobre as vendas, o conhecimento sobre os tipos de consumidores, a teatralização do contato entre o comprador e o vendedor, (...) o uso das palavras para criar em sua mente toda uma situação de vantagens e benefícios, matérias absolutamente fascinantes.(...)
NOTA: Entrevista realizada no contexto do projeto "A propaganda brasileira: trajetórias e experiências dos publicitários e das instituições de propaganda", desenvolvido pelo CPDOC por iniciativa da ABP - Associação Brasileira de Propaganda e com apoio da Souza Cruz S.A., entre março de 2004 e fevereiro de 2005. (Disponível em: http://www.abp.com.br/propaganda_bra/downloads/Roberto%20Duailibi.pdf)No mesmo livro ( 2006), quando reforça seu amor à missão de vender e insiste no treino, no prazer do eterno aprendizado, vem à tona o turquinho da sua infância que fugia da rotina deambulando pelos matos de Campo Grande imaginando-se no centro das aventuras recheadas dos sobressaltos do garimpo:
O exercício rotineiro de uma outra profissão pode assegurar às pessoas um salário regular e até uma certa regularidade na vida, mas nada se compara ao exercício da venda com suas incertezas, seu constante aprendizado e suas emoções. ( DUAILIBI, 2006: 83-84)
Esse precioso capital cultural do gosto pelo risco e da escola de vendas cursada na vida prática do quinto dos sete filhos do casal Duailibi ( Victor, Lorice, Fauze, Teresinha, Roberto, Carlos e Sônia), que o faria diferir com importante destaque mais tarde no mundo da publicidade, não parou nas aulas da A Camponesa. Duailibi também treinava sua retórica na própria loja dos pais, em Campo Grande, a Madame Cecília, mais charmosa que a do tio - que comercializava de tecidos a comidas - lembra o sobrinho. Na Madame, vendia-se moda, roupas, tecidos, botões, tudo exposto em vitrines ocupadas por belos manequins importados pelo pai diretamente da fábrica da famosa Madame Tussaud, a mesma do Museu de Cera de Londres onde se encontram os clones em cera das maiores celebridades do mundo, verdadeiras obras-de-arte.
Muito requintado o capital cultural que papai Wadih transmitia ao filho, conectando suas referências culturais não com a incipiente São Paulo metropolitana dos anos 30, mas com a vieille métropolite Paris, onde ele próprio havia morado, quando estudante. Em um de seus relatos, aliás, Duailibi reporta-se ao seus ancestrais com um snobish capital cultural naturalizado, principalmente quando fala dos avós maternos. Perguntado sobre a razão de seu pai Wadih, filho de um joalheiro libanês da cidade de Zahle, aparentemente sem muitas posses, ter ido cursar Farmácia em Paris, ele responde o porquê da influência francesa em sua família: o Líbano era protetorado da França.
...provavelmente as melhores escolas de farmácia eram na França. E era um curso universitário. Então, ele foi para lá, viveu seis anos em Paris. Participou da vida parisiense do começo do século com bastante intensidade. (...) Porque, na verdade, a capital do Líbano era Paris, o Líbano era uma extensão da França. Tanto que o meu avô materno também tinha negócios com a França ( ...) Portanto, a influência era muito francesa lá em casa. Até hoje a memória bilíngüe na minha infância é uma coisa bastante importante. (DUAILIBI, 2005.)
Na loja em Campo Grande com o nome de sua mãe, Duailibi e o irmão mais velho Fauze, aficcionados por histórias em quadrinhos e apaixonados por desenho, criavam cartazes feitos à mão por eles mesmos, inspirados em revistas da época, copiando idéias da Fon-fon, de moda, contagiados pelo dia-a-dia da loja onde volta e meia se fazia necessária uma rodada de ofertas. O ambiente onde Duailibi cresceu já se constituía, de per si, em espaço dos possíveis - para usar um termo bourdieano que significa algo como "facilitadores" - para a atividade de vendas que é, no fundo, a publicidade:
O fato de crescer em uma loja, já, de certa maneira, encaminhou a minha profissão, porque eu convivia com promoções, convivia com o viajante, que visitava a loja e abria o mostruário. Eu me lembro perfeitamente dos armários da Linha Corrente, que eram obras de arte, na época, porque era um trabalho de marcenaria fora do comum. (DUAILIBI, 2005.)
Depois de ficar dois anos em São Paulo montando a iniciante fábrica da Coty, e agora já casado com Cecília - filha de um libanês de sobrenome Fadul e de uma veneziana de sobrenome Vianello - o jovem farmacêutico Wadih Duailibi não negou o sangue árabe. Em 1925, trocou os perfumes da Coty por seu faro para o comércio e montou uma loja de armarinhos em sociedade com primos, no Rio de Janeiro, chamada Três Irmãos, depois trouxe uma filial da loja a São Paulo, onde também fornecia uniformes para o Exército paulista.
Nota: Fon-Fon, revista brasileira surgida no Rio de Janeiro em 1907, publicada até agosto de 1958. Idealizada pelo escritor e crítico de arte Gonzaga Duque, era ilustrada por célebres artistas - inclusive Di Cavalcanti - e tratava principalmente dos costumes e notícias do cotidiano, primórdios da Industria Cultural brasileira, que se apropria do espírito da Belle Epoque, na ânsia de modernidade como Ortiz ( 1988 ) detecta haver acontecido no Brasil feito um "valor ostentatório", literário, muito antes da própria modernização brasileira - leia-se industrialização, por exemplo - acontecer.
Uma década depois, em 1932, atraído pelas lendas dos garimpos narradas pelo tio José Duailibi e outros parentes que já moravam no Mato Grosso, e convencido por seu amigo, o General Klinger, de que o 1º Regimento de Campo Grande iria precisar de uniformes pois logo logo apoiaria uma revolução em São Paulo (a Constitucionalista, de 32, contra Getúlio), Wadih vendeu a sua parte na Três Irmãos e mudou-se para Campo Grande, com mulher e quatro filhos:
A história de meu pai ir para Mato Grosso, além da atração do garimpo, teve um motivo muito curioso. Ele era muito amigo do general Klinger. (...) começou a fabricar os uniformes para o Exército em São Paulo já, em pequena quantidade. Aí, o Klinger pediu, isso foi em 1930, que ele mudasse para Mato Grosso porque viria uma revolução ( ...) Ele mudou as máquinas, levou para Campo Grande em 1930, 31; aí a revolução começou, a Revolução de 32, e em três meses foi esmagada. O Eurico Gaspar Dutra entrou em Campo Grande, Klinger foi preso e os meus pais ficaram lá...(DUAILIBI, 2005.)
NOTA: Bertoldo Klinger(1884-1969) teve participação na articulação da revolta tenentista de 1924, em São Paulo, sendo depois transferido para o comando do 1o Regimento de Artilharia Mista do Exército sediado em Campo Grande, atual capital de Mato Grosso do Sul. No Mato Grosso, comandou contingentes legalistas que combateram a Coluna Prestes, na década de 1920. Foi um dos líderes da Revolução Constitucionalista de 1932, movimento de oposição ao governo de Getúlio Vargas, deflagrado pelas forças políticas tradicionais do estado de São Paulo, que se viram marginalizadas do processo político após a vitória da Revolução de 1930. Sua função, no movimento, seria deslocar as tropas de Mato Grosso para São Paulo, o que acabou não acontecendo. Com a derrota da Revolução, Klinger foi preso e mandado para o exílio em Lisboa junto com outros revolucionários. (Roberto Duailibi (depoimento, 2004). Rio de Janeiro, CPDOC, ABP - Associação Brasileira de Propaganda, Souza Cruz, 2005.)
Segundo a estudiosa do Líbano, Lody Brais, coordenadora do site libanbylody.com.br, a imigração libanesa ao Brasil começou antes de D. João VI chegar ao país, documentada em arquivos que Brais afirma constarem da Biblioteca Nacional de Portugal. Já em 1808, o imperador teria sido recepcionado no Rio de Janeiro por um libanês de nome Antun Elias Lubbos, conhecido como Antônio Lopes, que ofereceria a D. João VI uma luxuosa casa para morar, mais tarde transformada no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, cujo documento de doação - garante Brais - pode ser confrontado no Museu Histórico e Geográfico Nacional do Rio de Janeiro.
A maior imigração libanesa ao Brasil, no entanto, conforme Brais, teria ocorrido a partir de 1880, duas décadas depois de um massacre da guerra incentivada pelos opressores turcos otomanos entre muçulmanos e cristãos. Esse fato, e mais a visita do imperador D. Pedro II , grande apreciador da cultura árabe - diz Lois - ao Líbano, em 1876, percorrendo o país, encontrando autoridades e palestrando para camponeses.
NOTA: O epíteto turco erroneamente empregado no Brasil para referir-se, muitas vezes jocosamente, a libaneses, sírios e árabes em geral, deve-se a que os imigrantes aqui chegados portavam passaportes emitidos por quem mandava no seu país - os turcos - equívoco, aliás, explicado por Jorge Amado ( 1992, São Paulo: Record), em seu romance A descoberta da América pelos turcos, onde conta a chegada do árabe Jamil Bichara à cidade de Itabuna, no início do século XX.
Na década de 30, Duailibi relata como a estrada de ferro que ia de Bauru, em São Paulo, a Corumbá, no Mato Grosso, facilitou a ida da sua família e de centenas de imigrantes libaneses e japoneses, entre outros, para aquelas bandas do Brasil:
No Brasil, as estradas de ferro levaram à ocupação da terra. (...) Foi o investimento na estrada de ferro Noroeste do Brasil, que partia de Bauru até Corumbá, que levou o desenvolvimento para aquelas regiões. Levou inclusive os imigrantes. (DUAILIBI, 2005.)
Ao longo do seu depoimento ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas ( 2005), percebe-se claramente o quanto Roberto e sua família estiveram sempre envolvidos com importante capital social, reputado por Bourdieu (1996) como valioso gerador de espaços de possíveis. Percebam-se as relações: quando vem para o Brasil, o pai de Duailibi vem fundar uma fábrica de perfumes francesa, a Coty; quando vai para o Mato Grosso, vai a convite de um General, o Klinger; quando Duailibi fala da mãe italiana de sua mãe, a veneziana Ada Vianello, enfatiza que entre os tantos Vianellos de Veneza havia até um doge. Ele desfia, também, uma lista razoável de parentes famosos de São Paulo: sua avó materna era irmã da mãe do ex-presidente do Banco Central de Sarney, Pérsio Arida, e tia do poeta, escritor e escultor Edmundo Gregorian, que havia estudado na Sorbonne, trabalhado na Record e casado com uma pianista dita célebre Yara Bernette, e também com a atriz portuguesa Beatriz Costa. Outro irmão da sua avó italiana de nome Nino Nelo (Giovanni Vianello), dono de teatro, além de ator era autor de textos sobre as famílias de italianos imigrantes em São Paulo. E havia ainda mais outro seu tio-avô, irmão da mesma Ada Vianello, que Duailibi diz ser um dos pioneiros da Globo, chamado Alfredo Viviani:
A gente convivia muito com os pintores e os escultores de origem italiana (...) A família Vianello é muito grande em Veneza. E foi uma influência muito grande também na minha infância. (DUAILIBI, 2005.)
Mas o farto capital social da família do jovem Duailibi não se esgotava por aí. Quando fala do seu avô materno, marido da signora Ada Vianello, Duailibi também se escarrapacha, apoderando-se inclusive do Mar Mediterrâneo:
E a minha mãe tem uma história mais ou menos parecida [com a do meu pai], porque o pai dela, o Nacib Fadul, era um homem muito rico, dono de toda a Várzea do Glicério lá em São Paulo, e casou com uma senhora italiana, Ada Vianello, veneziana. (...) Era um mundo à parte, o Mediterrâneo, e havia muito casamento entre, por exemplo, libaneses e italianos por causa exatamente da religião.(...) Aí, eles vieram para cá. Ele ficou muito rico aqui, já veio rico e ficou muito mais rico aqui no Brasil e voltou para o Líbano, porque ele tinha negócios de seda (...) (DUAILIBI, 2005.)
Para arrematar, registre-se ainda outro parentesco notável: o irmão do tio José Duailibi de Campo Grande, o da A Camponesa, de nome Jorge Khalil Duailibi, além de educadíssimo - Duailibi não deixa por menos - tinha sido "campeão mundial de tiro na Europa".
Não bastasse tanto capital social, Duailibi recorda ainda que naqueles anos 1900 os imigrantes se mantinham bem longe de intimidades com os brasileiros, por medo de contrairem sífilis, tratando de se proteger da terrível doença venérea transmissível à descendência, casando-se apenas entre si, na mesma colônia, ou no máximo com outras colônias de imigrantes, judeus, italianos, libaneses ou alemães:
Havia uma quase hostilidade contra os nativos, digamos assim, os brasileiros. Às vezes, a gente vê nas novelas a sociedade brasileira desprezando o imigrante; eu acho que era exatamente o oposto. O imigrante desprezava a sociedade. Eu me lembro, entre os italianos, por exemplo, o brasileiro era sinônimo de sifilítico. Não se casava com brasileiro porque a percentagem de sífilis na população brasileira era muito alta e isso era um risco para os descendentes. Isso acontecia em todas as colônias, pelo menos em São Paulo e Mato Grosso. (DUAILIBI, 2005.)
Ser imigrante era, de certa forma, ser pelo menos um degrau acima de ser brasileiro. Ele mesmo, Duailibi, casaria com uma filha de outra colônia, a de judeus alemães, a loura secretária bilíngue do atendimento, Sílvia, que conheceria em 1952, no seu primeiro emprego em publicidade, na Colgate Palmolive, em São Paulo e com quem teria um casal de gêmeos, também louros: Rubens e Marco, o último, curiosamente, na mesma profissão do avô paterno de Duailibi, o haddad (isto é, o ferreiro/joalheiro, em árabe) Galeb Duailibi.
Nos idos de 40, ainda em Campo Grande, Duailibi e os irmãos recebiam também importante capital cultural do pai que, além de incentivá-los à leitura com a abundante oferta em casa de livros, jornais, revistas e até das histórias em quadrinhos proibidas pelos severos salesianos do colégio local, também os iniciava na arte da oratória, segundo Duailibi, uma virtuosa tradição árabe:
... meu pai escrevia muito bem, fazia poesia. Enfim, ele cultivava muito a tradição, que existe entre os libaneses, da oratória, por exemplo. Ele obrigava a gente a decorar poesia, a fazer saudações na mesa quando alguém fazia aniversário, quando tinha alguma coisa muito especial, datas especiais. Daí porque você vê tantos libaneses na política, porque é uma tradição realmente cultivar a oratória. (...) (DUAILIBI, 2005.)Não é de estranhar que, com tamanho treinamento na infância o turquinho Duailibi fosse o escolhido pelos colegas para ser o orador da sua turma no ginásio, no Colégio Benjamin Constant, em São Paulo.
Não é de estranhar, também que, ao ingressar mais tarde na propaganda, Duailibi se transformasse em um dos mais exímios apresentadores de campanha, convencendo sem grande esforço e com diplomacia seus clientes do valor da criatividade, a matéria-prima e " illusio" que iria lhe fazer a fama, em sua carreira de redator e mais tarde empresário publicitário.
De aprendiz de comunista a publicitário
1948. Desgraça na família Duailibi. Fauze, o terceiro filho de Wadih e Cecília, cumprindo serviço militar na Aeronáutica, é contaminado por gravíssima infecção alimentar, no quartel e, vítima de erro médico no próprio atendimento da Aeronáutica, morre três dias depois, aos 18 anos de idade. Some-se a isso outra tragédia, essa financeira, e entende-se porque os Duailibi, no mesmo ano de 1948, decidiram ir embora para São Paulo:
A mudança se deu também por razões que a gente nunca esqueceu, que foi uma moratória imposta pelo governo de então [ Dutra], para as dívidas da agricultura. Os meus pais tinham créditos enormes com os fazendeiros porque eles continuavam fornecendo a roupa para os colonos. E quando veio esse decreto, o comércio todo de Mato Grosso foi à falência. Os fazendeiros simplesmente não pagaram mais ninguém, nem os bancos nem o comércio. E muita gente saiu de lá naquela ocasião porque não tinha mais perspectivas. (DUAILIBI, 2005.)
Duailibi tinha 13 anos e a vida recomeçava, em São Paulo, no bairro classe-média Vila Mariana, na Rua Eça de Queiroz, preferido por muitas famílias libanesas. Na capital paulista já havia o Túnel 9 de Julho, a Via Anchieta, o Estádio do Pacaembu, o Hipódromo Cidade Jardim, a USP, o recém-inaugurado MASP - Museu da Arte Moderna de São Paulo, na sede dos Diários Associados, no centro, e, havia até Coca-Cola nacional, vinda da primeira fábrica de Coca-cola no Brasil, em São Cristóvão, RJ. A inflação anual era de 3,4% e a população do país atingia a marca de mais de 41 milhões de habitantes.
No mundo, a Europa se recuperava da II Guerra, reconstruindo as cidades destruídas pelos bombardeios com o apoio do Plano Marshall norte-americano; Gandhi, o líder espiritual da independência da Índia, era assassinado por um extremista hindu, e, no Oriente Médio, nascia o Estado de Israel. A mesma ONU que um ano antes havia disposto de 50% das terras palestinas em favor dos judeus, neste ano de 1948 aprovava a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nos Estados Unidos, o biólogo e zoólogo Alfred Kinsey chocava a sociedade norte-americana com seu Relatório Kinsey, sobre o comportamento sexual masculino, enquanto Marlon Brando estrelava Um bonde chamado desejo, de Tennesee Williams, em Nova York.
Embora traumatizado pela morte do irmão Fauze, Duailibi encontrou pelo menos um ponto positivo na Paulicéia: o colégio onde cursaria o resto do ginásio ficava bem em frente à sua casa, na Eça de Queiroz, bastando atravessar a rua. Era o Benjamin Constant, antiga Deutsche Schule zu Villa Marianna, e Duailibi reconhece que recebeu uma influência alemã muito intensa, capital cultural adicional: "Era um colégio, eu diria hoje, olhando de memória, até bem nazista", ele observa.
Findo o ginásio, Duailibi, que se preparava para cursar Medicina foi fazer o científico no Colégio Bandeirantes, considerado a melhor escola de São Paulo - segundo ele - e também vizinha da sua rua, a apenas uma quadra de distância, onde o filho de Wadih, já começando a desviar-se do caminho das ciências médicas, praticava também teatro amador com os colegas do curso clássico (embora cursasse o científico) e divertia-se como ator dos diretores Flávio Rangel e Manuel Carlos.
Duailibi tinha 17 anos. O pai, que nunca mais se recuperou da perda do filho Fauze, e diante também das difíceis circunstâncias financeiras, acabou ficando doente e falecendo, deixou Cecília viúva, vivendo de costuras, com seis filhos por terminar de criar, alguns filhos, porém, já encaminhados: o primogênito Victor, formado em Química, ganhava seu salário, a irmã, trabalhava num banco, e o nº 5, Duailibi, estudava de manhã no Bandeirantes e também trabalhava à tarde, primeiro em um jornalzinho local, Jornal de Vila Mariana, em que escrevia, desenhava e captava os anúncios dos comerciantes, e depois no Banco de Boston, no setor de cobrança, rotina que ele detestava, que lhe despertou insuspeitada asma alérgica, e onde ele só fazia se perguntar: "Será que trabalhar é isso, fazer hoje a mesma coisa que eu fiz ontem e provavelmente a mesma coisa que eu vou fazer amanhã?" (2005).
Começava ali o desejo de trabalhar em uma profissão sem rotina, onde cada dia fosse diferente do anterior. Começava ali o desejo de trabalhar, por exemplo, em propaganda. Duailibi conta que gostava muito de ler a revista PN, Publicidade e Negócios, cuja exerceu forte influência em sua decisão futura de abandonar a idéia de Medicina: "Eu lia a PN nas bancas porque não podia comprar. Mas ia na banca e lia", ele recorda ( 2005).
O Banco de Boston, se era monótono demais para o seu gosto serviu, porém, para encaminhá-lo a um insólito rumo clandestino, que havia começado nas aulas de teatro no Bandeirantes e se estabelecido quando presenciou a atuação panfletária do sindicato dos bancários. Duailibi garoto via aquela gente a pregar idéias socializadoras muito parecidas com as idéias cristãs que ouvia nos tempos do colégio de padres de Campo Grande, do tipo "para Deus, todos somos iguais" etc, ficou interessado e foi a uma reunião do sindicato onde conheceu membros do PCB, Partido Comunista Brasileiro, partido, aliás, proibido pelo governo de Getúlio Vargas. Como desde garoto Duailibi gostava de desenhar e sem noção do quanto estava se arriscando, ele acabou aderindo a uma célula de desenhistas do PCB onde, junto com outros quadrinhistas mais tarde célebres como Maurício de Souza e Alvaro de Moya, ensinava desenho a pessoas menos favorecidas, além de ler sobre marxismo e preparar reivindicações por uma legislação que favorecesse os quadrinhos nacionais no lugar dos privilegiados quadrinhos americanos que imperavam nos jornais brasileiros. O PCB, quem sabe, exercendo o papel de provedor adulto de capital cultural ao adolescente Duailibi, no lugar do pai ausente, influência que - segundo o seu depoimento ao CPDOC - durou dos 16 aos 20 anos (1955), resultando em grande peso na sua formação ideológica e provavelmente o que o encaminhou, mais tarde, ao curso superior de Sociologia.
Em 1953, de novo o bairro Vila Mariana lhe acena com a sorte e conspira contra o curso de Medicina ao qual Duailibi persistia em se preparar. Um anúncio classificado da vizinha Colgate-Palmolive no jornal O Estado de São Paulo procurava alguém para o seu departamento de propaganda. Duailibi nem sabia direito o que era departamento de propaganda, mas candidatou-se ao cargo, segundo ele, modesto, provavelmente de boy ou assistente e conta que foi aceito, imagina que talvez por dois motivos: sua boa formação e a proximidade de casa. O serviço era mosca-no-mel para Duailibi, velho leitor de revistas desde a infância, embora jovem demais - ele tinha apenas 18 anos - para as obrigações que ia assumir.
Que maturidade teria um adolescente em 1951 para "analisar" o trabalho da concorrência publicitária da Colgate-Palmolive, tirar ilações, pressupor intenções de mercado por trás das mensagens, exercer juízos de valor sobre a qualidade ou não do material publicado nas revistas e escrever a respeito de tudo isso? Tão precário o campo da publicidade, na época, que um rapazola de boa formação em Humanas encontrava ali seu espaço dos possíveis em uma lacuna estrutural que o favorecia realizar o trabalho com as mesmas habilidades de um profissional com pelo menos 10 anos a mais que ele. No entanto, parece, não sabendo que estava acima das suas forças, Duailibi achou o trabalho " interessante":
...era fantástica a fábrica, o escritório era em cima da fábrica. E essa Sílvia Jatobá [ sua chefe imediata, redatora ] me deu grandes oportunidades. Ela gostava muito de mim e me deu umas tarefas interessantes. A primeira delas era analisar o que a concorrência fazia. Nós recebíamos todas as revistas do Brasil onde tivesse anúncios da Lever - não era nem Unilever ainda - e dos outros fabricantes de produtos de higiene e beleza. Talco Granado, todos esses. Eu tinha que analisar o tamanho do anúncio, ver na tabela quanto tinha custado para fazer um relatório semanal de quanto cada concorrente da Colgate estava investindo. E tinha que dar uma opinião sobre o anúncio também. Portanto, tinha de escrever sobre as campanhas. (DUAILIBI, 2005.)
O jovem Duailibi tinha sido picado definitivamente pelo vírus da publicidade, onde podia aproveitar seu rico capital cultural não só de árabe bom de vendas mas de redator e poliglota:
E d. Sílvia começou a me passar anúncios americanos para traduzir, que também foi uma coisa extremamente boa. Nessa época, exatamente com um ano e pouco de Colgate, eu prestei vestibular na Escola de Propaganda, ao invés de fazer medicina. E foi também um momento crucial na minha vida. A Escola de Propaganda era no Museu de Arte de São Paulo, na rua 7 de Abril, que era um lugar elegantíssimo. (DUAILIBI, 2005.)
A Escola de Propaganda a que Duailibi se refere foi o primeiro formato da atual ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing, e havia sido fundada em 1952 por um grupo de publicitários apoiados por Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, e pelo professor de arte italiano Pietro Maria Bardi, também jornalista, responsável pelo Museu, para formar mão-de-obra adequada às necessidades do mercado publicitário de então, integrado por agências como Thompson, McCann, Standard, Norton, entre outras:
...quando eu fui ver os resultados, para mim foi uma surpresa extremamente agradável ver que eu tinha tirado segundo lugar. O primeiro lugar foi do jornalista Evaldo Dantas Ferreira, o cara que descobriu o Eichmann aqui no Brasil. E todos os alunos eram jornalistas. Era uma turma de 36 alunos, só - e eu diria que, dos 36, 30 eram jornalistas que já trabalhavam em jornais. Era uma turma ótima, porque a gente estudava à noite, então dava para trabalhar durante o dia. (DUAILIBI, 2005.)
Atente-se aqui para o evidente espaço dos possíveis que Bourdieu (1996) enfatiza como facilitador na mudança do papel de dominado para dominante no campo da produção cultural: a maioria da turma de Duailibi na Escola de Propaganda era de jornalistas e trabalhava em jornais, não em propaganda. Pouquíssimos como ele, Duailibi, não eram jornalistas e, menos ainda os que já trabalhavam em propaganda, como ele e sua superiora imediata, a redatora carioca Sílvia Jatobá.
O curso durava um ano e dali para uma agência de verdade foi um passo. Mais tarde, inclusive, Duailibi tornou-se professor e diretor de cursos da própria ESPM, onde lecionou por muitos anos, fazendo parte até hoje do seu Conselho, além de também haver integrado o corpo docente da Escola de Comunicações e Artes ( ECA) da USP.
Em 1956, aos 22 anos, Duailibi vai ser redator na C.I.N. - Companhia de Incremento de Negócios, de Samuel Vilmar, que tinha a conta da fábrica de automóveis Vemag, onde o turquinho teve a oportunidade de exercer na propaganda o seu capital cultural de orador adquirido com o pai, na infância:
Essa foi a primeira campanha que eu apresentei. Foi muito interessante. A partir daí, eu me especializei em apresentação de campanha, porque também tem isso, uma coisa muito importante. Não é só criar, você tem que saber apresentar muito bem. (...) O criador pode eventualmente - se ele for um bom apresentador, é ele que apresenta - mas tem que ser o melhor apresentador da agência. Porque vender uma campanha é também, em si, um ato de persuasão muito importante. (DUAILIBI, 2005.)
Atenção para como Duailibi coloca no mesmo patamar de importância quem apresenta a campanha e quem cria a campanha, esclarecendo, sem nunca ter dito, as razões de haver assumido muito mais a posição de atendimento criativo que de redator, quando 12 anos depois funda a DPZ. José Ruy Gandra, em seu História da propaganda criativa no Brasil (1995:66), observa que Duailibi, a par de seu talento para as letras e sensibilidade para a criação, na verdade tinha, mesmo, era "alma de atendimento", facilitando a sua ação, mais tarde, na DPZ, como o "D", conhecido como dos mais diplomáticos vendedores.
Alma de atendimento e de pesquisador, aliás. Em 1957, a Escola de Sociologia e Política de São Paulo - segundo Duailibi - era um centro de confronto do pensamento da direita contra a esquerda e vice-versa, um ambiente acadêmico bastante ativo, uma escola desejada. "Era bom ter um diploma da Escola de Sociologia e Política", ele recorda ( 2005). Como já estava trabalhando (já havia inclusive concluído a Escola de Propaganda), Duailibi achava que lhe faltava ainda um outro tipo de conhecimento. Sentia que a prática publicitária deveria se alimentar de psicologia, de sociologia, de outras disciplinas que não apenas a habilidade literária ou habilidade artística ou habilidade musical, que sempre esteve muito na moda na Comunicação. Por isso foi fazer a Escola de Sociologia e Política, onde acabou conhecendo personagens como Delfim Neto, por exemplo, com quem diz haver cruzado no ambiente acadêmico. Mais um capital social e mais um capital cultural nos tantos que Duailibi já possuía.
De redator a dê maiúsculo
Ser redator de publicidade nos anos 50, onde a área era dominada principalmente por jornalistas e escritores, significava ocupar um relativo espaço privilegiado de intelectual da propaganda, ainda que infinitamente com menos honrarias que o nobre espaço do atendimento. Havia um espaço dos possíveis bourdieuano concreto facilitador de ascensão, se comparado à carência de nobreza do espaço para seus humildes pares, os chamados layoutmen, segundo Duailibi, "uma profissão modesta", até porque em geral era um sujeito oriundo da área gráfica. A influência no modo de fazer o texto publicitário brasileiro era 100% americana e o conceito, Duailibi recorda, era o de, se possível, prescindir do layoutman:
Você tem que fazer o seu texto suficientemente convincente para dispensar qualquer ilustração ou qualquer fotografia. O texto tem que ser, em si mesmo, persuasivo, vendedor (...) suficientemente interessante. Essa foi a minha escola, na verdade. Você tem que escrever um texto que dispense leiaute, ele deve vender por si mesmo. (DUAILIBI, 2005.)
A lacuna estrutural no organograma das agências de então reservava aos redatores bem melhor reconhecimento que aos layoutmen, a quem abundavam adjetivos pouco elogiosos e provavelmente salários idem, salvaguardadas algumas exceções, como o inglês Eric Nice (Thompson), o alemão Gerhard Wilda (Lintas), o português Licínio de Almeida (Standard), o brasileiro filho de italianos Alex Periscinotto (Almap) e os espanhóis José Zaragoza e Francesc Petit (Metro3), entre outros.
NOTA: No livro História da Propaganda no Brasil, de Renato Castelo Branco, Rodolfo Lima Martensen e Fernando Reis (São Paulo: T.A. Queiroz, 1990: 7-19), o escritor, poeta e redator Jorge Medauar escreve um capítulo de 12 páginas intitulado "Os intelectuais e a propaganda", que lista dezenas de escritores com carreira na propaganda, entre eles, Olavo Bilac, Bastos Tigre, Orígenes Lessa, Monteiro Lobato, João Antonio, J.G.de Araújo Jorge, Rubem Braga, Carlos Lacerda, Marcos Rey, Emil Fahrat, Benedito Ruy Barbosa, Mario Chamie.
Antes deles - como diz Duailibi, fortalecido pelo seu capital cultural de redator - o layoutman era uma interferência com quem o redator não se misturava.
Nas palavras de Duailibi ( 2005), redator e layoutman eram "inimigos figadais" e não podiam nem trabalhar na mesma sala, porque o redator "não admitia trabalhar com aquele operário vindo da área gráfica":
...não se sabia, não se tinha noção do leiaute. Não existia diretor de arte, tinha o layoutman. E o layoutman era, em geral, um cara vindo da gráfica, com uma formação de gráfico. Ele ainda vinha com aquele cheiro de tinta e ele se confrontava com o redator, que era um intelectual em geral.(...) A presença do layoutman era uma interferência, era só para dar uma certa ordem para o texto.(...) O redator não se misturava com o diretor de arte, com o layoutman. O layoutman era um gráfico que, em vez de trabalhar no jornal, trabalhava em uma agência. A função dele era enfeitar um pouco o texto do redator. Era alguém que sabia distribuir, digamos assim, o texto e a ilustração; ele dizia quando tinha que ter ilustração, em geral desenhos, dentro de um anúncio. (DUAILIBI, 2005.)
Era o ano de 1957, período em que a indústria automobilística estava se implantando no Brasil e, conforme Duailibi, teria sido essa indústria que de fato criou o negócio de agência, o negócio de propaganda, em um período juscelinista de desenvolvimentismo, de produção, "um período importantíssimo na vida do país", ele ressalta. "O momento em que o Brasil deixou de ser a fazendona para se transformar em uma potência industrial" ( 2005).
Quem aproveitou-se desse desabrochar da produção automobilística, entre outras agências, foi a C.I.N., agência-eixo de Duailibi, de onde ele saía e para onde voltava toda vez que trocava de emprego: da C.I.N. foi para a Standard, da Standard para a Thompson, onde chegou a chefe de redação, com apenas 24 anos. Da Thompson voltou para a C.I.N., da C.I.N. foi para a McCann - onde ficou apenas 20 dias, porque lá o chefe, o redator "de atendimento" Francisco Gracioso - depois presidente da ESPM - pegava um lápis antes de ler o texto apresentado por Duailibi e já "saía riscando", o que deixava o turquinho indignado, pois considerava-se ótimo redator. Como continuava fazendo free-lance para a C.I.N., o dono, Samuel Vilmar, mais uma vez lhe ofereceu aumento - o dobro do salário da McCann - para voltar, narra Duailibi (2005), que não teve dúvidas: pegou as suas coisas e C.I.N., de novo. Não sem antes aprontar uma hilariante vingança contra o riscador contumaz:
Aí, eu peguei um texto do Gracioso, tirei do arquivo, texto que ele tinha escrito para a GM, passei para uma Olivetti lá, ou Remington, que tinha na McCann, para o papel rascunho e levei para ele, como se fosse uma tarefa. Ele pegou o próprio texto dele e começou a riscar. (..) Aí, eu falei: Olha, Gracioso.... Tirei a carta de demissão e falei: Estou saindo e só queria dizer que é um hábito chato... E hoje somos superamigos. Foi um episódio só, que nunca nos abalou, mas já era meio cômico. (DUAILIBI, 2005.)
NOTA: Maria José Lanzotti Barreras, em sua tese Pedagogia da Sedução: os publicitários e os anúncios de automóvel no Brasil dos anos 1956-1973 ( 2002).(PPGCOM PUCRS) estuda o impacto da indústria automobilística no Brasil, através dos seus anúncios publicitários, que, a partir do discurso, arquitetam um imaginário novo e "organizam a cultura", construindo consensos sobre o que é ser cidadão brasileiro e o que é ser cidadão indivíduo cosmopolita. Considerando publicitário um "intelectual orgânico" à Gramsci, com qualidades pedagógicas para socializar o consumo, que significa conforto e que, em última análise, significa civilização, a autora conclui: publicitários são "profissionais civilizadores",
É importante ressaltar uma significativa lacuna estrutural no mercado publicitário dos anos 60, onde havia poucos profissionais para muitos postos de trabalho e era não apenas aceito como bastante comum o mesmo redator prestar serviços como free-lancer para várias agências. Duailibi (2005), inclusive, revela que ganhava mais dinheiro como free-lancer que como redator empregado. Ele conta que a Varig, por exemplo, pagava parte dos seus serviços de free-lancer com passagens aéreas que ajudaram Duailibi a enriquecer ainda mais o seu capital cultural, viajando pelo Brasil e exterior.
Segundo o executivo Edeson Coelho, que trabalhou em várias ocasiões com Duailibi, tanto na Standard quanto na DPZ, Duailibi era considerado o melhor redator do Brasil, nos anos 60, inclusive Neil Ferreira o reconhece como seu "mestre" das letras, no período em que trabalhou na Standard (1963) como seu assistente de criação. Um dos trabalhos mais célebres do turquinho do Mato-Grosso, na Standard, foi o que criou para as coleções Club Um, da Rhodia. Junto com Livio Rangan, gerente de propaganda da Rhodia, Duailibi glamorizou "o fio sintético" - leia-se tergal, nycron, poliéster - e a carreira de modelo, criando, muito mais que anúncios, um conceito revolucionário de comunicar moda e de ajudar a indústria têxtil nacional, auxiliado por Adopho Bloch e sua revista Desfile e também por uma característica do seu habitus, a de haver crescido dentro de uma loja que vendia roupa. Assim, em vez de fazer anúncios de moda, Duailibi sugeriu a Rangan fazer reportagens de moda e publicá-las nas revistas da Bloch :
Eu falei com o Lívio: “Por que nós, ao invés de fazer anúncio, que você não tem dinheiro para isso, vamos fazer reportagens de moda e vender para as revistas.” (...) Ele falaria com os fabricantes de tecidos e com as confecções. Nós tínhamos o estúdio fotográfico na Standard, que era dirigido pelo Otto Stupakoff, então a gente produziria reportagens de moda, que era uma coisa já revolucionária na época também. ( ...) o Bloch, (...) que produzia na ocasião várias revistas - Desfile, a Manchete - viu nisso também uma oportunidade de economizar. Os fabricantes, os confeccionistas também viram uma oportunidade de divulgar os seus produtos e o pessoal dos tecidos.(...) ( DUAILIBI, 2005)
A invenção da profissão de modelo, no Brasil, é atribuída também a Duailibi:
...a gente precisava ter manequim. E não existia essa profissão. (...) Então era preciso criar uma profissão, era preciso transformar essas moças inclusive em celebridades. E formou-se o primeiro grupo de manequins e começou-se a viajar. Fomos para a Bahia, fomos para a Amazônia, e isso era absolutamente revolucionário. E também tudo de graça, porque a gente fazia acordos com as companhias aéreas, principalmente com a Pan Air, que nos dava as passagens de graça para poder aparecer nas páginas da revista. (...) ( DUAILIBI, 2005)
Como se vê, apesar de considerado um grande redator, Duailibi foi mais que um homem de texto criativo, um estrategista criativo, um profissional com visão macro que parece contribuiu para mudar o conceito sobre a profissão, antes mesmo de ser o D da DPZ. Como ele mesmo relata, referindo-se ainda ao caso da Rhodia, que aconteceu nos bastidores da Standard:
foi uma época realmente, assim, seminal da propaganda brasileira, eu diria nesse sentido de lançar conceitos novos, de usar a propaganda como uma arma revolucionária para o desenvolvimento da sociedade, para fazer com que a profissão tivesse dignidade. Porque ao invés de ser uma profissão de corretores de espaço dos jornais e revistas, ela passou a ser uma profissão onde a criação tinha a prioridade, a idéia. ( DUAILIBI. 2005) 46
(Disponível em http://www.bioclimatico.com.br/pdf/entrevistas/SOS_HV023_%20RobertoDuailibi.pdf)
Outro exemplo do talento de Duailibi, este como " mero" redator, é um anúncio denunciando o desmatamento no estado de São Paulo, e " inaugurando" a idéia de reflorestamento, cujo título dizia "Hoje é um dia triste. É o dia da Árvore". E o texto justificava:
Como nos anos anteriores, comemora -se hoje mais um Dia da Árvore. Como nos anos anteriores, as crianças plantam mais uma arvorezinha na escola e recitam poesias para as professoras. Como nos anos anteriores, mais de 500 árvores estão sendo derrubadas em todo o Brasil - apenas nos 2 minutos em que você lê este anúncio. Assim. Sem controle algum. Sem que ninguém se preocupe em replantá-las. (...) Madeira é matéria- prima para fazer a cadeira em que você senta. A casa em que você mora. Os remédios que curam seu filho. Mesmo assim continuam derrubando árvores. Derrubando. Derrubando. Derrubando. E nunca plantando.(DUAILIBI, 2006: 66)
Já premiado profissional e de talento reconhecido por seus pares e pelo mercado, Duailibi volta para a Standard em 1967 e, aos 32 anos de idade, é convidado a assumir a gerência do escritório de São Paulo. " Foi barra pesadíssima", ele lembra. O Brasil se encontrava em plena ditadura militar, o ministro da Fazenda era Octávio Gouvêa de Bulhões, o do Planejamento, Roberto Campos, e Duailibi relata que o país havia mergulhado em profunda recessão, todo mundo em moratória virtual: ninguém pagava ninguém. Embora ali na Standard começasse o seu aprendizado do capital cultural de gestão empresarial que o qualificaria como administrador na futura DPZ, ele relata quão difícil foi lidar com números no lugar das letras a que estava acostumado:
...era uma coisa absolutamente estranha para mim: administrar a parte de RH que também não se chamava RH, era departamento de pessoal, ter que pagar as pessoas no fim do mês, enfrentar clientes que não pagavam e veículos que nos telefonavam desesperados para a gente também pagar as contas. (DUAILIBI, 2005.)
1968. Ano-chave na vida de Duailibi, quando ele sai definitivamente da Standard e da vida de empregado para o patamar de patrão. Existem duas versões para a sua saída da Standard. Na história contada por José Zaragoza, Duailibi teria pedido demissão porque fora preterido em favor de outro - seu amigo Edeson Coelho, aliás - para ser o presidente da Standard, cargo ao qual ambicionava, Zaragoza garante. Por seu lado, Duailibi conta que o que de fato aconteceu é que, a pedido dos sócios da Metro 3 Francesc Petit e José Zaragoza, a quem ele fazia free-lance de redação, estava procurando um profissional para assumir a gerência do estúdio. E seguiu-se o seguinte:
Comecei a entrevistar gente e, sempre que eu mandava alguém, eles, por algum motivo, não se identificavam. E em junho e julho de 1968, quando estava no auge essa moratória virtual no Brasil, eu estava profundamente insatisfeito na Standard porque não estava fazendo aquilo de que eu gostava, que era criar. De gerente o tempo todo, recebendo telefonemas de clientes para dizer para atrasar o pagamento, e de veículos pedindo para a gente apressar o pagamento. Era um inferno. Eu nunca tinha tido débitos na minha vida. (...) Eu apresentei mais um candidato na Metro 3, recusado de novo, e aí eu falei: Por que não eu? Não, mas você, impossível. Nós não temos dinheiro... Eu falei: Eu entro como sócio. Então, tá. Fizemos a Metro 3, os quatro sócios, 30% cada um e 10% o Ronaldo Persichetti. (DUAILIBI, 2005.)
Quando Duailibi foi pedir demissão da Standard, que ele diz ter sido, na época, a maior agência brasileira, e onde se gaba - em claro exercício de capital simbólico - de ter recebido o maior salário da propaganda no Brasil, todos teriam dito: "Você enlouqueceu! Vai largar a Standard para se juntar com dois espanhóis malucos?" (2005)
Em seu livro Cartas a um jovem publicitário ( 2006), Duailibi revela o que passava por sua cabeça quando foi visitar pela primeira vez a revenda de automóveis Borda do Campo, na Av. Santo Amaro, seu modesto futuro cliente na DPZ:
De vice-presidente da Standard, então a maior agência brasileira, com o maior salário da propaganda brasileira, recebido pelo presidente da Shell, pelo presidente da Sadia, olha eu aqui, agora, começando a vida do zero... ( DUAILIBI, 2006:29)
Bourdieu (1996) aponta que uma das características favorecedoras do ator dominado ascender a dominante dentro do campo da produção cultural, é aceitar riscos com mais galhardia que seus pares, além de aparentemente desimportar-se com os ganhos financeiros - pelo menos em um primeiro momento - e inclusive fazendo crer - e esse seria seu maior capital simbólico - que dá mais valor à arte em si do que ao dinheiro.
Com Roberto Duailibi, não foi diferente. Embora estivesse trocando um alto salário por uma incógnita, em pleno período de recessão econômica e exceção política, ele conta que sua mulher Silvia, a quem entregava todo mês o salário para administrar e a quem teria pedido a opinião, antes de se juntar aos espanhóis malucos, deu-lhe apoio total. Da esposa de origem judia-alemã imigrante, historicamente treinada a novos desafios, Duailibi recebeu o incentivo decisivo para seguir em frente, pois ela garantia que tinham dinheiro para viver pelo menos três anos sem problemas. "Aí, eu entrei de cabeça", conta Duailibi ( 2005). De cabeça no espírito da Revolução Criativa proposta por Bill Bernbach, focada basicamente em criatividade, coloquialismo e emoção, somada à revolução visual dos dois catalães, à estética impecável, antes de tudo, do layout tratado como a arte superior que aprenderam na Escola de Belas Artes Las Lonjas, em Barcelona, a mesma onde estudou Picasso e Miró.
Nasce assim, em julho de 1968, a agência DPZ, montada com as iniciais de seus sócios majoritários, todos "de criação": Duailibi, Petit e Zaragoza, a princípio no mesmo endereço da antiga Metro 3, na Alameda Casabranca, em São Paulo, e com quatro compromissos assumidos publicamente em um anúncio antológico onde o trio DPZ aparece junto - Duailibi no centro, sentado em uma sofisticada cadeira Forma de aço e couro: compromisso com a verdade, com a originalidade, com o bom-gosto e com a moral nos negócios.
... a mentira, o exagero e a omissão da verdade são os grandes coveiros da nossa profissão. A credibilidade na propaganda era zero porque era sempre considerada exagerada, mentirosa, enganosa. (...) Originalidade é a própria criatividade, mas ela exige um conhecimento muito grande de tudo o que está se fazendo no mundo inteiro para você ser original. Verdade, originalidade, bom gosto, que era uma coisa em que também sempre insisti porque a propaganda abusa do mau gosto. A propaganda é feia, a propaganda é mal escrita, a propaganda é barata. (DUAILIBI, 2005.)
Havia uma promessa anterior do cliente Ford - jamais cumprida, por sinal - de vir para a DPZ a sua polpuda conta. Na ausência, Duailibi, Petit e Zaragoza tiveram que se contentar com uma Ford menor, a revendedora Ford Borda do Campo, para quem criaram campanhas tão originais que, em pouco tempo, a pequena conta pagou-se sobejamente. A DPZ começou a aparecer no mercado e logo conquistou a conta de uma cadeia de lojas de cine-foto-som, a Fotóptica, cujas campanhas eram, também, a síntese criativa dos melhores princípios de Bill Bernbach: brincalhonas, bem-humoradas e nem por isso menos vendedoras. É antológico um dos primeiros anúncios da DPZ para a Fotóptica, no Dia das Mães, em que um homem aparece sentado no colo de uma simpática velhinha, sob o título: Mamãe Fotóptica. Um homem no colo de uma senhora idosa? Ora, direis, ouvir DPZs!
Os tempos estavam para atrevimentos. Nunca esquecendo que 1968 foi um ano-marco de mudanças não apenas no Brasil, mas no mundo, pipocando em reversões de comportamento, ética, política e econômica, das ruas de Paris às minissaias de Mary Quant, em Londres, às fardas militares na América do Sul.
Duailibi (2005) lembra que, de 1968 a 1972, só atenderam a pequenas contas, embora construindo importante capital simbólico para tudo o que significava ser DPZ, naquele momento: a primeira agência de criação administrada por donos criadores. Só em 1972 conquistariam a sua primeira grande conta: o Banco Itaú, que permanece na DPZ até os tempos atuais. Começava então o movimento das contas governamentais e com elas, um espaço dos possíveis bastante tangível construído pela ala nacional do setor publicitário ( leia-se Mauro Salles, da Salles, Roberto Duailibi , da DPZ e Mahfuz, Petrônio e Macedo, da MPM, entre outros) que resultou no favorecimento das agências com capital 100% brasileiro, alijando totalmente do processo as multinacionais.Nós tínhamos criado junto aos governos uma estrutura, não de pressão, mas realmente de convencimento de que conta de governo tinha que ser dada para agência brasileira. Porque nós não tínhamos acesso, como não temos até hoje, a muitos anunciantes estrangeiros que alinham suas contas. E eu interpreto isso muito mais como uma discriminação contra a agência brasileira do que busca de eficiência, porque nem sempre a filial da agência alinhada é eficiente. Mas nós pagamos um preço por sermos empresas brasileiras. E a gente tinha que ter uma compensação. (DUAILIBI, 2005.)
Os militares, com seu ortodoxo espírito nacionalista, acabaram aceitando a proposta de reserva de mercado do setor publicitário, valorizada ainda mais por outra inteligente proposta à parte, feita por Roberto Duailibi, que acabou viabilizando economicamente a transformação do governo em anunciante. Duailibi valeu-se de dois importantes capitais sociais: um, por haver frequentado a Escola de Sociologia; outro, por ter nascido em Mato Grosso. Graças às portas abertas por Jânio Quadros, mato-grossense como ele e amigo do seu pai Wadih, somadas aos contatos de capital social costurados na Escola de Sociologia, Duailibi tinha um bom trânsito com os políticos da época. Em meados dos anos 70, formatou um paper de sólida argumentação e enviou-o a Delfim Neto e a Karlos Rischbieter - Ministros do Planejamento e da Fazenda, respectivamente - com uma objetiva sugestão: em vez de cobrar em dinheiro os veículos de comunicação que nunca pagavam seus empréstimos concedidos a eles pelo Governo, por que o Governo não aceitava receber o pagamento da dívida em espaço publicitário, nesses mesmos veículos? Era uma idéia inspirada no dono da revista Manchete, Adolfo Bloch:
O Adolfo Bloch comprava as coisas e dizia: Eu posso pagar em espaço. E com isso ele acabou criando muitos anunciantes. Qual era a mercadoria que ele tinha? Não tinha dinheiro, ele tinha espaço, páginas da revista. Com isso, ele realmente criou um patrimônio fora do comum. Não fazia parte da filosofia dele pagar em dinheiro, a não ser os funcionários. Mas fornecedores tinham que receber com a mercadoria que ele tinha, que eram páginas da revista. E com isso, acabou criando uma série de anunciantes novos. E inspirado talvez nesse exemplo, eu fiz um paper, dizendo que o Banco do Brasil não precisa cobrar, não precisa lançar como fundo perdido. Ele pode ser um anunciante. (DUAILIBI, 2005.)
NOTA: Com a globalização, as grandes contas multinacionais, por razões de economia de escala e padronização de sua comunicação, passaram a ser atendidas compulsoriamente por agências de uma mesma rede multinacional, no mundo inteiro, fenômeno conhecido por "alinhamento", que causou enormes perdas financeiras às agências nacionais.
Segundo Duailibi, a idéia pegou, principalmente em São Paulo, garantindo faturamento expressivo a muitas agências nacionais, inclusive à DPZ.
Antes de conquistar a substanciosa conta do Banco Itaú ( 1972), a fama da DPZ já havia cruzado fronteiras, graças a uma estratégia de Duailibi e de seus assessores de imprensa - segundo Duailibi, os pioneiros em usar assessoria de imprensa -, valendo-se do espírito de colonizado vigente em favor da própria agência: eles mandavam publicar anúncios da agência em revistas no exterior, depois tiravam cópias e as enviavam para todos os jornalistas brasileiros, mais os clientes e os prospects. Funcionou. Aqui e fora daqui: em 71, a revista japonesa de excelência gráfica e design Idea Magazine aponta a DPZ como a mais representativa agência latino-americana. Dez anos depois de muitos prêmios conquistados no Brasil, no Clube de Criação e Colunistas, e no exterior, no Festival de Cannes e no Clio, entre outros, a edição de 25 de maio de 1981 da mais respeitada revista sobre propaganda do mundo - a Advertising Age, americana - publicou o ranking das Brazil's Top Agencies, onde a DPZ ocupava a 6ª posição. Acima dela, MPM, Thompson, Almap, McCann e Salles. Abaixo, Norton, Denison, Standard, Artplan e Lintas. Nenhuma das concorrentes do ranking, porém, com tamanho reconhecimento: DPZ " Uma das mais criativas agências no mundo - cresceu 124% em 1980". (1981)
(Texto integrante da dissertacão de Mestrado em Comunicação Do porão ao poder, de Graça Craidy (PUCRS, 2007), editado pela Editora Dialética, em 2023.
(Principal autor de fundo: Bourdieu, Pierre, As regras da arte.)
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